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Processo n.º 702/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. vem requerer a aclaração do Acórdão n.º 610/2004, de 19 de Outubro de 2004, que indeferiu a reclamação para a conferência por ele deduzida contra a decisão sumária do relator, de 17 de Junho de 2004, na parte em que decidira não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º
1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas Relações, que confirme decisão da 1.ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão, e, consequentemente, negara provimento ao recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Março de 2004.
O pedido de aclaração assenta nos seguintes fundamentos:
“No douto acórdão proferido, citando-se o Acórdão n.º 131/2004, disse-se:
«(...) não é exacto que o artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC só permita a decisão sumária nas situações apontadas pela recorrente.
Com efeito, o preceito da LTC, ao conferir ao relator os poderes para emitir decisão sumária por a questão ser simples, não condiciona esta qualificação ao facto de haver decisão anterior sobre a mesma questão; tal é, desde logo, contrariado pela circunstância de aquele condicionamento ser antecedido pela expressão “designadamente”, o que não pode deixar de significar a possibilidade de qualificar a questão como simples por uma multiplicidade de razões, mesmo que ela não tenha sido exactamente a mesma que foi objecto de decisão anterior.
Bastará para tal qualificação que na fundamentação da decisão anterior, muito embora sobre questão não inteiramente coincidente com a dirimida em posterior recurso, se tenham formulado juízos que imponham uma determinada solução de direito neste recurso, merecendo a questão, por essa via, a qualificação de simples.»
Mais adiante acrescenta-se:
«(...) é de qualificar como “simples” uma questão de inconstitucionalidade sempre que da adopção da fundamentação de anteriores decisões do Tribunal Constitucional derive a imposição de uma determinada solução dessa questão, mesmo que nessas decisões não tenham sido especificamente apreciados todos os argumentos aduzidos pelo recorrente, e sobretudo quando, como no caso ocorre, a invocação de novas normas e princípios constitucionais
“traduzem um enquadramento jurídico manifestamente inadequado”, como refere o Ministério Público. Na verdade, respeitando a questão de constitucionalidade ora em apreço à possibilidade de limitação dos graus de recurso em processo penal, surge como manifestamente desadequado o enquadramento da questão reportado aos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º da CRP ou ao princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica consagrado no artigo 2.º da CRP (este, aliás, nem sequer invocado no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade), com base no argumento de que o objecto do processo é definido pela acusação, argumento este, aliás, refutado pelo acórdão recorrido, que recordou a possibilidade de alteração desse objecto e salientou o absurdo que seria o arguido, “favorecido” pela condenação por menos crimes e por crimes menos graves do que os que constavam da acusação, vir defender a possibilidade de condenação pelos crimes que lhe foram imputados na acusação (e, de facto, o que o arguido pretendia defender no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça era a “degradação” dos crimes de roubo por que foi condenado em crimes de furto).
Nada impedia, pois, que a questão suscitada a propósito do recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça fosse qualificada como “simples” e, como tal, objecto de decisão sumária no sentido da não inconstitucionalidade da norma questionada.»
Levanta o acórdão sob análise, no ver do recorrente, uma dúvida que cumpre ser esclarecida.
Parece decorrer do douto acórdão proferido que uma questão é
«simples» não só quando este Tribunal já tenha decidido a mesma questão de constitucionalidade noutro processo, mas também quando «(..) na fundamentação da decisão anterior (...) se tenham formulado juízos que imponham uma determinada solução de direito (...)».
Ora, lida a douta decisão sumária sindicada, não consegue vislumbrar o recorrente qualquer pronúncia ou sequer alusão à questão de constitucionalidade do artigo 400.°, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal relativamente aos artigos 2.° e 32.°, n.ºs 2 e 5, da Constituição.
É que, ainda que se considere que a questão de constitucionalidade, levantada pelo recorrente, traduz um enquadramento jurídico manifestamente inadequado, certo é que, ainda assim, cumpriria fazer alusão ao porquê de tal enquadramento ser inadequado, ou seja, no fundo decidir o fundo da causa, o que não se fez na douta decisão sumária proferida.
Assim, partindo do pressuposto que uma questão de constitucionalidade é «simples», nos termos do artigo 78.°-A da LTC, quando já existir uma anterior decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão e quando na fundamentação dessa decisão se tenham formulado juízos que imponham uma determinada solução de direito, nasce no espírito do recorrente a fundada dúvida se é entendimento deste Tribunal que a definição de «questão simples» é mais abrangente que a definição de caso julgado.
É que, a entender-se que a definição de «questão simples» é mais abrangente que a definição de caso julgado, tendo em conta que os tribunais superiores têm decidido uniformemente que o caso julgado não abrange a fundamentação, mas apenas a decisão, tal entendimento do vertido no artigo
672.° do Código de Processo Civil e do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC é inconstitucional por violação do princípio de Estado de direito e do princípio do acesso ao direito e aos tribunais ínsitos nos artigos 2.°, 20.º, n.º 1, e
221.º da Constituição, porquanto se nega uma decisão ao recorrente, remetendo-o para um «precedente» apenas coadunável com o sistema anglo-saxónico da Common Law.
Termos em que se requer respeitosamente a V. Ex.as, se dignem esclarecer a dúvida suscitada pelo recorrente e conhecer a questão de constitucionalidade levantada.”
Notificado deste pedido de aclaração, o representante do Ministério Público neste Tribunal apresentou a seguinte resposta:
“1.° – Através do pedido de aclaração deduzido não manifesta o requerente pretensão a ver aclarada qualquer ambiguidade ou obscuridade da decisão reclamada, apenas manifestando dissidência relativamente ao decidido – o que não constitui objecto idóneo do incidente pós-decisório deduzido.
2.° – Por outro lado – e para além de manifestamente infundada – é intempestiva a suscitação da pretensa questão de constitucionalidade, levantada no âmbito de um pedido de aclaração, relativamente a uma questão – e a um entendimento do Tribunal Constitucional – que nada tem de surpreendente ou inovatório.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como resulta da mera leitura do requerimento em apreciação, nele não imputa o reclamante a qualquer passagem do Acórdão n.º
610/2004 qualquer obscuridade ou ambiguidade, que a tornasse ininteligível ou susceptível de interpretações divergentes, antes utiliza este mecanismo processual para manifestar a sua divergência com o decidido, o que constitui um desvirtuamento da sua razão de ser e bastaria para, sem mais considerações, se indeferir a “aclaração” solicitada.
Entende-se, todavia, que não pode deixar de ser objecto de reparo a deturpação que o recorrente faz do decidido no Acórdão reclamado e na Decisão Sumária que o mesmo confirmou. A orientação que se seguiu nestas peças foi a de que a noção de “questão simples”, para efeitos do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC, não se cinge às hipóteses, nesse preceito referidas a título claramente exemplificativo, da existência de anterior decisão do Tribunal sobre a questão da constitucionalidade da mesma norma, com ponderação de todos os argumentos ou razões expendidos no novo processo, mas abrange outras situações em que a fundamentação desenvolvida em anterior acórdão permita considerar a questão como já “tratada” pelo Tribunal, mesmo que não ocorra integral coincidência dos preceitos em causa e dos argumentos esgrimidos num e noutro processo. Por outro lado, em passagem alguma do acórdão reclamado se atribuiu qualquer força jurídica vinculativa, equivalente ao precedente dos sistemas anglo-saxónicos, às anteriores decisões do Tribunal nem se entendeu que sobre elas se formara caso julgado, com projecção para além do processo onde foram proferidas, a que o Tribunal deveria obediência, sem reponderação da questão. A circunstância de a questão já ter sido “tratada” na jurisprudência do Tribunal possibilita tão-só o recurso ao processo simplificado de julgamento através de Decisão Sumária, com reclamação para a conferência, mas este julgamento é um julgamento de mérito, dotado de autonomia.
Também não corresponde à verdade a afirmação do reclamante de que o Acórdão reclamado não disse qual a razão de julgar inadequado o enquadramento da questão reportado aos artigos 2.º e 32.º, n.ºs 2 e
5, da CRP. Basta reler a passagem que o próprio reclamante transcreve na sua reclamação:
“Na verdade, respeitando a questão de constitucionalidade ora em apreço à possibilidade de limitação dos graus de recurso em processo penal, surge como manifestamente desadequado o enquadramento da questão reportado aos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º da CRP ou ao princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica consagrado no artigo 2.º da CRP (este, aliás, nem sequer invocado no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade), com base no argumento de que o objecto do processo é definido pela acusação, argumento este, aliás, refutado pelo acórdão recorrido, que recordou a possibilidade de alteração desse objecto e salientou o absurdo que seria o arguido,
«favorecido» pela condenação por menos crimes e por crimes menos graves do que os que constavam da acusação, vir defender a possibilidade de condenação pelos crimes que lhe foram imputados na acusação (e, de facto, o que o arguido pretendia defender no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça era a
«degradação» dos crimes de roubo por que foi condenado em crimes de furto).”
Do exposto resulta, por fim, que nem o Acórdão reclamado adoptou a interpretação normativa que o reclamante agora vem arguir de inconstitucional, nem este seria o momento processualmente adequado de suscitação de tal questão, como se assinala na resposta do representante do Ministério Público.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir o presente
“pedido de aclaração”.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos