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Processo n.º 957/2004
3.ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Não se conformando com a decisão proferida na 1ª Secção da Vara Mista de Coimbra e por intermédio da qual foi indeferido a providência de ratificação de embargo de obra nova que foi proposta por A. e mulher, B., contra C. e mulher, D., agravaram os requerentes para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Na alegação adrede produzida, os recorrentes os mesmos sustentaram, no que ora releva:
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................ De facto não é apenas o direito de tapagem que está em causa. Esse, possivelmente será menor. Embora fosse o primeiro a ser invocado pelos requerentes.
É que estão em crise também os direitos conferidos pelos artºs 1351º, 352, 1393º e 1563º do CC. (servidão legal de escoamento, a que os requeridos estavam sujeitos pela configuração natural dos terrenos e que alteraram ficando as águas a correr para o prédio dos requerentes; Servidão esta que poderá ficar constituída se não houver oposição dos requerentes (1544º a 1548º do CC). O direito à não existência de instalações prejudiciais como será a existência de uma oficina com os barulhos, cheiros e poluentes associados (artº 1347º); E tais obras põem em risco o prédio dos requerentes desmo[rona]mentos dada a alteração intolerável de 6 metros levada a cabo (1348º); E viola os direitos de propriedade dos requerentes (1305º) defesa que compete a estes (1315º). Mas estão em jogo também direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa. Desde logo no artº 62º: o direito à propriedade com todos os direitos inerentes. Depois o direito à habitação em condições de higiene e conforto, que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (artº 65º), direito este que se impõe directamente aos requeridos e engloba o direito à segurança na habitação; e à própria Câmara Municipal em termos de política urbana global; bem como o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (artº
66º) que os requeridos estão a colocar em crise transformando o terreno e habitação dos requerentes em espaço insalubre, sem sol, sem luz e cheio de humidade. E o direito [a] defender as suas posições e a lutar por eles participando e exigindo uma Administração leal, aberta e transparente, que infelizmente não é a regra neste país, sobretudo a nível de obras particulares. Acresce que o artº 412º do CPC exige apenas que o requerente se julgue ofendido e que a obra cause ou ameace causar prejuízo. Ora, no caso dos autos há direito real, há ofensa real, há prejuízo real, e foram cumpridos todos os demais requisitos do artº 412º do CPC pelo que deveria ter-se deferido a providência. IV - EM CONCLUSÃO
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4- Verificaram-se todos os requisitos do artº 412º do CPC.
5- De facto há lesão dos direitos dos requerentes, desde os direitos de propriedade, aos direitos constitucionais, acima referenciados.
6- Há os direitos que se pretendem proteger.
7- E há prejuízo real consubstanciado nas referidas violações que tornam o prédio dos requerentes insalubre e in[ ]abitável.
8- A intolerável atitude dos requeridos viola[ ] os direitos dos requerentes relativamente à fruição do seus prédio, constitu[i] servidões de escoamento ilegais, e colocam em risco de desmoronamento e de suportar cheiros, barulhos e poluentes.
9- A douta decisão recorrida violou o disposto nos artºs 653º, 655º 659º e 668º nº 1 c), d) e e) do CPC e ainda nos artºs 1360º a 1365º, 1563º, 1544º a 1548º,
1347º, 1348º, 1305, 1315º, 1351º, 1352º, 1353º do C.C. e 62º, 65º, 66º, e 268º da Constituição da República Portuguesa.
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O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 16 de Março de 2004, negou provimento ao agravo, pois que, em síntese, entendeu não ter ficado, “sequer sumariamente, demonstrado o fundamento do embargo segundo os requisitos do art.º 412.º do Cod. Proc. Civil” e que “a questão entre as partes, nos termos em que” vinha colocada (ou seja, a de a obra de cujo embargo se solicitou ratificação se encontrar licenciada pela Câmara Municipal de Coimbra), haveria “que ser dirimida no foro administrativo, porquanto” estava “em causa uma decisão da Câmara Municipal proferida no âmbito da sua competência legal”.
Desse aresto, após terem suscitado as respectivas reforma e aclaração, pretensão que foi indeferida por acórdão de 1 de Junho de
2004, recorreram os requerentes para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b), f) e i) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dizendo que ele ofendia “preceitos constitucionais, nomeadamente os fixados pelos artºs 62º, 65º, 66º e 268º da Constituição da República Portuguesa (versão da Lei 1/2002), uma vez que os direitos à propriedade, à habitação, à intimidade pessoal e privacidade familiar, ambiente sadio e equilíbrio e a uma Administração leal e transparente foram postergados”, não tendo a decisão proferida apreciado “devidamente as questões de facto e de direito existentes nos autos”, assim sendo violados os artigos 1351º, 352º (porventura quereriam escrever 1352º), 1393º, 1563º, 1544º a 1548º, 1347º, 1348º, 1305º e 1315º do Código Civil e 412º do Código de Processo Civil.
O Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, por despacho de 29 de Junho de 2004, não admitiu o recurso, fundando-se na circunstância de os requerentes, na alegação de recurso para aquele Tribunal de 2ª instância, bem como em alguma “outra parte do processo”, não terem
“suscitado qualquer questão relacionada com aplicação ou recusa de aplicação de lei inconstitucional ou alegadamente inconstitucional”, sendo que, alegar “como vem alegado, que a decisão recorrida viola, além de outras normas da legislação ordinária, também direitos consagrados na Const. da R. Portuguesa, não é suscitar questão de inconstitucionalidade”.
É deste despacho que, pelos requerentes, vem deduzida reclamação para o Tribunal Constitucional (embora endereçada ao “SR. CONSELHEIRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA”), dizendo, em suma, que “o douto despacho ora proferido e objecto da presente reclamação, a pretexto da fundamentação, oferece já uma decisão sobre a matéria de fundo”, ou “seja, acaba por julgar improcedente o recurso para o Tribunal Constitucional”, estando os mesmos requerentes “em crer que há usurpação de poder”.
Dada «vista» dos autos ao Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, pronunciou-se o mesmo no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
2. É manifestamente improcedente a vertente reclamação.
Em primeiro lugar, o recurso para o Tribunal Constitucional esteado nas f) e i) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 é totalmente descabido, por isso que, de uma banda, não foi, pelo acórdão ora intentado recorrer, aplicado qualquer normativo constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado ou de estatuto de Região Autónoma ou qualquer norma constante de diploma regional com fundamento na sua ilegalidade por violação de estatuto de Região Autónoma ou de lei geral da República. Por outra, de todo em todo, não se vislumbra que o acórdão prolatado no Tribunal da Relação de Coimbra tenha recusado a aplicação de norma ínsita em acto legislativo com fundamento na sua contraditoriedade com uma convenção internacional ou tenha aplicado norma em desconformidade com o anteriormente decidido sobre essa questão pelo Tribunal Constitucional.
Pelo que tange ao recurso ancorado na alínea b) dos ditos número e artigo da Lei nº 28/82, como à saciedade resulta do relato supra efectuado, precedentemente ao acórdão tirado no Tribunal da Relação de Coimbra, não foi assacada a qualquer norma jurídica infra-constitucional o vício de desarmonia com a Lei Fundamental.
Na verdade, o que foi defendido na alegação do agravo interposto para aquele Tribunal foi que a decisão judicial então impugnada violava determinados preceitos vertidos no Diploma Básico.
Ora, como sabido é, e resulta, quer da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição, quer da assinalada alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, objecto dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade são normas e não quaisquer outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
Neste contexto, e como os ora reclamantes não imputaram qualquer enfermidade constitucional a alguma norma, falece, no caso sub specie, um dos requisitos do recursos a que se reporta a alínea b) do nº 1 do citado artº 70º, justamente aquele que consiste na suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa antes do proferimento da decisão intentada censurar perante o Tribunal Constitucional.
Assinala-se, por último, que o despacho agora sob reclamação não veio a decidir sobre qualquer questão que porventura teria sido desejada submeter ao veredicto deste Tribunal, uma vez que se limitou a não admitir o recurso para ele interposto, não convocando minimamente para tal fim uma fundamentação baseada na manifesta improcedência do recurso, o que, aliás, até seria lícito, atento o preceituado na parte final do nº 2 do artº 76º da Lei nº 28/82, pelo que, mesmo nessa eventualidade, não consubstanciaria qualquer usurpação dos poderes cognitivos deste órgão de administração de justiça.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se os impugnantes na taxa de justiça, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 19 de Novembro de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Artur Maurício