Imprimir acórdão
Processo n.º 797/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 19 de Junho de 2002, A., melhor identificado nos autos, interpôs, no Tribunal do Trabalho do Barreiro, acção declarativa de condenação, em processo comum, contra o B., pedindo a condenação deste ao pagamento de um montante, a liquidar em execução de sentença, fruto da diferença entre a importância que lhe foi paga a título de subsídio de isenção de horário de trabalho entre 1 de Janeiro de 1993 – data em que começou a auferir remunerações adicionais através de um “plafond” anual de despesas no “Cartão C.” e de despesas de combustível – e 30 de Junho de 2001 – data da sua reforma por invalidez –, por o cálculo do valor de tal subsídio durante a constância da relação de trabalho ter tido apenas por referência a retribuição-base e as diuturnidades – com exclusão das referidas remunerações adicionais, que, pelo seu carácter regular e periódico, deviam, em seu entender, ser tidas igualmente como retribuição. Por sentença de 6 de Janeiro de 2003 foi a acção julgada improcedente e absolvido o réu do pedido, por se ter julgado válida a remissão abdicativa
(artigo 863.º, n.º 1, do Código Civil) alegada pelo demandado e documentalmente comprovada pelo acordo celebrado entre a entidade patronal e o ora recorrente, em 28 de Junho de 2001, nos termos do qual ambos “reconhecem a situação de invalidez do segundo, de harmonia com o pedido deste e o atestado médico que o acompanhava”, reconhecimento esse que produziria efeitos “em 30 de Junho de
2001, data a partir da qual o presente acordo se torna eficaz.” Na Cláusula Terceira do referido Acordo estipulava-se o seguinte:
“1. Com a reforma do Segundo Outorgante, caduca o contrato de trabalho vigente entre as partes.
2. Na data da cessação do contrato de trabalho e a título de compensação pecuniária de natureza global, a Primeira Outorgante paga ao Segundo, e este recebe, por crédito na sua conta de depósitos à ordem, o montante de Esc. 4 770
000$00 (Quatro milhões, setecentos e setenta mil escudos), líquido de impostos e quaisquer taxas.
3. O Segundo Outorgante declara-se integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, pelo que dá à Primeira Outorgante, no que respeita a tais créditos, quitação total e plena.” Recorreu o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando doutrina (Jorge Leite/Coutinho de Almeida, Colectânea de Leis do Trabalho) segundo a qual “o direito à retribuição é irrenunciável e é indisponível ou, pelo menos, parcialmente indisponível”, e escrevendo que “a aplicação do disposto no art.
863.º do Código Civil de créditos resultantes de um contrato de trabalho envolve uma violação a direitos fundamentais (art. 17.º da CRP)”. E nas conclusões das alegações disse:
“Além disso, essa douta decisão, com o ter considerado aplicável no disposto no art. 863.º do Código Civil à obrigação de uma Entidade Patronal para pagar remunerações salariais a um Trabalhador, violou o disposto nos arts. 17.º e
59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.” Por acórdão de 8 de Outubro de 2003, tirado na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, a sentença recorrida foi confirmada, com fundamentação idêntica à que fora expendida na 1ª instância e a que também aderira o Ministério Público no seu Parecer, emitido nos termos do artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho.
2.Recorreu então o autor para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para ver apreciada “a inconstitucionalidade da douta decisão recorrida, ao considerar válida a declaração de quitação geral prestada pelo Trabalhador no âmbito de um acordo de rescisão do seu Contrato de Trabalho, celebrado com a sua Entidade Patronal, uma vez que tal declaração viola o direito ao salário consagrado nos arts. 17.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República. Mais concretamente: o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a questão da inconstitucionalidade do disposto no art. 863.º do Código Civil
(Remissão), na vertente da sua aplicação às relações juslaborais, tendo em conta que o direito ao salário está relacionado com interesses de Ordem Pública e Social.” Admitido o recurso, foi determinada a produção de alegações que o recorrente encerrou desta forma:
“1º – A declaração de quitação geral prestada por um trabalhador no acto da cessação do seu contrato de trabalho, determinada por uma situação de reforma por invalidez, no sentido de que está integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e sua cessação, deve ser considerada nula, uma vez que tal declaração, prestada no âmbito da obrigação de pagar as retribuições vencidas na vigência de um contrato de trabalho, contende com interesses de Ordem Pública.
2º – Por isso o douto Acórdão recorrido, ao ter julgado válida a declaração de quitação geral prestada no Acordo de Cessação do Contrato de Trabalho celebrado entre o Recorrente e a Recorrida, violou o art. 94.º da LCT criada pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969.
3º – Além disso, esse douto acórdão com o ter considerado válida a mesma declaração e com o ter considerado aplicável o disposto no artigo 863.º do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar retribuições a um Trabalhador violou o disposto no art. 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.” Por sua vez, o recorrido concluiu assim as suas contra-alegações:
“A. É requisito ou pressuposto do recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15.11, que a questão de inconstitucionalidade haja sido suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a matéria da causa. B. As questões de inconstitucionalidade só podem ser referidas a normas jurídicas porque, sendo elas aplicáveis na decisão recorrida, não foram aplicadas por serem consideradas inconstitucionais, apenas podendo o Tribunal Constitucional conhecer, em sede de recurso, inconstitucionalidades normativas. C. Nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa o Recorrente não suscitou qualquer inconstitucionalidade normativa, limitando-se a pugnar pela inconstitucionalidade da decisão recorrida. D. O recurso interposto é inadmissível uma vez que só nas alegações para o Tribunal Constitucional o Recorrente suscitou a inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida. E. O artigo 863.º do Código Civil (remissão abdicativa) não viola qualquer disposição constitucional, designadamente o direito ao salário previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP. F. A possibilidade de, conjuntamente com o acordo de revogação do contrato de trabalho, ser estabelecida uma compensação pecuniária de natureza global onde se encontrem englobados todos os créditos já vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude dessa cessação, encontra-se expressamente prevista no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, sendo certo que, também esta norma, não viola qualquer preceito constitucional. G. Com a quebra do vínculo laboral desaparecem a subordinação jurídica e a subordinação económica em que o trabalhador se encontrava até esse acordo de cessação do contrato de trabalho, pelo que os direitos relacionados com eventual existência de créditos de natureza remuneratória passam a ser direitos disponíveis. H. Por se estar já no domínio de direitos disponíveis, a remissão abdicatória constante do acordo celebrado entre recorrida e recorrente é perfeitamente válida e não viola qualquer preceito constitucional, designadamente o direito ao salário previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa.” Cumpre apreciar e decidir, começando pela questão prévia suscitada pelo recorrido. II. Fundamentos
3.Como se deixou relatado, no texto das alegações apresentadas ao Tribunal da Relação de Lisboa, bem como – embora menos claramente – nas conclusões de tal peça processual, o recorrente imputou ao artigo 863.º do Código Civil uma violação de normas e princípios constitucionais (razão pela qual se determinou a produção de alegações no recurso de constitucionalidade). O facto de, por vezes, ter imputado a inconstitucionalidade também à própria decisão – que poderá ter estado na origem da omissão, na decisão recorrida, de um juízo expresso sobre a questão de constitucionalidade do artigo 863.º do Código Civil – não implica, porém, que se haja de desconsiderar a formulação constante das alegações (“a aplicação do disposto no art. 863º do Código Civil a créditos resultantes de um contrato de trabalho envolve uma violação a direitos fundamentais”) e que, nessa medida, conduz à conclusão de preenchimento do requisito consistente na suscitação da questão de constitucionalidade, durante o processo. Improcede, portanto, a questão prévia suscitada.
4.Também não releva o facto de serem eventualmente possíveis outros enquadramentos jurídicos para a situação: assim, “se o credor abdica do seu direito por troca de uma prestação diferente, que recebe no acto da abdicação, não há entre as partes uma remissão, mas uma dação em cumprimento” (pode ler-se em Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. II, 3ª ed., Coimbra, 1981, p.
216). E no entender de João Leal Amado (A protecção do salário, Coimbra, 1993, pp. 223-224), “a remissão (...) pressupõe que o credor conhece o seu direito, tem consciência da sua existência, sabe que ele ainda se encontra insatisfeito, e pressupõe, também, que o credor quer extinguir esse crédito, tem vontade de o abandonar, de dele se demitir. (...) Acontece que nada disto se passa, em princípio, com as declarações ora em apreço. Ao contrário: o trabalhador emite-as porque desconhece a existência de qualquer crédito seu ainda por satisfazer – ao declarar nada mais ter a exigir da entidade patronal, ele não pretende extinguir o seu crédito, ele julga que o seu crédito já se encontra extinto (...). Não há aqui, portanto, a mínima intenção de renunciar ao que quer que seja – não estamos, afinal, perante uma declaração de vontade, mas antes perante uma mera declaração de ciência”.
É que, como se escreveu no Acórdão n.º 44/85 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 408):
“Ao Tribunal Constitucional só cabe saber se a norma que o Tribunal recorrido desaplicou é ou não inconstitucional. Já não lhe pertence apreciar se essa norma era ou não chamada a aplicar-se ao caso. Para o Tribunal Constitucional a norma de direito infra-constitucional que vem questionada no recurso é um dado; cabe-lhe apenas verificar se essa norma é ou não inconstitucional. Saber se essa norma era ou não aplicável ao caso, se foi ou não bem aplicada -, isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional. Em princípio, o Tribunal Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infra-constitucional; apenas lhe compete controlar o modo como eles aplicam (ou não) o direito constitucional.” Conclui-se, portanto, que é a norma aplicada nos autos – o artigo 863º do Código Civil – que é objecto do presente processo de fiscalização concreta.
5. Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 863º do Código Civil quando aplicado, não propriamente à obrigação de uma entidade patronal pagar as importâncias devidas durante a vigência do contrato de trabalho a título de subsídio de isenção de horário de trabalho, calculadas nos termos pretendidos pelo trabalhador – o que não foi decidido nas instâncias, e, portanto, não pode estar em causa no presente processo –, mas antes como forma de considerar incluído tal eventual direito na compensação pecuniária de natureza global negociada e atribuída como complemento de um acordo de cessação de um contrato de trabalho negociado entre as partes (embora fundado em invalidez do trabalhador, razão pela qual não se julgou aplicável o n.º 4 do artigo 8.º do Regime Jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro: “Se no acordo de cessação, ou conjuntamente com este, as partes estabelecerem uma compensação pecuniária de natureza global para o trabalhador, entende-se, na falta de estipulação em contrário, que naquela foram pelas partes incluídos e liquidados os créditos já vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude dessa cessação”), há que excluir, desde já, o que dispõe o artigo
863º, n.º 2, do Código Civil, que se refere apenas às remissões com carácter de liberalidade, mandando tratá-las como doações. Não se discute que não é este o caso dos autos, não tendo existido qualquer animus donandi, e estando em causa, portanto, apenas a norma do n.º 1 daquele artigo 863.º. Dispõe esta:
“Artigo 863.º
(Natureza contratual da remissão)
1. O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor.
2. (...)”
6. Entende o recorrente que a inconstitucionalidade de tal norma resulta da sua contrariedade ao disposto nos artigos 17.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, mas apenas na medida em que o contrato de remissão seja celebrado entre um trabalhador e a sua entidade patronal por ocasião da cessação do seu contrato de trabalho. Não se vê, porém, como é que a possibilidade de o credor remitir a dívida por contrato com o devedor, nessas condições (isto é, por ocasião da cessação do contrato, ou, mais precisamente: antes de operar a caducidade do contrato de trabalho mas para produzir efeitos depois desta), possa contender com o direito
à “retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade”, consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, mesmo admitindo que, nos termos do igualmente invocado artigo 17.º da Lei Fundamental, o regime de direitos, liberdades e garantias lhe seja aplicável. Aliás, o já referido regime do n.º 4 do artigo 8.º da Lei da Cessação do Contrato de Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, correspondente ao artigo 394º, n.º 4, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/03, de 27 de Agosto, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003) contém, no que importa, uma estatuição de efeitos semelhantes à que ora está em causa, e nunca foi julgado inconstitucional. Precisando melhor, a recondução da declaração de quitação total (transcrita no n.º 1 do Relatório) ao instituto da remissão abdicativa, afastado que foi o seu enquadramento na compensação pecuniária de natureza global prevista naquele dispositivo, em razão de o contrato de trabalho ter cessado por caducidade (decorrente de invalidez) e não de acordo de cessação do contrato de trabalho por acordo entre trabalhador e entidade patronal, não altera a sua compatibilização constitucional. Ora, só se percebe a imputação de inconstitucionalidade ao regime da remissão desde que se pressuponha uma série de circunstâncias qualificativas desse contrato: que o credor (o trabalhador) tenha direito a importâncias que excedem as que o devedor (a entidade patronal) lhe paga a troco dessa declaração de total quitação, e que a declaração de vontade do credor (trabalhador) não seja plenamente esclarecida quanto aos direitos que lhe assistem, ou, sendo-o, não seja totalmente livre (por ser condicionada pela necessidade ou interesse de receber a parte da dívida que o devedor – a entidade patronal – se dispõe a pagar-lhe). Esse é, aliás, o sentido do parecer junto aos autos, se bem que omisso quanto à desconformidade constitucional de um entendimento diverso. Porém, tirando o facto de, perante estas circunstâncias, a declaração do credor
(o trabalhador) poder ser anulável por erro ou, mesmo, nos termos do artigo
282.º do Código Civil, e de, em todo o caso, ser incerto o direito às prestações que o trabalhador se arroga (por o tribunal não ter chegado a avaliá-lo), a eventual lesão a tal direito sempre decorreria da concorrência dessas condições, e não, só por si, da norma a que se pretende imputá-la.
5.Acresce que a protecção dos direitos do trabalhador, que se invoca para pretender excluir a remissão abdicativa da esfera pós-relação laboral, impediria que estes formulassem por si o juízo sobre a celebração de tais contratos, sem que se imponha, legal ou constitucionalmente, qualquer presunção de que o seu juízo livre e informado – quando o não seja a ordem jurídica faculta-lhes mecanismos de invalidação de tais contratos – lhes será necessariamente prejudicial, com a concomitante imposição de uma indisponibilidade restritiva da liberdade contratual de ambas as partes. Além disto, como se pressupõe no regime do artigo 8º do Regime Jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, e como alega o recorrido, com a dissolução do vínculo laboral (por caducidade, no caso dos autos) tende a dissipar-se a situação de subordinação jurídica e económica que justifica a indisponibilidade de (certos) direitos do trabalhador – como, aliás, demonstra, por exemplo, a solução adoptada na matéria, próxima, da prescrição (só os direitos disponíveis são prescritíveis), a qual não é admissível no decurso do contrato de trabalho, mas se torna possível depois da cessação deste (cf. J. Leal Amado, ob. cit. pp.
216-217) –, aproximando-se decisivamente a situação do credor/ex-trabalhador face ao devedor/ex-entidade patronal da situação de outros credores face a outros devedores (em que pode igualmente existir uma diferença fáctica de poder económico). E, obviamente, pelo menos na falta de circunstâncias qualificativas (que não estão aqui em causa), a norma impugnada não é inconstitucional – nem o recorrente pretende que seja – na sua aplicação a todos esses casos de outros credores. Conclui-se, pois, que não subsiste qualquer fundamento para a inconstitucionalidade da interpretação normativa impugnada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 863º do Código Civil, quando aplicada a um acordo de remissão complementar do da cessação de um contrato de trabalho por reforma antecipada do trabalhador, fundada em invalidez; b) Condenar o recorrente em custas, fixando em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Outubro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos