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Processo n.º 175/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 13 de Abril de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do recurso, por inadmissibilidade do mesmo.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A., nas alegações do recurso de revista que interpôs do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Outubro de 2002 (que, além do mais, concedeu provimento à apelação da autora, B., revogando o despacho saneador que julgara procedente a excepção peremptória da prescrição, invocada pela ré, por entender que o direito de exclusão judicial de sócio por comportamento desleal, previsto no artigo 242.º do Código das Sociedades Comerciais, está sujeito a um prazo de prescrição de 20 anos, e não de 90 dias como decidira a
1.ª instância), aduzindo que «o acórdão recorrido contraria jurisprudência anteriormente firmada, relativamente à mesma legislação e questão fundamental de direito, por acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Novembro de 1997», requereu, «caso se verifique possibilidade de vencimento da solução jurídica defendida no primeiro aresto (...), o julgamento ampliado da revista» (conclusão
4.ª).
No Supremo Tribunal de Justiça, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
«Tem este Supremo, em matéria de julgamentos ampliados, no quadro previsto no artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, visado uma linha de contenção, cobrindo designadamente situações jurisprudenciais suficientemente amadurecidas.
Sobre a questão suscitada pela recorrente apenas vem invocado um
único acórdão deste Tribunal, de 11 de Novembro de 1997 (e compulsado o teor do mesmo, tal como se encontra publicado, a págs. 126/7 da Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo III, nenhuma referência a outro acórdão na matéria foi localizado).
Não parece, pois, a esta luz, e salvo o devido respeito pela posição manifestada pela recorrente, que haja necessidade ou conveniência na intervenção requerida.»
Na sequência deste parecer, o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça exarou o seguinte despacho:
«Face ao teor da conclusão 4.ª das alegações recursórias não se revela necessário ou conveniente o julgamento ampliado da revista, com intervenção do plenário das secções cíveis, nos termos do artigo 732.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Por a jurisprudência anteriormente firmada [não] ser particularmente relevante, como se diz no parecer do Magistrado do Ministério Público, não há necessidade de fazer vencer uma solução jurídica oposta.
Há que deixar a jurisprudência exprimir-se com mais veemência e oposição para então sim sanar a questão com a uniformização de jurisprudência.
Sou igualmente de parecer que no caso não há necessidade de proceder a julgamento ampliado da revista.
Apresentem-se os autos ao Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para os fins convenientes.»
Por despacho de 28 de Maio de 2003, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decidiu:
«Pelos fundamentos constantes do parecer do Ex.mo Conselheiro Relator, não haverá julgamento com intervenção do plenário das secções cíveis.»
Este despacho não foi de imediato notificado à recorrente.
Por acórdão de 7 de Outubro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso. Começou por consignar que, não tendo o acórdão recorrido conhecido do mérito da causa, antes ordenado o prosseguimento da tramitação da acção por entender que o direito accionado não havia prescrito, o recurso interposto devia ser qualificado como de agravo em 2.ª instância, e não de revista. Seguidamente, por também entender que o prazo de 90 dias fixado no n.º 6 do artigo 254.º do Código das Sociedades Comerciais para o exercício do direito de destituição do gerente não é aplicável ao exercício do direito de exclusão de sócio, para o qual apenas há que ter em conta o prazo ordinário de prescrição de 20 anos, previsto no artigo 309.º do Código Civil, confirmou o acórdão recorrido.
Notificada deste acórdão, veio a recorrente reclamar do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu o julgamento ampliado e do acórdão que negou provimento ao recurso, «arguindo expressamente a nulidade de ambos, perante o plenário das secções cíveis», e «suscitar a inconstitucionalidade do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil e do artigo
35.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na interpretação que deles é feita nos mesmos Despacho e Acórdão, por violação dos artigos 12.º, 13.º, 18.º, 20.º, n.ºs 1 e 4, 202.º, n.º 2, 204.º e 205.º, n.º 1, [da Constituição da República Portuguesa], e, mais precisamente, o princípio constitucional da protecção da confiança (ínsito na ideia de Estado de Direito Democrático)».
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 12 de Novembro de 2003, renovou o anterior despacho e ordenou a sua notificação às partes, bem como dos pareceres do Magistrado do Ministério Público e do Conselheiro Relator, «em cuja fundamentação se baseia o meu despacho, que toma em consideração ambos os pareceres».
Notificada, a recorrente veio reclamar dos referidos dois despachos e suscitar a inconstitucionalidade do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil e do artigo 35.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, «na interpretação que deles
é feita nos mesmos Despachos».
A reclamação foi indeferida por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Dezembro de 2003, do seguinte teor:
«O despacho de fls. 255 verso, renovado a fls. 302 verso, não determina o julgamento do recurso em plenário das secções cíveis, com fundamento em tal não se revelar necessário nem conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência.
E esta ausência de necessidade e de conveniência encontra-se, por sua vez, alicerçada num critério objectivo que tem sido seguido por este Supremo Tribunal, traduzido na exigência de uma definição clara da jurisprudência no sentido da afirmação de uma das teses em confronto, espelhada em vários acórdãos e não apenas num.
A necessidade e a conveniência a que se refere o artigo 732.º-A, n.°
1, do Código de Processo Civil, são conceitos indeterminados cuja integração compete ao Presidente do Supremo, de acordo com a sua prudente valoração dos interesses em confronto e, no caso em apreço, essa valoração encontra-se descrita nos pareceres para que se remete, sem necessidade de mais considerações.
Por outro lado, tratando-se de conceitos normativos, a sua integração, nos termos referidos, constitui a fundamentação jurídica da decisão, pelo que não pode concluir-se pela inexistência de fundamentação para quaisquer efeitos, designadamente os do artigo 668.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
Acresce que os despachos em causa se pronunciaram sobre todas as questões que competiam ao Presidente deste Supremo Tribunal apreciar – neste caso, a falta de “necessidade” e de “conveniência” para a uniformização.
Improcede, assim, a invocada nulidade.
Por conseguinte, também não se mostram violados quaisquer princípios ou normas constitucionais com os despachos impugnados, pelo que não se verifica a suscitada inconstitucionalidade.
Pelo exposto, indefiro totalmente a reclamação de fls. 342-360.»
Veio então a recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo, a convite do relator deste Tribunal, explicitado que objecto do recurso é a decisão final do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Dezembro de 2003, «por ter aplicado o artigo 732.º-A do Código de Processo Civil considerando que não se devem considerar preenchidos os critérios de “necessidade” e “conveniência” consagrados nesse normativo, antes que ocorram contradições jurisprudenciais entre “vários” acórdãos, não bastando apenas a contradição entre dois (para ocorrer “contradição” crê-se que basta haver duas teses em confronto espelhadas em dois acórdãos, como acontece in casu) – e por isso negando definitivamente o julgamento ampliado da revista requerido pela recorr[ente]» e «por, em lugar de entender que os aludidos critérios deverão ser aferidos, imediatamente, em função da “necessidade de salvaguardar a segurança dos cidadãos sobre as soluções previsíveis, face às contínuas mudanças de Juízes e ao alargamento do seu número, bem como ao progressivo aumento de legislação e, quantas vezes, alguma descoordenação legislativa” (J. O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, 2002, pág. 76), fazer depender o exercício lógico-jurídico relativo à ponderação sobre a sua verificação do preenchimento prévio de conceitos indeterminados e ajurídicos, tais como “amadurecimento” e “veemência de jurisprudência”, apontados nos Despachos de fls. 225 e 302 verso, cujos fundamentos acolheu». Segundo a recorrente, terão sido violados os artigos
12.º, 13.º, 18.º, 20.º, n.ºs 1 e 4, 202.º, n.º 2, 204.º, 205.º, n.º 1, e 208.º da Constituição da República Portuguesa e os princípios constitucionais da igualdade e da protecção da confiança (ínsitos na ideia de Estado de Direito Democrático) e do acesso ao direito e o direito fundamental a um processo judicial justo e equitativo, e a questão da inconstitucionalidade teria sido suscitada nos requerimentos enviados em 23 de Outubro e em 28 de Novembro de
2003.
Como é sabido, a decisão de admissão de recurso no Tribunal a quo não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, efectivamente, entende-se que, no caso, o recurso é inadmissível, e, por isso, não se pode conhecer do seu objecto, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. Só podem constituir objecto do recurso de constitucionalidade questões de inconstitucionalidade normativa, isto é, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional só pode ser a conformidade constitucional de normas ou de interpretações normativas e não a conformidade constitucional de decisões judiciais, em si mesmos consideradas. E, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, importa ainda que a questão de inconstitucionalidade normativa haja sido suscitada durante o processo, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da LTC que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
No presente caso, a decisão que fez efectiva aplicação da «norma» cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada foi o despacho de
28 de Maio de 2003, que o despacho de 12 de Novembro de 2003 se limitou a reiterar. Assim, a decisão que a recorrente elegeu como objecto do presente recurso – o despacho de 19 de Dezembro de 2003 – não fez aplicação da interpretação da norma questionada, limitando-se a julgar improcedente arguição de nulidade de anteriores decisões, por pretensa falta de fundamentação. Não tendo a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a «norma» cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, logo por esta razão o presente recurso se mostra como inadmissível.
Admitindo que se pudesse considerar como decisão recorrida o despacho de 28 de Maio de 2003, faltaria então o requisito da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade, sendo patente que a interpretação normativa nesse despacho acolhida nada tem de inesperado ou insólito (cf., por todos, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 273), em grau tal que justificasse a dispensa do
ónus, referido no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, de a recorrente suscitar a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
Finalmente, os termos em que a questão de constitucionalidade vem colocada, indissoluvelmente ligada às particularidades do caso concreto, permitem concluir que, em rigor, a recorrente não coloca uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, mas antes uma questão de inconstitucionalidade de decisão judicial, em si mesma considerada, o que, como
é sabido, não constitui objecto idóneo para ser sujeito ao controlo de constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional.
Por todas estas razões, o presente recurso surge como inadmissível, o que obsta ao conhecimento do seu objecto.
3. Termos em que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, se decide não conhecer do objecto do recurso.”
1.2. A reclamação deduzida desenvolve a seguinte argumentação:
“II – FUNDAMENTOS DESTA RECLAMACÃO
Salvo o devido respeito, a recorrente entende que:
a) A decisão recorrida é a adequada ao recurso de constitucionalidade;
b) A questão que se pretende dirimir nos autos
(inconstitucionalidade da norma do artigo 732.°-A do Código do Processo Civil) foi adequadamente suscitada perante o Tribunal que inicialmente dela deveria conhecer.
Vai passar a expor os motivos pelos quais sustenta tal entendimento.
1. Recorribilidade do Despacho do Presidente do STJ de 19/12/2003.
Lê-se na pág. 42 do Breviário de Direito Processual Constitucional
(de Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Coimbra Editora, 1997): «O recurso para o TC pressupõe (...) que o tribunal recorrido tenha formulado sobre a norma aplicada um juízo de constitucionalidade, um juízo que constitua a ratio decidendi da decisão e não um simples obiter dictum. (...) É que esta exigência
(...) visa a obtenção de uma decisão susceptível de ser impugnada perante o TC, de forma a evitar que este, ao conhecer da questão sem a certeza de a mesma ter sido (...) ponderada, se substitua à instância recorrida (...), desnaturando o próprio sentido do recurso que é a reavaliação de anterior decisão» (realces e sublinhados acrescentados).
Do exposto retira-se o seguinte:
a) Só é possível recorrer para o Tribunal Constitucional, no âmbito de um processo de fiscalização concreta, depois de o Tribunal recorrido se ter, previamente, pronunciado relativamente à inconstitucionalidade invocada;
b) E é justamente a decisão proferida pelo Tribunal recorrido relativamente à inconstitucionalidade que integra a decisão recorrida para efeitos de recurso ao Tribunal Constitucional.
Transpondo este entendimento para o caso em análise, verifica-se o seguinte:
a) A inconstitucionalidade suscitada pela recorrente foi apreciada pelo Tribunal recorrido no último parágrafo do Despacho do Presidente do STJ de
19 de Dezembro de 2003 (o qual, contrariamente ao que refere a Decisão Reclamada, não se limitou a apreciar a questão da nulidade);
b) E é justamente o juízo de constitucionalidade vertido nesse Despacho que se pretende reavaliar, através dos presentes autos;
c) Daí, que, salvo melhor opinião, o Despacho do Presidente do STJ de 19 de Dezembro de 2003 foi adequadamente escolhido como decisão recorrida.
Ainda assim, à cautela, refere-se o seguinte: caso se entenda dever ser outra a decisão recorrida, sempre deverá ser conferida à recorrente, nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, a faculdade de aperfeiçoar o seu requerimento, identificando como decisão recorrida aquela que venha a ser por V. Ex.as entendida como mais adequada (face ao total conhecimento do caso por este Tribuna1 e em homenagem ao princípio de cooperação consagrado no artigo
266.° do Código de Processo Civil).
2. Tempestividade da suscitação da questão de inconstitucionalidade.
Conforme se lê no Acórdão n.º 228/89 deste Tribunal: «... a inconstitucionalidade normativa tem, necessariamente, de ser levantada em tempo
útil: (...) antes da decisão de forma quando a norma releve para a resolução da questão formal».
«Precisando melhor: o requisito da admissibilidade do recurso previsto no artigo 70.°, n.° 1, alínea b), no que respeita ao significado da locução “durante o processo”, deve ser tomado não em sentido puramente
“formal”, tal que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até à extinção da instância, mas num sentido puramente “funcional”, tal que essa invocação haverá de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão. Por outras palavras, a inconstitucionalidade haverá que suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de inconstitucionalidade respeita (Acórdãos n.ºs 90/85, 94/88, 352/94 e 584/96).»
(Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, ob. cit., pág. 46).
No caso em análise, verifica-se que a inconstitucionalidade normativa em causa (apesar de só apreciada pelo Tribunal a quo no despacho recorrido), foi suscitada, pela primeira vez, no requerimento enviado para esse Tribunal por registo postal de 23 de Outubro de 2003.
Ora, só por Despacho de 12 de Novembro de 2003, tomou o Presidente do STJ posição definitiva relativamente à dispensa do julgamento ampliado da revista, ordenando, pela primeira vez, que fossem as partes notificadas da sua decisão a este respeito.
De onde resulta que a invocação da inconstitucionalidade normativa em análise foi efectuada «em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão».
Assim, verifica-se que, depois de invocada a inconstitucionalidade, o Tribunal a quo:
a) Conheceu da questão formal subjacente à aplicação da norma (não ordenou o julgamento ampliado de revista, cf. Despacho de 12 de Novembro de
2003);
b) Conheceu da própria inconstitucionalidade invocada, através do juízo de constitucionalidade formulado no Despacho recorrido.
Refere ainda o Douto Despacho Reclamado que a interpretação normativa patente no Despacho do Presidente do STJ de 28 de Maio de 2003
(renovado em 12 de Novembro de 2003) nada tem de «inesperado» ou «insólito».
A recorrente não pode concordar.
O preenchimento dos conceitos de «necessidade» e «conveniência» previstos no artigo 732.°-A, n.° 1, do CPC através de generalidades e expressões ajurídicas tais como «amadurecimento» e «veemência da jurisprudência» afigura-se completamente inesperado e insólito para o recorrente, visto deverem ser aferidos em função da causa-final do regime
(«necessidade de salvaguardar a segurança dos cidadãos sobre as soluções previsíveis, face às contínuas mudanças de Juízes e ao alargamento do seu número, bem como ao progressivo aumento de legislação e, quantas vezes, alguma descoordenação legislativa» – J. O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Cível, Coimbra Editora, 2002, pág. 76).
III – CONCLUSÕES:
Em face dos argumentos expostos, retira-se que:
1.º – O Despacho do Presidente do STJ de 19 de Dezembro de 2003 formulou um juízo acerca da inconstitucionalidade normativa suscitada perante o Tribunal a quo pela recorrente – juízo esse que se pretende reavaliar através do presente recurso.
2.º – É, assim, decisão recorrível, nos termos do artigo 70.°, n.°
1, alínea b), e n.° 1 do artigo 71.° da LTC.
3.º – Caso este entendimento não venha a ser adoptado, sempre deverá ser conferida à recorrente a faculdade de indicar nos autos qual a decisão que V. Ex.as consideram recorrível – prosseguindo, a seguir, os autos (face ao total conhecimento do caso, por este Tribunal, de harmonia com o n.° 5 do artigo 75.° da LTC e com o princípio de cooperação consagrado no artigo 266.° do CPC).
4.º – Depois de a recorrente suscitar, pela primeira vez (em 23 de Outubro de 2004), a inconstitucionalidade normativa em análise, o Tribunal a quo:
a) conheceu da questão formal subjacente à aplicação da norma (não ordenou o julgamento ampliado de revista, cf. Despacho do Presidente do STJ de
12 de Novembro de 2003);
b) conheceu da própria inconstitucionalidade invocada, através do juízo de constitucionalidade formulado no Despacho que integra decisão recorrida nestes autos.
5.º – A inconstitucionalidade foi, assim, suscitada em tempo útil, nos autos.
6.º – O preenchimento dos conceitos de «necessidade» e
«conveniência» previstos no artigo 732.º-A, n.° 1, do CPC, através de generalidades e expressões ajurídicas tais como «amadurecimento» e «veemência da jurisprudência» afigura-se completamente inesperado e insólito para a recorrente – visto deverem ser aferidos em função da causa-final do regime
(«necessidade de salvaguardar a segurança dos cidadãos sobre as soluções previsíveis, face às contínuas mudanças de Juízes e ao alargamento do seu número, bem como ao progressivo aumento de legislação e, quantas vezes, alguma descoordenação legislativa» – J. O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Cível, Coimbra Editora, 2002, pág. 76).
7.º – A presente reclamação deve, assim, proceder, declarando-se de harmonia com o exposto nas anteriores conclusões e admitindo-se o recurso.”
A recorrida, notificada desta reclamação, nada disse.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Contrariamente ao que a reclamante sustenta, a decisão de indeferimento do julgamento ampliado do recurso radica no despacho do Presidente do STJ de 28 de Maio de 2003, e tanto assim que, na sequência desse despacho, se procedeu ao julgamento do recurso com intervenção da formação normal de julgamento (acórdão de 7 de Outubro de 2003).
O despacho do Presidente do STJ de 12 de Novembro de
2003, desencadeado pela reclamação (designadamente, por falta de fundamentação) contra ele e contra o acórdão de 7 de Outubro de 2003 deduzida pela recorrente em 24 de Outubro de 2003, apesar de abrir com uma afirmação de renovação do anterior despacho, teve o objectivo central de determinar a notificação desse anterior despacho (que havia sido omitida), bem como dos pareceres do Ministério Público e do Conselheiro Relator cuja fundamentação tinha assumida como sua.
Efectuada essa notificação e perante nova reclamação
(arguição de nulidades) da recorrente, o despacho do Presidente do STJ de 19 de Dezembro de 2003 procedeu à apreciação dessa arguição, julgando-a improcedente e acrescentando que “por conseguinte” não se verificava a inconstitucionalidade suscitada nessa reclamação.
Do exposto resulta que a decisão que fez efectiva aplicação da norma do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil (CPC) foi o despacho de 28 de Maio de 2003, na sequência do qual se procedeu ao julgamento do recurso com a formação normal. O despacho de 12 de Novembro visou essencialmente determinar a notificação (indevidamente omitida) do anterior despacho, e o despacho de 19 de Dezembro de 2003 teve por objecto a apreciação da arguição de nulidade. Só se esta arguição fosse julgada procedente, com eliminação do despacho de 28 de Maio de 2003, é que se poderia considerar reaberto o poder jurisdicional do Presidente do STJ quanto à questão da determinação do julgamento ampliado do recurso; julgada improcedente a arguição de nulidade, a anterior decisão não podia ser alterada e, “por consequência”, a questão de inconstitucionalidade suscitada necessariamente soçobrou.
Reafirma-se, assim, que o despacho de 19 de Dezembro de
2003 – que a recorrente elegeu como objecto do presente recurso – não fez aplicação, como ratio decidendi, da interpretação do artigo 732.º-A do CPC cuja conformidade constitucional pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
A única decisão apta a constituir objecto do recurso de constitucionalidade era a contida no despacho de 28 de Maio de 2003, que efectivamente fez aplicação da norma do artigo 732.º-A do CPC. Mas, antes da prolação dessa decisão, a recorrente não suscitou nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, sendo certo que a interpretação de tal norma seguida naquele despacho nada tem de anómalo, imprevisto ou inesperado, correspondendo – como se evidencia nestes autos – a orientação corrente dos Presidentes do STJ, com o apoio da doutrina, que reconhece que a norma em causa confere ao Presidente do STJ “amplos poderes para, em seu prudente arbítrio, determinar a intervenção do plenário das secções cíveis, sempre que tal se revele «necessário» ou «conveniente», na perspectiva da unidade da jurisprudência e da revisibilidade das correntes jurisprudenciais formadas”
(Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 500). Armindo Ribeiro Mendes (Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto, Lex, Lisboa, 1998, pág. 108) salienta que: “Há a evidente preocupação de não espartilhar os pressupostos de intervenção [do plenário das secções cíveis], sendo certo que a decisão final cabe ao presidente do STJ no seu prudente arbítrio, sendo tal decisão insusceptível de qualquer impugnação e não carecendo de qualquer fundamento”. Como refere Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 557 e
558:
“A contradição potencial da decisão do recurso pendente com a jurisprudência do Supremo pode verificar-se em duas situações distintas: – se o Supremo já anteriormente uniformizara a jurisprudência na questão em apreciação, importa assegurar a possibilidade de o próprio Supremo confirmar ou revogar a sua orientação anterior, – se o Supremo ainda não uniformizou a jurisprudência nessa matéria, interessa apenas prevenir uma eventual oposição com a outra jurisprudência ordinária do Supremo. Estas situações justificam atitudes distintas do presidente do Supremo.
No caso de perigo de contradição com anterior jurisprudência uniformizada, o presidente do Supremo deve ordenar o julgamento ampliado, se considerar provável o vencimento no recurso pendente de uma orientação contrária a essa jurisprudência: é a solução que o artigo 732.º-A, n.º 1, prevê como necessária para assegurar a uniformidade da jurisprudência. Na hipótese em que apenas se verifica o risco de contradição com a jurisprudência ordinária do Supremo, a escolha do presidente deste tribunal tem maior amplitude, pois que lhe incumbe verificar se a questão em apreciação está suficientemente trabalhada na jurisprudência e na doutrina para ser submetida à uniformização jurisprudencial: nesta hipótese, o artigo 732.º-A, n.º 1, manda pautar a opção do presidente por um juízo de conveniência.” (sublinhado acrescentado).
Esta última posição mereceu a expressa concordância de Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 277).
Reitera-se, assim, o entendimento, sustentado na decisão sumária reclamada, de que a decisão recorrida (despacho de 19 de Dezembro de
2003) não fez aplicação da norma cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada, e que a recorrente não suscitou – quando o podia e devia ter feito – a inconstitucionalidade dessa norma antes de ter sido proferida a decisão que efectivamente a aplicou: o despacho de 28 de Maio de 2003.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos