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Processo n.º 645/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A fls. 28,o relator proferiu a seguinte decisão sumária:
“1. A., melhor identificada nos autos, inconformada com o despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 2004, que não conheceu da reclamação que deduziu, ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Civil, contra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2004, que rejeitou o recurso por si interposto para aquele Supremo, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento nas alíneas a), b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, através dos requerimentos de fls. 22 e de fls. 23 a 25, este último que denominou de
“instrumento de recurso”, com o seguinte teor [segue transcrição parcial]:
«[...] Inconformada com a rejeição a recorrente reclamou para o Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (tribunal de recurso) da decisão de rejeição de recurso, tendo merecido decisão de não conhecimento da reclamação, que foi feita em atenção ao preceituado no n.º 3, do artigo 70º, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro. As questões suscitadas, maxime as do não conhecimento do recurso em matéria de facto, em violação do disposto no n.º 1, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, foram arguidas tempestivamente no processo, ou seja, a questão da inconstitucionalidade foi atempadamemte levantada. Sufragada aliás pelo douto acórdão proferido por esse Egrégio Tribunal que se sumaria: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Nº 584/96, DE 17-4-1996 (P. 403/94). RECURSO DE CONSTITUCIONALIDADE I- É regular e tempestiva a interposição de recurso de constitucionalidade, fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, na pendência de uma arguição de nulidades da decisão proferida mo tribunal «a quo». II – Fazendo a decisão do Tribunal Constitucional sobre a reclamação para ele interposta caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, a apreciação da regularidade da interposição do recurso de constitucionalidade tem de consistir num controlo total dos respectivos pressupostos, ainda que, no tribunal «a quo», o recurso não haja sido recebido com o fundamento único de ser manifestamente extemporâneo Bol. do Min. da Just., 456, 120 ASSIM,
1. A recorrente pretende ver declarada a inconstituciona- lidade da norma do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que em caso de rejeição de recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, não há lugar a reclamação para o Presidente do Tribunal de recurso, por violação da norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2. Pretende ver declarada a inconstitucionalidade do artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b) e c), e 3, quando interpretadas no sentido de que os vícios decorrentes do texto da decisão recorrida limitam os poderes de censura em recurso para a Relação não havendo lugar a renovação de prova, nem a análise crítica da prova produzida.
3. Pretende ver declarada a inconstitucionalidade do artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b) e c), e 3, quando interpretadas no sentido de que os vícios decorrentes do texto da decisão recorrida sendo do conhecimento oficioso não podem ser arguidos pelo recorrente, por violação daquele mesmo dispositivo legal e artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República portuguesa. O recurso sobe imediatamente nos próprios autos e tem efeito suspensivo.».
2. O recurso foi admitido por despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Maio de 2004, mas restrito ao fundamento previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«Admite-se o recurso interposto para o Tribunal Constitucional pela recorrente A., ao abrigo da alínea b) do n. ° 1 do art.º 70° da LTC, e não das alíneas a) e f) da mesma disposição legal, como também pretende a recorrente. Com efeito, nos presentes autos não houve recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, nem foi suscitada a questão da ilegalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”, como exige o art.º 72°, n.° 2 da LTC. Aliás, como resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o que se pretende ver apreciado é a inconstitucionalidade do art.º 405°, n.º 1 do CPP na interpretação normativa que lhe foi dada na decisão de fls. 12 que recaiu sobre a reclamação, e do art.º 410° do CPP, ambos por violação do art.º 32° da CRP. O recurso tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos, art.º 78°, n.º 4 da L TC. Notifique.»
3. Está, pois, em causa no presente recurso o despacho proferido no processo de reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – no caso o despacho do Vice-presidente de fls. 12 –, que não conheceu da reclamação deduzida pela recorrente contra o acórdão do mesmo Supremo – o acórdão de 21 de Abril de 2004
–, que rejeitou o recurso por aquela interposto, que é do seguinte teor:
«I. A arguida A. notificada do acórdão deste Supremo Tribunal de 21.04.04 que rejeitou o recurso por si interposto, veio do mesmo reclamar para o Presidente do S.T.J.. II. Cumpre apreciar e decidir. Como resulta do citado art.º 405° do CPP, a reclamação só pode incidir sobre um despacho do tribunal a quo, que não admitir ou retiver o recurso, e é dirigida ao presidente do tribunal superior. No caso em apreço estamos perante um acórdão que rejeitou o recurso interposto pela ora reclamante, e não sobre qualquer despacho que não admita ou retenha o recurso. De resto, estando, como está, em causa um acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, não tem o Presidente do mesmo tribunal – que constitui a cúpula do sistema judiciário – poder hierárquico ou jurisdicional sobre os seus pares, sendo perfeitamente anómalo que se pretenda que o presidente de um tribunal censure um acórdão desse mesmo tribunal. A presente reclamação não se enquadra minimamente na previsão das disposições supra referidas. III. Nestes termos, não se conhece da reclamação.
[...]»
4. De acordo com a jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional, a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como é o caso, implica, para que possa ser admitido e conhecer-se do seu objecto, a congregação de vários pressupostos, entre os quais a aplicação pelo Tribunal recorrido, como sua ratio decidendi, de norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida. Ora, no caso dos autos, é manifesto que a decisão recorrida não fez aplicação das normas do artigo 410.º, n.º 1, n.º 2, alíneas a), b) e c), e n.º 3, do Código de Processo Penal na interpretação invocada pela recorrente, uma vez que o fundamento do não conhecimento da reclamação residiu no facto de se entender que a reclamação não se enquadrava minimamente na previsão do artigo 405.º do Código de Processo Penal, porque estava em causa a reclamação de um acórdão do mesmo tribunal que rejeitou um recurso interposto pela reclamante e não a reclamação de um despacho do tribunal a quo que não admitiu ou reteve o recurso para o tribunal superior, e porque o Presidente do Supremo não detinha poder hierárquico ou jurisdicional sobre os seus pares. Por outro lado, também não se pode conhecer do objecto do recurso no que se reporta à norma do artigo 405º do Código de Processo Penal, desde logo, porque a recorrente não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade desta norma ou da interpretação com que diz ter sido aplicada, sendo certo que tinha o ónus de o fazer, uma vez que o despacho recorrido se limitou a interpretar e aplicar a norma em causa no sentido habitual que se faz deste preceito, não podendo, por isso, tal aplicação constituir surpresa para a recorrente. Na verdade, na reclamação, além de imputar a violação de normas constitucionais
à própria decisão que não admitiu o recurso, e não à interpretação e aplicação normativas convocadas pela mesma, como se conclui da análise do articulado que consta de fls. 8 a 10, apenas aludiu à aplicação das normas do artigo 400.º e
410.º do Código de Processo Penal. Em face do exposto, não pode tomar-se conhecimento do objecto do recurso, sendo caso de proferir decisão sumária em conformidade.
5. Nestes termos, decide-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, não conhecer do objecto do recurso. Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 unidades de conta.”
2. A recorrente deduziu reclamação para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, na qual, após discorrer acerca do primado do princípio da justiça sobre o princípio da estabilidade das decisões judiciais, pede que se profira acórdão “onde se ordene a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça para que este conheça de facto”.
O Ministério Público responde que a reclamação é improcedente, porque a larga “exposição do reclamante em nada afecta a evidente inverificação dos pressupostos do recurso interposto, conforme foi entendido na decisão reclamada”.
3. A reclamação – em que sintomaticamente se formula um pedido desconforme à finalidade típica deste instrumento processual (cf. artigo 78.º, n.º 5, da LTC) e, até, ao âmbito do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade
(artigo 71.º da LTC) – não abala os fundamentos da decisão sumária em apreciação. Aliás, o alegado pela reclamante só muito vagamente tem relação com os fundamentos pelos quais se decidiu não conhecer do objecto do recurso.
Com efeito, tudo quanto a reclamante alega conflui na seguinte passagem :
“Com o mais elevado respeito, a decisão sumária reclamada, do ponto de vista formal, até se pode ter como aceitável e entendível, mas, na questão fulcral certamente que não, não porque o que está em causa e sempre esteve foi a pretensão da reclamamte de ver reavaliada a decisão de primeira instância em sede de matéria de facto para além dos vícios elencados nas disposições normativas do artigo 410.º do Código de Processo Penal, já que a injustiça da decisão e a razão da discordância da reclamante nunca assentou na suposta existência de tais vícios, mas na recusa do Supremo Tribunal de Justiça em conhecer de facto para além dos apontados vícios! Ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça, fez salvo o devido respeito tábua rasa daquilo que é já pacificamente aceite e assente, ou seja, de que em sede de reapreciação da matéria de facto podem e devem ser avaliadas as razões da discordância da recorrente nomeadamente por via da análise das transcrições do julgamento que poderão naturalmente fazer concluir pelo mal julgado da questão. E ao assim o não entender o tribunal limitou ou coarctou à reclamante o direito de ver reapreciada a matéria de facto que ditou injustamente a sua condenação, em clara violação das garantias do direito de recurso afrontando a disposição decorrente do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Tal violação importaria desde logo a declaração de nulidade do acórdão por parte do Supremo Tribunal de Justiça e a sua revogação por outro que conhecesse de facto como devia conhecer, sem limitar esse conhecimento ao instituído no já citado artigo 410.º, do Código de Processo Penal. Daí a pretensão da reclamante em querer ver declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 410.º, quando interpretada no sentido de que em recurso da matéria de facto o tribunal de recurso, no caso sub judice o Supremo Tribunal de Justiça, apenas aprecia em função das disposições das diversas alíneas do n.º 2, daquele dispositivo, sendo certo que os poderes decorrentes de tal normativo não constituem limite de sindicância, impondo-se uma reavaliação da prova produzida em função não só daquele normativo enquanto decorrente do texto da decisão recorrida, mas também da fiscalização da prova produzida oferecida em contraponto ao decidido e resultante da análise da transcrição das gravações ou registo de prova, que mesmo não constando do texto da decisão recorrida impõem na perspectiva da reclamante decisão diversa da proferida. Verdadeiramente não houve direito de recurso, e isto é claramente da norma do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Na douta decisão sumária ora reclamada, o Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro ao fundamentar as razões que levam a que se não tome conhecimento do recurso é suficientemente elucidativo quanto às mesmas, ou seja, questão puramente normativa, deficiente formulação da petição, admitimos modestamente que sim, mas, porque não o convite à sua reformulação? E, porque não a cindibilidade do recurso com conhecimento do essencial, ou seja, da violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, com a consequente revogação de decisão proferida pelo Tribunal recorrido e a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça ordenando-se que conheça de facto?”
Ora, a decisão de que se recorreu para o Tribunal Constitucional
(cf. fls. 22) não é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que rejeitou o recurso, mas o despacho que indeferiu a reclamação para o Presidente do mesmo Tribunal, com o exclusivo fundamento de que não cabe na previsão do artigo 405.º do Código de Processo Penal, sendo pretensão absolutamente anómala, a de que o presidente censure um acórdão desse mesmo Tribunal. Este despacho não fez aplicação do artigo 410.º do Código de Processo Penal, sendo incompreensível a pretensão da reclamante de “cindibilidade” do recurso perante uma decisão que aprecia uma única questão, com um só fundamento, por aplicação de uma única norma, que não é desse preceito, mas do artigo 405.º do Código de Processo Penal.
Assim, como se decidiu na decisão sumária, não pode conhecer-se do objecto do recurso de constitucionalidade.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e em condenar a recorrente nas custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 30 de Novembro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício