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Processo n.º 856/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O MUNICÍPIO DE VAGOS reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator no Tribunal Constitucional que decidiu não conhecer do recurso, alegando os seguintes fundamentos:
«l - O ora reclamante, no requerimento de interposição de recurso para esse alto tribunal, invocou três fundamentos: a) violação, pelo acórdão recorrido do STJ, das normas dos arts. 20º, nº 1 e
202° n° 2 da Constituição da República, ao interpretar, como interpretou, a alínea b), n° 2 do art. 669° do CPC, para não proceder à reforma do aresto: b) violação, pelo mesmo acórdão, da norma do n° l do art. 205° da Constituição da República ao interpretar, como interpretou, a norma do n° 3 do art. 659º, 'ex vi' n° 2 do art. 713° do CPC, sobre a fundamentação da decisão do acórdão reformando, por omitir as razões de facto e de direito, relativamente à repristinação do 1° contrato promessa; c) e violação do princípio da confiança ínsito no princípio de Estado de Direito Democrático, plasmado no art. 2° da Constituição da República.
2 – Vª Exª, não obstante transcrever os referidos três fundamentos do recurso para esse Tribunal Constitucional, apenas analisou os dois primeiros para 'não tomar conhecimento do recurso', na tese seguida por V. Exª.
3 – Mas, não tendo apreciado o 3° fundamento não está, porém, fora das probabilidades, conhecer do recurso, mesmo à luz do critério seguido, tanto mais que tal fundamento (violação do princípio da confiança) é autónomo e diferente dos dois anteriores.
Pelo exposto, argui-se a nulidade, por omissão de pronúncia, da aliás douta Decisão Sumária aguardando-se que a mesma seja declarada e admitido o recurso, seguindo-se os demais termos processuais.»
2 – Os reclamados responderam pedindo o indeferimento da reclamação e dizendo:
«l) - Só uma infinita paciência pode aturar este malicioso litigante 'de borla', mas sem capêlo, pois a Recorrida está sem o terreno e sem avultada quantia há anos e anos. Com efeito,
2) - O Recorrente vem, paulatinamente, subindo todos os degraus da dilação, tentando, em vão, alterar a douta decisão em causa por outra que lhe seja mais favorável, e não arguir nulidades ou inconstitucionalidades, como V. Exª. e o Venerando Supremo Tribunal de Justiça já salientaram à saciedade. Pois,
3)- Como é por demais sabido só pode ser objecto de recurso para este Venerando Tribunal 'UMA NORMA CUJA VALIDADE CONSTITUCIONAL SE QUESTIONE E DE CUJA APLICAÇÃO TENHA DECORRIDO A DECISÃO RECORRIDA' e 'NÃO A PRÓPRIA DECISÃO RECORRIDA'. Ora,
4) - O Recorrente invocou no seu requerimento de interposição de recurso APARENTEMENTE três fundamentos, mas na realidade apenas dois. Com efeito,
5) - O PRIMEIRO consistiria em NÃO SE TER TOMADO EM CONSIDERAÇÃO ELEMENTOS RELEVANTES DO PROCESSO, EM ESPECIAL, DE NATUREZA DOCUMENTAL, QUE, SÓ POR SI, IMPLICARIAM DECISÃO DIVERSA DA PROFERIDA (alínea b), nº 2, do Artigo 669º do C.P.C., e Artigos 20º, n° 1, e 202°, nº 2, da Constituição R.P.);
6) - E O SEGUNDO em SE TER OMITIDO AS RAZÕES DE FACTO E DE DIREITO QUE JUSTIFICASSEM DA DECISÃO DE SE CONSIDERAR RENASCIDO O 1º. CONTRATO PROMESSA (n°
3 do Artigo 659º, 'ex vi nº 2 do Artigo 713° do C.P.C. e n°. 1 do Artigo 205° da Constituição).
7) - Quanto ao TERCEIRO, não só, ao contrário do que fez nos outros, não invocou explicitamente o fundamento, como as normas citadas indicam a repetição, pelo menos parcial, do segundo: - 'quando não se especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão' e 'conheça de questões de que não podia tomar conhecimento'.
8)- Seja como for, a excelente e bem fundamentada decisão sumária faz referência a esse aparente fundamento do recurso na pagina 8 do seu douto aresto.
9) - Por outro, faz nela uma apreciação global dos três fundamentos, que têm todos o mesmo defeito, que impedem o conhecimento do recurso: não visam a declaração de inconstitucionalidade das normas com determinado sentido de interpretação mas sim a alteração da própria decisão de fundo que lhe seja mais favorável, porquanto a mesma tomou em consideração os elementos probatórios que entendeu adequados, justificou-a de facto e de direito e não conheceu de questões que não pudesse conhecer.»
3 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – município de vagos recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de
8 de Junho de 2004, “proferido sobre o pedido de reforma do acórdão, de 27 de Janeiro último (...), e de arguição de nulidades e inconstitucionalidades”.
2 – O requerimento de interposição de recurso é, na parte que aqui importa considerar, do seguinte teor:
“[...]
«Normas cuja inconstitucionalidade se requer que o Tribunal Constitucional aprecie, inconstitucionalidade essa que foi suscitada no já referido pedido de reforma do acórdão de 27/01/04, e que o acórdão ora recorrido indeferiu expressa ou tacitamente e indicação das normas constitucionais e princípio constitucional violados:
- alínea b), n° 2 do art. 669° do CPC, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, ao não proceder à reforma ao acórdão, por não se tomar em consideração elementos relevantes do processo, em especial, de natureza documental, que, só por si, implicariam decisão diversa da proferida, violando-se, assim, as normas dos arts. 20°, n° 1 e 202°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que a interpretação daquela norma em conformidade com a Constituição da República impunha a reforma do acórdão de
27/01/04;
- n° 3 do art. 659° , 'ex vi' n° 2 do art. 713°, do CPC, com a interpretação seguida no acórdão recorrido sobre a fundamentação da decisão (acórdão reformando) ao considerar renascido o 1º contrato promessa, omitindo as razões de facto e de direito que tal justificassem, ao arrepio da norma do n° 1 do art.
205° da Constituição da República;
- Foi ainda violado, com a interpretação e aplicação seguidas pelo acórdão recorrido das normas das alínea d), 2ª parte, e alínea b ), ambas do n° 1 do art. 668° do Código de Processo Civil, bem como das normas do art. 26° e 36°, a) da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, o princípio da confiança ínsito no princípio de Estado de Direito Democrático plasmado no artigo 2° da Constituição da República, ao julgar improcedente as nulidades arguidas, sendo certo que se fosse seguida uma interpretação das mesmas normas em conformidade com a Constituição da República tais nulidades seriam julgadas procedentes.»
3 – O acórdão ora recorrido indeferiu o pedido de reforma formulado pelo ora recorrente do acórdão do STJ, de 27 de Janeiro de 2004, com base em “evidente lapso por parte do acórdão reformando quando concluiu que o 1º contrato tinha renascido [...], face à admitida rejeição do segundo pela autora” - acórdão este que concedeu a revista pedida pela autora A. do acórdão da Relação de Coimbra que havia absolvido aquele recorrente do pedido e manteve a sentença da 1ª instância proferida pelo Tribunal Judicial da comarca de Vagos que, por seu lado, o condenara a pagar à mesma autora a quantia de 590 000 000$00 e juros desde a citação – e bem ainda o pedido de anulação do mesmo acórdão fundado na existência de nulidade por excesso de pronúncia (consubstanciada, segundo o alegado, em o acórdão reclamado haver considerado, ao invés do decidido pela Relação, que “a autora já havia rejeitado o 2º contrato e a Câmara Municipal não o podia ratificar” e em haver apreciado a “validade do 1º contrato e de todas as suas cláusulas, a razoabilidade, proporcionalidade ou a justeza da cláusula penal de 500 mil contos, bem como o seu incumprimento definitivo por causa imputável ao réu, sem que a Relação se tivesse pronunciado sobre ela, omitindo, também, desta forma, um grau de jurisdição”) e de nulidade por falta de
“especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão condenatória do réu ao cumprimento do 1º contrato”.
4 – Nesse articulado de pedido de reforma e de arguição de nulidades do anterior acórdão do STJ, o ora recorrente discorreu sobre o epíteto “ IV - Das inconstitucionalidades” o seguinte:
«A) Caso Vossas Ex.as não reformem o acórdão em análise nem o anulem nos termos expostos forçoso é concluir pelas seguintes inconstitucionalidades:
1. Ao decidirem agora Vossas Ex.as, com a aplicação da citada norma do art.
669°, nº 2, b), do CPC, e se fizerem opção por uma interpretação dela no sentido de excluir a requerida reforma do acórdão, por não se deverem tomar em consideração, na presente situação, elementos relevantes no processo, em especial, de natureza documental, que, por si só, implicariam decisão diversa da proferida (elementos que, por lapso manifesto, não foram convenientemente considerados no acórdão), estarão Vossas Ex.as a interpretar e a aplicar aquela norma e a usar um critério normativo em violação das normas dos arts 20°, nº 1 e
202°, nº 2, da Constituição, por se estar a vedar o acesso à via judiciária do uso de meios processuais incidentais, na perspectiva de uma justiça que deve ser administrada de modo correcto e adequado aos interesses das partes em litígio, reformando-se o que for de reformar.
2. Pois que a interpretação e aplicação da mesma norma, para ser conforme à Constituição, obriga a considerar ou a termos em consideração tais elementos relevantes no processo, e, se assim for, necessariamente levará a outro tipo de decisão da causa, como atrás ficou exposto.
B) Mas o acórdão em análise padece de outra inconstitucionalidade.
1. Com efeito, estatui o nº 1 do art. 205° da Constituição que 'As decisões dos tribunais (...) são fundamentadas na forma prevista na lei'.
2. E o nº 3, do art. 659°, 'ex vi' nº 2 do art. 713°, ambos do Código de Processo Civil, preceitua: 'Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer'.
3. Ora, o acórdão em causa carece de fundamentação, quer de facto quer de direito, nos termos já expostos, ou seja, o aresto não refere as razões pelas quais foi rejeitado o segundo contrato e 'renasceu' o primeiro, na sequência do que o requerente foi condenado na cláusula penal nele inscrita, não obstante as partes terem celebrado outro em sua substituição.
4. Optar por uma interpretação e aplicação da apontada norma do nº 3, do art.
659°, no sentido de que o acórdão está suficientemente fundamentado, então, estar-se-á a interpretar e a aplicar aquela norma e a usar um critério normativo com violação da norma do nº 1 do art. 205° da Constituição, já que, objectivamente, a decisão que considerou 'renascido', ou repristinado, o 1° contrato promessa, assim condenando o requerente a pagar à autora a cláusula penal dele constante, não está fundamentada.
5. Logo, o acórdão enferma desta inconstitucionalidade, que deve ser decretada, com todas as legais consequências.
C) Violação do princípio da confiança ínsito no princípio de Estado de Direito Democrático plasmado no artigo 2° da Constituição
Ao decidirem, com a aplicação das citadas normas das alíneas d), 2ª parte, nº 1, b), nº 1, do artigo 668° do Código de Processo Civil, bem como das normas do art. 26° e 36°, a) da referida Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e se V .as Ex.as optarem por uma interpretação das mesmas no sentido de julgarem improcedente a arguição das respectivas nulidades, então violam o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, constante do art. 2° da Constituição da República Portuguesa.»
5 – No acórdão ora recorrido, após se ter indeferido o pedido de reforma, considerou-se o seguinte relativamente às questões das nulidades e das inconstitucionalidades suscitadas:
“[...]
«E não existem também quaisquer nulidades, 'maxime' as apontadas pelo Réu. Não houve, na verdade, qualquer excesso de pronúncia, apreciando-se tão só o que havia a apreciar e nada mais do que isso, tendo-se especificado devidamente os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão condenatória do réu ao cumprimento do 1 ° contrato. Aqui, como é evidente, não vamos tomar a reproduzir o que consta do Acórdão que proferimos com unanimidade. Voltaremos a dizer, isso sim (e como o fizemos em outro Acórdão que indeferiu o pedido de aclaração do primeiro Acórdão) que não estamos também em presença de qualquer inconstitucionalidade. O Acórdão que é visado pelo Réu tem necessária fundamentação de facto e de direito, contrariamente ao afirmado por aquele, não havendo por isso violação do artº 205°, nº 1 da C.R.P.. Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, se decide indeferir o requerido.»
6 – Em face do relatado considera-se que o concreto recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto cabe na previsão do n.º 1 do art.º
78º-A da LTC, pelo que se passa a decidir nos termos aí permitidos. Na verdade, como se irá demonstrar, o Tribunal Constitucional não poderá tomar conhecimento do objecto do recurso. E anote-se que a um tal resultado não obsta a circunstância de o recurso haver sido admitido pelo tribunal a quo, pois essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme se determina no n.º 3 do art.º 76º da LTC.
7 – Estabelecem os artigos. 280º, n.º 1, al. b), da CRP, e 70º, n.º 1, al. b), da LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, só podem constituir objecto desse recurso constitucional normas jurídicas que tenham constituído ratio decidendi da decisão (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no DR, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,
1998, p. 821). O recurso de consitucionalidade tal como foi gizado pelo legislador constitucional – com natureza instrumental e relativamente a normas jurídicas - tem em vista o controlo da conformidade com a Constituição (as normas e princípios constitucionais) das normas jurídicas que tenham sido convocadas como suporte normativo da concreta decisão proferida. Sendo assim estão arredados do objecto do recurso os outros actos admitidos na ordem jurídica, embora estes façam aplicação directa das normas e princípios constitucionais, como acontece com as decisões judiciais (sentenças e despachos), os actos administrativos e os actos políticos. Deste modo, não pode no recurso de constitucionalidade sindicar-se a correcção jurídica da sentença, no que concerne à aplicação que a mesma faça directamente das normas de direito infraconstitucional e/ou das normas e princípios constitucionais. A violação directa das normas e princípios constitucionais pela decisão judicial, atenta a circunstância de não vigorar entre nós o meio constitucional do recurso de amparo, apenas pode ser conhecida no plano dos recursos de instância previstos na respectiva ordem de tribunais. Não obstante o recurso de constitucionalidade respeitar a uma decisão judicial e a decisão naquele proferida no sentido da inconstitucionalidade ou da constitucionalidade da(s) norma(s) jurídica(s) nele sindicadas poder afectar a manutenção da decisão, na medida em que um juízo nele tirado sobre a questão de constitucionalidade em sentido desconforme com o efectuado na decisão proferida pelo tribunal recorrido obrigará à reforma desta, o objecto do recurso é tão só a norma jurídica que constitua a ratio decidendi da decisão. Nesse recurso apenas cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se a norma jurídica concretamente aplicada é ou não constitucionalmente válida.
8 – Ora, no caso sub judice, é evidente, quer pelos termos em que a questão de constitucionalidade vem colocada no requerimento de interposição de recurso quer pelo modo como a mesma foi suscitada no requerimento de arguição de nulidades – peças estas que, na parte pertinente e para constatação dessa evidência, se deixaram atrás transcritas – que o que o recorrente discute é não a validade perante a Lei Fundamental de certo critério normativo (que enuncie) que haja sido aplicado pelo acórdão recorrido como fundamento normativo da decisão a que chegou mas antes a correcção do juízo subsuntivo-decisório levado a cabo pelo tribunal a quo à luz dos preceitos (art.ºs 20º, n.º 1 e 202º, n.º 2 da Constituição) e princípios constitucionais (princípio do Estado de direito democrático plasmado no art.º 2º da Constituição) que identifica. Segundo a argumentação do recorrente, a interpretação da alínea b) do n.º 2 do art.º 669º do Código de Processo Civil levada a cabo pelo tribunal a quo, nos termos da qual lhe foi possível chegar ao resultado de “não proceder à reforma do acórdão reclamado por não tomar em consideração elementos relevantes do processo, em especial de natureza documental que só por si implicariam decisão diversa da proferida”, viola as normas dos art.ºs 20º, n.º 1 e 202º, n.º 2 da Constituição. Para o recorrente, a não consideração pelo acórdão recorrido “dos elementos constantes do processo, em especial, dos de natureza documental” que (segundo o seu juízo de parte) implicariam uma decisão de sentido oposto à proferida relativamente ao pedido de reforma corresponde, ipso facto, à evidenciação de que o tribunal a quo adoptou uma interpretação da alínea b) do n.º 2 do art.º
669º do Código de Processo Civil que é atentatória das referidas normas constitucionais. O que se controverte é, pois, a correcção do juízo decisório que foi elaborado pelo tribunal relativamente à relevância a conferir a determinados factos e documentos constantes do processo: enquanto o tribunal entendeu que procedeu à sua correcta determinação e à sua correcta subsunção ao quadro normativo aplicável e nessa medida indeferiu o pedido de reforma da decisão, o recorrente defende que são outros os elementos factuais e documentais que constam do processo; que estes, devidamente projectados no plano jurídico, imporiam a solução da reforma do acórdão reclamado e a manutenção do decidido pela Relação e que, ao não ter-se decidido por este modo, tal só pode ter acontecido porque o tribunal a quo partiu de um entendimento da alínea b) do n.º 2 do art.º 669º do Código de Processo Civil que é inconstitucional. Consta-se, pois, relativamente a este preceito, que a controvérsia trazida pelo recorrente contende, apenas e só, com a determinação das circunstâncias específicas do caso concreto e com a relevância que lhes deve ser dada perante o direito e não com a validade do critério normativo que o tribunal seguiu para chegar à conclusão de que, segundo esse mesmo critério abstracto, não era caso de reforma da decisão. Sendo assim, o recurso tem por objecto não uma norma cuja validade constitucional se questione e de cuja aplicação tenha decorrido a decisão recorrida, mas a própria decisão recorrida.
Por seu lado, também relativamente à norma do n.º 3 do art.º 659º do CPC, aplicável por força do n.º 2 do art.º 713º do mesmo compêndio subjectivo, a situação é idêntica. Também aqui, como decorre claramente do requerimento de interposição do recurso e do requerimento de arguição de nulidades, o que o recorrente faz é imputar a violação do preceito constitucional (artigo 205º da Constituição) ao juízo do tribunal de “considerar renascido o 1º contrato promessa” com base no qual o veio a condenar e à circunstância de, segundo a sua alegação (vide segundo requerimento, n.º 3), «o acórdão em causa carece(r) de fundamentação, quer de facto quer de direito, nos termos já expostos, ou seja, o aresto não refere (referir) as razões pelas quais foi rejeitado o segundo contrato e “renasceu” o primeiro, na sequência do que o recorrente foi condenado na cláusula penal nele inscrita, não obstante as partes terem celebrado outro em sua substituição», acabando a sustentar que um juízo no sentido de considerar o acórdão suficientemente fundamentado só poderia advir de uma interpretação da norma do art.º 659º, n.º 3 do CPC violadora do referido preceito constitucional. Mais uma vez o recorrente erige á categoria de critério normativo constitucionalmente sindicável, como traduzindo um critério abstracto, o resultado do juízo concretamente levado a cabo pelo tribunal relativo às específicas circunstâncias do caso que decidiu, estabelecendo uma antítese não entre qualquer critério abstracto que houvesse sido seguido pelo tribunal relativo ao conteúdo do dever de fundamentação das suas decisões e a norma constitucional convocada mas entre a própria decisão judicial, no seu resultado alcançado, e o preceito constitucional. Mais uma vez, o recorrente pretende sindicar não a inconstitucionalidade de qualquer norma mas a constitucionalidade da decisão judicial em si própria. Deste modo também o Tribunal não poderá tomar conhecimento deste objecto do recurso.
9 – Destarte, atento tudo o exposto decide-se não tomar conhecimento do recurso. Sem custas por delas estar isento o recorrente.»
B – Fundamentação
4 – Como se depreende dos seus próprios termos, a reclamação põe em causa não o acerto da fundamentação desenrolada na decisão reclamada, mas antes a nulidade da decisão de não conhecimento do recurso, por, na sua óptica, esta não ter apreciado o terceiro fundamento alegado no requerimento de interposição do recurso – “violação do princípio da confiança ínsito no princípio de Estado de direito democrático, plasmado no art.º 2º da Constituição da República” – pelo que “não está fora das possibilidades, conhecer do recurso, mesmo à luz do critério seguido, tanto mais que tal fundamento (violação do princípio da confiança) é autónomo e diferente dos dois anteriores”.
5 – O reclamante não tem, porém, qualquer razão, pese embora não se tenha dispensado ao fundamento de recurso cuja falta de apreciação invoca o tratamento desenvolvido que se deu aos demais.
Recorde-se que a decisão sumária dá devida conta da parte do objecto do recurso cuja falta de apreciação se alega, mencionando-a até por transcrição do teor do requerimento de interposição do recurso:
«[...]
Foi ainda violado, com a interpretação e aplicação seguidas pelo acórdão recorrido das normas das alíneas d), 2ª parte, e alínea b), ambas do n.º
1 do art.º 668º do Código de Processo Civil, bem como das normas do art.º 26º e
36º, a) da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, o princípio da confiança ínsito no princípio de Estado de Direito Democrático plasmado no artigo 2º da Constituição da República, ao julgar improcedente as nulidades arguidas, sendo certo que se fosse seguida uma interpretação das mesmas normas em conformidade com a Constituição da República tais nulidades seriam julgadas procedentes».
E após dissertar sobre o quadro jurídico dos pressupostos específicos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC, em cujo tipo se enquadra o interposto pelo reclamante, afirmou-se na decisão reclamada:
«8 – Ora, no caso sub judice, é evidente, quer pelos termos em que a questão de constitucionalidade vem colocada no requerimento de interposição de recurso quer pelo modo como a mesma foi suscitada no requerimento de arguição de nulidades – peças estas que, na parte pertinente e para constatação dessa evidência, se deixaram atrás transcritas – que o que o recorrente discute é não a validade perante a Lei Fundamental de certo critério normativo (que enuncie) que haja sido aplicado pelo acórdão recorrido como fundamento normativo da decisão a que chegou mas antes a correcção do juízo subsuntivo-decisório levado a cabo pelo tribunal a quo à luz dos preceitos (art.ºs 20º, n.º 1 e 202º, n.º 2 da Constituição) e princípios constitucionais (princípio do Estado de direito democrático plasmado no art.º 2º da Constituição) que identifica.».
A questão está, pois, aí expressamente abordada e apreciada, não havendo qualquer omissão de pronúncia.
De qualquer modo, é por demais evidente que o que o reclamante discute nesse terceiro fundamento do recurso é a correcção do concreto juízo feito pela decisão recorrida, quer no que tange à bondade da interpretação que esta fez das normas dos das alíneas d), 2ª parte, e alínea b), ambas do n.º 1 do art.º 668º do Código de Processo Civil, bem como das normas do art.º 26º e 36º, a) da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, quer no que se refere ao seu juízo de aplicação/subsunção, contrapondo que outro seria o resultado do julgamento efectuado relativamente às nulidades que arguira “se fosse seguida uma interpretação das mesmas normas em conformidade com a Constituição da República” ou de acordo com o “princípio da confiança ínsito no princípio de Estado de direito democrático plasmado no artigo 2º da Constituição da República”.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, decide o Tribunal Constitucional indeferir a reclamação.
Sem custas por delas estar isento o reclamante.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos