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Processo n.º 414/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Comarca de Ílhavo, em que figura como recorrente o Ministério Público e como recorrido A., o defensor oficioso do arguido requereu que a data designada para a realização da audiência final ficasse sem efeito, em virtude da sua impossibilidade de estar presente, devido a outras diligências agendadas para o mesmo dia e hora, indicando três datas alternativas para a efectivação daquela audiência(cf. fls. 138). Tal requerimento foi deferido através do despacho de fls. 139 que tem o seguinte teor: Defere-se a alteração de data por se julgar inconstitucional a redacção do n° 4 do artigo 312° do Código de Processo Penal, ao restringir a obrigação de concertação da data de julgamento com o advogado constituído – por violação dos artigos 13º, 20º e 32° da Constituição.
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade obrigatório, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma do artigo 312º, nº 4, do Código de Processo Penal. Junto do Tribunal Constitucional o recorrente apresentou alegações, concluindo o seguinte:
1 – A norma constante do artigo 312°, n° 4, do Código de Processo Penal deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a tornar processualmente admissível o mecanismo de “concertação” de agendas entre o defensor oficioso do arguido e o juiz, permitindo a alteração da data originariamente designada sempre que o defensor a venha justificadamente sugerir, com fundamento na impossibilidade de comparência na data unilateralmente designada, em consequência de sobreposição de diligências judiciais.
2 – Na verdade, a interpretação normativa que excluísse tal possibilidade de ponderação judicial da “sugestão” apresentada pelo defensor oficioso, limitando-a aos advogados constituídos, ofenderia o princípio da igualdade e – ao dificultar a eficácia da defesa em audiência do arguido assistido pelo defensor oficioso – o próprio princípio das garantias de defesa.
3 – Termos em que deverá ser proferida decisão interpretativa, nos moldes preconizados na conclusão 1ª, em conformidade com o artigo 82°, n° 3, da Lei n°
28/82.
O recorrido, decorrido o respectivo prazo legal, não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
3. O artigo 312º, nº 4, do Código de Processo Penal, tem a seguinte redacção: Se no processo existir advogado constituído, o tribunal deve diligenciar pela concertação da data para audiência, de modo a evitar o conflito com a marcação de audiência, por acordo feito ao abrigo do artigo 155º do Código de Processo Civil.
O preceito transcrito, na actual redacção, introduzida pelo Decreto-Lei nº
320-C/2000, de 15 de Dezembro, visa prevenir o risco de sobreposição de datas de diligências a que devem comparecer os mandatários. Contudo, o sentido estritamente literal da disposição legal parece apontar para a restrição de tal regime aos casos em que o sujeitos do processo têm “advogado constituído”, excluindo a possibilidade de “concertação de agendas” nos casos em que ao arguido é nomeado defensor oficioso. Ora, será racionalmente justificado e constitucionalmente legítimo restringir liminarmente a possibilidade de concertação de agendas aos casos em que o arguido constituiu advogado no processo, excluindo, em absoluto, de tal solução jurídica o defensor oficioso?
4. A resposta é negativa. As vantagens da concertação de agendas são manifestas, quer na perspectiva da tramitação dos processos em concreto, quer na perspectiva do funcionamento do sistema judicial em geral. Com efeito, a marcação unilateral da data da audiência pelo tribunal potencia as possibilidades de adiamento por impossibilidade de comparência do defensor. É verdade que para o acto sempre poderia ser designado defensor oficioso, nos termos do artigo 67º do Código de Processo Penal. No entanto, tal solução, evidentemente útil, levaria a que na audiência interviesse como defensor quem teria menor conhecimento do processo, por não o ter acompanhado, o que se repercute naturalmente na eficácia da defesa. As perturbações processuais a que se fez referência são susceptíveis de acontecer tanto nos processos em que o defensor é constituído quanto nos processos em que o defensor é nomeado oficiosamente e posteriormente substituído por outro em razão de uma impossibilidade do agente. Na verdade, o estatuto e a função do defensor nomeado não diferem do estatuto e da função do defensor oficioso, não se divisando qualquer fundamento para a diferenciação que uma interpretação puramente literal da norma do artigo 312º, nº 4, do Código de Processo Penal sugere. Aliás, tal solução diferenciadora tenderia a atingir com maior frequência os arguidos economicamente carenciados, pois são estes que maioritariamente são assistidos por defensor oficioso.
5. Sublinhe-se que nos presentes autos está apenas em causa a possibilidade de o juiz, em termos prudenciais e casuísticos, designar data diversa da inicialmente marcada de forma unilateral, mediante a sugestão do defensor oficioso que, antecipadamente, comunique a impossibilidade de estar presente, por sobreposição de diligências, indicando três datas possíveis. O preceito legal afectaria, interpretado em termos puramente literais, a plenitude das garantias de defesa do arguido e fragilizaria quem mais dificuldades pode ter em assegurar uma defesa eficaz, pondo em causa a igualdade de condições no exercício do direito de defesa. Contudo, é manifesto que tal preceito comporta uma outra interpretação conforme à Constituição: em razão do elemento teleológico da norma em causa, que é a garantia de um exercício adequado da defesa em situações de dificuldade de agenda do defensor e tendo em conta o princípio da igualdade, as garantias de defesa e os desígnios de celeridade e eficácia processuais (artigos 13º e 32º, nºs 1 e 2, da Constituição), o artigo 312º, nº 4, do Código de Processo Penal deve ser interpretado extensivamente, de modo a que o acordo sobre a data da audiência também possa ocorrer quando o defensor é nomeado oficiosamente, e não apenas quando é constituído pelo arguido. E é ainda de uma verdadeira interpretação que se trata, porque encontra na letra da lei um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (artigo
9º, nº 2, do Código Civil). Na verdade, não se pode excluir que, ao mencionar o advogado constituído, o legislador tenha procurado referir, ainda que imprecisamente, todos os casos em que já existe defensor, por contraposição com a hipótese de o defensor ainda vir a ser nomeado (ou constituído). Só esta interpretação extensiva, repete-se, atende ao elemento teleológico e é compatível com a Constituição.
6. Nestes termos, o Tribunal Constitucional deve negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, na medida em que esta recusou a aplicação de uma interpretação literal materialmente inconstitucional – por violar os artigos
13º e 32º, nºs 1 e 2, da Constituição –, recusa essa que é imposta, em geral, pelo artigo 204º da Constituição. Por outro lado, deve fixar como interpretação a seguir, ao abrigo do nº 3 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional – por ser a única compatível com a Constituição – , a que postula que o acordo sobre a data da audiência pode ter lugar quer quando há defensor constituído, quer quando o defensor foi nomeado oficiosamente.
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida na parte em que recusou a aplicação de uma interpretação literal da norma constante do artigo 312°, n° 4, do Código de Processo Penal, que viola os artigos 13º e 32º, nºs 1 e 2, da Constituição, por apenas admitir a concertação da data para a audiência quando existe advogado constituído, mas não quando existe defensor oficioso; b) fixar como interpretação a seguir, ao abrigo do nº 3 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional – por ser a única compatível com a Constituição
–, a que postula que há concertação da data para a audiência, ao abrigo do nº 4 do artigo 312º do Código de Processo Penal, quer quando existe advogado constituído, quer quando existe defensor oficioso.
Lisboa, 12 de Outubro de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos