Imprimir acórdão
Processo n.º 672/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, a ora recorrida A. intentou acção com processo ordinário contra B. e mulher, C., ora recorrente, pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhe determinada quantia, resultante de fornecimentos que a ora recorrida, no exercício da sua actividade comercial, fizera ao Réu marido, para o exercício da actividade comercial deste. Citados, os RR. contestaram separadamente. Por decisão do Tribunal Judicial de Paredes, foi a acção julgada procedente e os réus condenados.
2. Inconformada com esta decisão, a Ré mulher, ora recorrente apelou para o Tribunal da Relação do Porto, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1ª - A presente acção foi intentada contra a recorrente e o seu marido, por força de várias transacções comerciais celebradas exclusivamente entre este e a autora;
2ª - A recorrente contestou alegando que as dívidas eventualmente contraídas pelo co-réu não o foram em proveito comum do casal, sendo que desde 1994 apenas vivem debaixo do mesmo telhado, fazendo cada um a sua vida profissional e pessoal sem dar conhecimento ao outro;
3ª - Pelo que desde tal data, nunca os rendimentos eventualmente auferidos pelo réu em consequência de uma qualquer actividade profissional foram empregues em benefício do casal ou do agregado familiar;
4ª - Efectivamente, não foi demonstrado em juízo que o réu marido, com a sua actividade comercial, auferia proventos para o sustento de todo o agregado, pelo que é manifesto que a dívida em questão não foi contraída em proveito comum do casal;
5ª - Consequentemente, a presunção do art.º 1691º/ld) - que presume o proveito comum do casal de todas as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio - não poderá funcionar, tendo a mesma que se considerar ilidida, nos termos do art.º 350° do Código Civil;
6ª. - Pelo que é manifesto que o aresto em recurso enferma de erro de julgamento ao não considerar ilidida aquela presunção, uma vez que se não provou em juízo qualquer “comunicabilidade das dívidas contraídas nem qualquer benefício por parte da recorrente sobre as quantias auferidas;
7ª - Acresce, ainda, que o art.º 36° da Constituição da República Portuguesa consagra o direito fundamental à família, o qual compreende a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, assegurando o art.º 20° da mesma Constituição um processo justo e equitativo, pelo que interpretar o art.º 1691°/ld) do Código Civil no sentido de ser considerada para proveito comum qualquer dívida contraída pelo casal - mesmo não tendo sido feita qualquer prova da comunicabilidade dessa mesma dívida e apesar de o cônjuge responsável pela dívida não ter logrado provar que os seus proventos se destinavam ao sustento de todo o agregado familiar -, é violar o disposto nos arts. 13°, 20° e 36° da CRP;
8ª - A presunção em questão não obedece a quaisquer critérios de proporcionalidade ou igualdade, “condenando” o cônjuge à partida e impondo-lhe a obrigatoriedade de provar um facto negativo - o que requer um sacrifício desmesurado e atenta contra qualquer igualdade no acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva -, pelo que o tribunal a quo interpretou o artº1691°/1/d) do Código Civil em sentido materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais consagrados nos arts. 13°, 20° e 36° da Constituição.”
3. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 3 de Abril de 2003, julgou improcedentes, no essencial, as conclusões do recurso, negando a revista. Escudou-se para tanto na seguinte fundamentação:
“[...]2.2 - Dos fundamentos do recurso: De acordo com as conclusões formuladas, as quais delimitam o objecto do recurso- cfr. arts. 684°, n.º 3 e 690° do CPCivil, temos que são duas as questões a resolver no presente recurso, tal como sejam, a de saber se: no caso dos autos e em face da factualidade provada, ocorre comunicabilidade da dívida; a interpretação que foi dada ao disposto no art.º 1691°, n.º 1, al. d) do CCivil enferma de inconstitucionalidade. Antes de mais convirá notar que as partes não colocaram minimamente em crise a matéria de facto que foi considerada assente/provada pela sentença, pelo que haverá de ser em função de tal factualidade que se procederá à análise e apreciação das questões enumeradas. Acresce que a sentença condenatória, não foi impugnada pelo R. marido. Posto isto, analisemos cada uma das supra referidas questões. Assim: a) - Da comunicabilidade ( ou não) da dívida: Dos factos assentes resulta que a Autora/apelada, no exercício da sua actividade comercial, forneceu ao R. marido, sob encomenda deste e para o exercício da sua actividade comercial, a mercadoria constante das facturas [...], as quais, em face do acordado, deviam ter sido pagas no prazo de 90 (noventa) dias após a sua emissão. Mais resulta assente que, tendo a Autora apelada entregue a referida mercadoria ao R. marido que a recebeu, este, apesar de sempre ter reconhecido a dívida, não procedeu ao seu pagamento, decorrido que se mostra o prazo, para tanto, acordado. Em face de tal factualidade, a sentença sob recurso veio a condenar o R. marido no pagamento em falta, acrescido da correspondente indemnização por mora, tudo em face do disposto nos arts. 406°, 879°, al. c) , 805° e 806° do CCivil. A mesma sentença, com fundamento na factualidade enumerada, veio a condenar, também, a Ré mulher/apelante no pagamento de tal quantia, invocando, para tanto, o disposto no art.º 1691º, n.º 1, al. d) do CCivil e, bem assim, tendo em conta que, apesar de o ter alegado por via da excepção, esta não logrou demonstrar, como lhe competia, que a supra identificada dívida não havia sido contraída em proveito comum do casal.
É contra este segmento da sentença que a Ré/apelante se insurge, pretendendo que não ficou demonstrado em juízo que o R. marido, com a sua actividade comercial, auferia proventos para o sustento de todo o agregado familiar, e, consequentemente, que a dívida em questão tivesse sido contraída em proveito comum do casal, pelo que a presunção do art.º 1691°, n.º 1, al. d) do CCivil não poderá funcionar, devendo ser considerada ilidida, nos termos do disposto no n.º
2 do art.º 350° do CCivil (cfr. conclusões 1ª a 6ª) . De tudo quanto se deixou exposto, dúvidas não podem restar de que a dívida dos autos foi contraída pelo R. no e para o exercício do seu comércio e, bem assim, que a Ré mulher/apelante foi condenada no pagamento daquela dívida ao abrigo do disposto no art.º 1691 o, n° 1, al. d) do CCivil e com fundamento em que esta não logrou provar que a dívida não tivesse sido contraída em proveito comum do casal. Daí que a questão da comunicabilidade da dívida dos autos à Ré mulher passe, necessariamente, pela análise do comando contido na al. d) do n.º 1 do art.º
1691° do CCivil, importando designadamente saber qual o seu âmbito de aplicação e se a situação concreta dos autos nele se engloba, sendo imputável a ambos os cônjuges (RR.) o pagamento da dívida accionada ou apenas ao cônjuge - R. marido
- que a contraiu. Vejamos.
[...] Do teor de tal preceito [art.º 1691°, n° 1, al. d) do CCivil] crê-se que outra conclusão se não poderá extrair que não seja a de que a dívida contraída por cônjuge comerciante e no exercício do seu comércio é da responsabilidade de ambos os cônjuges, a não ser que o cônjuge do devedor alegue e prove que a ' dívida, apesar de contraída no exercício do comércio pelo devedor, não foi contraída em proveito comum do casal.
[...] Aliás, afigura-se-nos que tal entendimento é sufragado pela postura processual adoptada pela Ré mulher/apelante, porquanto, confrontada com alegação por banda da Autora (credor) de que a dívida havia sido contraída pelo R. marido {devedor) no exercício do comércio, logo contrapôs que a dívida não havia sido contraída em 'proveito comum do casal', alegando a factualidade pertinente à sua demonstração, como se pode ver dos artigos 2° a 29° da contestação por si apresentada, ainda que a denominando de «impugnação», o que não obstava à sua consideração como matéria de «excepção», face ao disposto no art.º 664° do CPCivil, como veio a ser entendida nos autos e, em consequência, levada, na parte pertinente, à «base instrutória» sob os quesitos 11º a 16°. Assim, com vista a demonstrar a comunicabilidade da dívida a ambos os cônjuges
(RR.) e, consequentemente, sobre eles pendia a responsabilidade pelo seu pagamento, à Autora cumpria tão só alegar e provar, como provou, que a dívida accionada tinha sido contraída pelo R. marido no exercício do comércio, enquanto que à Ré mulher - cônjuge do devedor - cumpria alegar e provar que, apesar de o ter sido no exercício do comércio, aquela dívida jamais fora contraída em proveito do casal, o que esta não logrou provar, como se pode ver da resposta negativa que veio a ser dada à matéria seleccionada sob os quesitos 11º a 16°. Concluindo, temos que improcedem as conclusões 1ª a 6ª formuladas pela apelante/Ré mulher nas suas alegações de recurso, já que sobre ela impendia o
ónus de alegar e provar a existência da situação excepcional, prevista na 2ª parte da al. d) do no1 do art.º 1691° do CCivil, a fim de evitar a aplicação da
1ª parte do mesmo normativo, verificada que estava a factualidade inerente à sua aplicação, como seja, ter a dívida accionada sido contraída pelo R. marido no exercício do comércio, pelo que nenhuma censura merece, nesta parte, a sentença sob recurso. b) - Da (in)constitucionalidade (da interpretação) da norma aplicada: A apelante/Ré mulher pretende que a interpretação que da norma aplicada – art.º
1691º, n.º 1, al. d) do CCivil- foi feita na sentença sob recurso é materialmente inconstitucional, na medida em que viola o disposto no art.º 36° e, consequentemente, nos arts. 13° e 20°, todos da CRP , sendo que a presunção prevista naquele normativo do Código Civil não obedece a critérios de proporcionalidade e igualdade. Antes de mais convirá notar que, atento o supra expendido quanto à responsabilidade da dívida ser de ambos os cônjuges com base no disposto no art.º 1691°, n° 1, al. d) do CCivil, esta norma veio a ser aplicada com a
(única) interpretação legalmente consentida, pelo que a questão da constitucionalidade suscitada haver-se-á de ter por remetida para a norma em si mesma considerada; na realidade, quando o juiz aplica uma norma legal fazendo dela uma interpretação legalmente consentida, não será a interpretação que se encontra ferida de inconstitucionalidade mas sim a norma que a consente. Ora, como já se deixou referido supra, dispõe-se no art.º 1691º, n.º 1, al. d) do CCivil que
“1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:
... d) - As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;
...'. Será que tal preceito viola o disposto no art.º 36° e, em consequência, os artigos 13° e 20°, todos da CRP, sendo, por isso, inconstitucional, como pretende a apelante/Ré mulher, designadamente porque não obedece a quaisquer critérios de proporcionalidade ou igualdade, já que «condena» o cônjuge à partida, exigindo-lhe a prova de um facto negativo, requerendo um esforço desmesurado e atentando contra qualquer igualdade no acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva ? Afigura-se-nos que a resposta não poderá deixar de ser negativa. Não há dúvida que, no art.º 36° da CRP, «...Reconhecem-se e garantem-se ... os direitos relativos à família, ao casamento e à filiação (cfr. epígrafe). São de quatro ordens esses direitos: (a) direito das pessoas a constituírem família e a casarem-se (n.º 1 e 2); (b) direitos dos cônjuges, no âmbito familiar e extrafamiliar (nº3); (c) direitos dos pais, em relação aos filhos (n.º 2 infine, e n.º 5 e 6);( d) direitos dos filhos ( nº 4 e 5, 2ª parte . Estão assim contemplados todos os titulares dos vários «papéis» que integram a referência familiar.»[1] sendo que « ... O princípio da igualdade dos cônjuges (n.º 3) constitui uma expressão qualificada do princípio da igualdade de direitos e deveres dos homens e das mulheres (cfr. art. 13°- 2). O princípio da igualdade abrange obviamente não só as esferas extrafamiliares - direitos civis e políticos - mas também a esfera familiar...»[2]. De tal normativo constitucional, no que concerne ao caso concreto, o art.º
1691°, n° 1, al. d) do CCivil brigaria, quando muito, com o disposto no n.º 3 daquele preceito; na medida em que aí se consagra o «princípio da igualdade dos cônjuges», para além do mais, na esfera extrafamiliar, porquanto imporia ao cônjuge não devedor uma obrigação não assumida por ele, mas comunicável tão só por virtude de com ele ser casado, o que implicaria, de igual forma, a violação do disposto no art.º 13° n.º 2 da CRP. Todavia, não pode olvidar-se que o citado normativo do código civil não impõe, sem mais e de forma inelutável, a responsabilidade de ambos os cônjuges pelas dívidas contraídas por um deles no exercício do comércio, porquanto permite que tal responsabilidade seja afastada pelo cônjuge não contraente da dívida demonstrando que não subsiste a razão de ser determinativa daquela responsabilidade, como seja, o «proveito comum», restabelecendo-se desta forma o equilíbrio da exigência nele contida e resguardando-se o «princípio da igualdade». Aliás, tal é tanto mais explicável quanto é certo que, como ensina o PROF. VASCO DA GAMA LOBO XAVIER [3], « ...O regime do art.º 1691°, nº1, al. d), visa a tutela do comércio: alargando-se o âmbito da garantia patrimonial concedida aos credores daqueles que exercem o comércio - ou seja, como veremos, os credores dos comerciantes - facilita-se a estes últimos a obtenção de crédito e, desta maneira, favorecem-se as actividades mercantis. Esta tutela envolve decerto o sacrifício dos interesses do cônjuge do comerciante e da própria família. Só que este sacrifício não é arbitrariamente imposto, pois o legislador entendeu que, em princípio a dívida terá sido, ao fim e ao cabo, contraída no interesse do casal e não apenas no do cônjuge comerciante. E nesta conformidade se fixou o limite a partir do qual os interesses do cônjuge do comerciante (e da família) não devem ceder perante os interesses do comércio – dispondo-se, como vimos, que a dívida não será da responsabilidade de ambos os cônjuges quando não tiver sido contraída ,“em proveito comum do casal”». Também, se não diga, como o faz a apelante/Ré mulher, que a imposição que o art.º 1691º, n° 1, al. d) do CCivil faz) no sentido de incumbir ao cônjuge não devedor o ónus de provar que a dívida não foi contraída em “proveito comum', viola os critérios da proporcionalidade e da igualdade no acesso à justiça. Na realidade, para que se pudesse falar em violação da proporcionalidade e, bem assim, do princípio da igualdade no acesso ao direito, seria necessário que se pudesse concluir que tal exigência não só não tinha qualquer contrapartida como se revelava desajustada em face dos interesses que visava acautelar, e, bem assim, colocava o onerado numa situação, senão inultrapassável, pelo menos de difícil superação. Sucede, porém, que essa não é a situação do art.º 1691º, n.º 1, al. d) do CCivil, porquanto, tendo-se em atenção que o seu regime visa tutelar o comércio, facilitando a actividade do comerciante (devedor) e o acesso ao crédito, é perfeitamente razoável que se imponha a repartição do risco entre os credores do comerciante e o cônjuge (e família) deste, impondo a este a prova da inexistência do «proveito comum» resultante da dívida contraída, sob pena de responder pela dívida, e o que nem sempre garantirá o pagamento do crédito, designadamente se, face ao não cumprimento por parte do devedor, também o seu cônjuge não disponha de capacidade económico-financeira para o fazer. Tal afirmação é tanto mais correcta quanto é certo que, como refere o PROF. V ASCO DA GAMA LOBO XAVIER [4], « ... o normal é que o comércio do cônjuge (casado num dos regimes de comunhão) seja exercido com vista a grangear proveitos a aplicar em benefício da família ...» . De igual forma se não vê que o cônjuge de devedor possa ver diminuído o seu acesso ao direito pelo facto de sobre si impender o ónus de provar a inexistência do «proveito comum», antes pelo contrário, é o cônjuge do devedor que se encontra em posição privilegiada de demonstrar tal situação, que já não o credor que, por se tratar a maioria das vezes de realidade inerente à intimidade da família, com ela nenhum contacto terá, vendo, assim, afastada qualquer possibilidade de o alegar e, menos ainda, de o demonstrar. Concluindo, improcedem, também, as conclusões 7ª e 8ª, já que o art.º 1691º, n.º
1, al. d) do CCivil, na medida em que impõe ao cônjuge do devedor o ónus de demonstrar a inexistência do «proveito comum» caso pretenda afastar a comunicabilidade da dívida contraída pelo cônjuge devedor determinada pela primeira parte do citado normativo, não viola qualquer preceito constitucional, designadamente, os arts. 36°, 13° e 20° da CRP [...]”
4. Deste acórdão, interpôs a ora recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo, nomeadamente, o seguinte:
“[...] não se conformando com o douto Acórdão de 26 de Abril de 2004, vem dele interpôr recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 669.º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro), nos termos e com os fundamentos seguintes:
[...].
9. Consequentemente, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, interpõe-se o presente recurso, exercendo o Venerando Tribunal Constitucional a sua actividade cognitiva sobre o seguinte preceito:
– Sobre a parte final do artigo 1691.º, n.º 1 al. d) do Código Civil, quando diz
“salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal”, o que representa uma violação dos princípios fundamentais da família, a igualdade de direitos e deveres entre cônjuges, o princípio da igualdade no acesso ao direito, o princípio da proporcionalidade e o direito a um processo equitativo, constantes nos artigos 13.º, 20.º e 36.º, todos da Constituição da República Portuguesa.[...]”
5. Já no Tribunal Constitucional foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo afirmado, nomeadamente, o seguinte:
“II. O OBJECTO DO RECURSO DE CONSTITUCIONALIDADE
1. Resulta claramente do requerimento de interposição do recurso que o objecto do presente recurso é limitado à apreciação da conformidade constitucional da parte final do art.º 1691°, n.º1, d), do Código Civil, quando diz “...salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal...” , o que representa uma violação dos princípios fundamentais da família, da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, do princípio da igualdade no acesso ao direito, do princípio da proporcionalidade e do direito a um processo equitativo, constantes dos artºs 13°, 20º e 36°, todos da Constituição da República Portuguesa.
[...] CONCLUSÕES:
1ª O objecto do presente recurso é restrito à apreciação da conformidade constitucional da parte final da alínea d) do n° 1 do art.º 1691 ° do Código Civil, quando interpretado no sentido do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do presente processo,
2ª Uma vez que representa uma violação dos princípios fundamentais da família, da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, do princípio da igualdade no acesso ao direito, do princípio da proporcionalidade e do direito a um processo equitativo, constantes dos artºs 13°, 20° e 36°, todos da Constituição da República Portuguesa.
3ª A recorrente foi condenada por não ter ficado demonstrado em juízo que as dívidas contraídas pelo seu ex-marido não o foram em proveito comum do casal, funcionando esta inversão do ónus da prova como uma 'condenação' a priori do cônjuge não comerciante, impondo-lhe a obrigatoriedade de provar um facto negativo, o que implica um sacrifício desmesurado, desigual e muitas vezes inútil,
4ª Pelo que esta inversão do ónus da prova representa uma clara violação do princípio da igualdade de direitos e deveres entre cônjuges e do princípio da proporcionalidade. Acresce que,
5ª Apesar do princípio da protecção da família estar constitucionalmente consagrado, é chocante como se pretende dar primazia à protecção da actividade comercial na alínea d) do n° 1 do art.º 1691 ° do Código Civil, quando os efeitos que uma dívida comercial pode[] acarretar ao cônjuge não comerciante podem ser incrivelmente mais gravosos e penosos – como efectivamente acontece no caso em apreço. Por fim,
6ª Em juízo não se provou qualquer comunicabilidade das dívidas contraídas, nem nenhum benefício sobre as quantias auferidas, por parte da recorrente, pelo que o princípio da igualdade de acesso ao direito encontra-se aqui claramente limitado, uma vez que, não tendo sido feita prova da comunicabilidade da dívida, nem do proveito comum do casal, mesmo assim, o cônjuge não comerciante tenha de provar a não existência desse proveito comum, por forma a não ser responsabilizado pela dívida que, na verdade, não contraiu.[...]”.
6. Entretanto, por se afigurar ao relator ser plausível o não conhecimento do recurso, elaborou este o seguinte despacho:
“Dado que, não obstante ter sido determinada a elaboração de alegações, se configura como eventual solução do presente recurso o seu não conhecimento, elabora-se o presente despacho, nos termos dos artigos 69º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, e 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
1. Nos termos do requerimento de interposição do recurso o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional exerça “a sua actividade cognitiva sobre o seguinte preceito: Sobre a parte final do artigo 1691.º, n.º 1 al. d) do Código Civil, quando diz “salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal” , o que representa uma violação dos princípios fundamentais da família, a igualdade de direitos e deveres entre cônjuges, o princípio da igualdade no acesso ao direito, o princípio da proporcionalidade e o direito a um processo equitativo, constantes nos artigos 13.º, 20.º e 36.º, todos da Constituição da República Portuguesa.” Acresce que, nas alegações do recurso, o recorrente delimita o respectivo objecto, em termos claros, afirmando, nomeadamente, o seguinte:
“II. O OBJECTO DO RECURSO DE CONSTITUCIONALIDADE
1. Resulta claramente do requerimento de interposição do recurso que o objecto do presente recurso é limitado à apreciação da conformidade constitucional da parte final do art.º 1691°, n.º1, d), do Código Civil, quando diz “...salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal...” , o que representa uma violação dos princípios fundamentais da família, da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, do princípio da igualdade no acesso ao direito, do princípio da proporcionalidade e do direito a um processo equitativo, constantes dos artºs 13°, 20º e 36°, todos da Constituição da República Portuguesa.” (sublinhado aditado). Afigura-se, porém, como plausível que se não possa conhecer do objecto do recurso delimitado pelo recorrente. Vejamos, sumariamente, porquê.
2. O recorrente, como lhe compete, limitou o objecto do recurso à “apreciação da conformidade constitucional da parte final do art.º 1691°, n.º1, d), do Código Civil, quando diz “...salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal...”. Como se afirmou, recentemente, no Acórdão n.º 434/2004 (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “é naturalmente ao recorrente que incumbe a definição do objecto do recurso, sendo o requerimento de interposição o momento adequado para o efeito (cfr. o n.º 1 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, que exige ao recorrente que defina a norma cuja constitucionalidade impugna, bem como os Acórdãos n.ºs 366/96 ou 589/99, Diário da República, II série, de 10 de Maio de 1996 e de 20 de Março de 2000, respectivamente).” Por outro lado, é admissível que o recorrente, nas alegações, proceda à restrição do objecto do recurso (artigo 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil), não podendo, todavia, ampliá-lo. Está, assim, o presente recurso limitado à apreciação da inconstitucionalidade do segmento da parte final do art.º 1691°, n.º1, d), do Código Civil, quando diz
“...salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal...”, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre objecto diverso do pedido (artigo 661º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
3. Ora, conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 337/94, 498/96 e 3/2000 – publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1994, de 22 de Julho de 1996 e de 8 de Março de 2000 -, e os Acórdãos n.ºs 283/97, 556/98, 490/99 - disponíveis na página Internet do Tribunal, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental. Isso significa, como se afirmou no Acórdão n.º 498/96, já citado, “que o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa. Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso”. Por seu turno, no Acórdão n.º
556/98, também já citado, afirmou-se que “o recurso de constitucionalidade é um recurso instrumental, só fazendo sentido dele conhecer quando a decisão que o resolve se pode projectar com utilidade sobre a causa”, concluindo-se assim “que dele se não deva conhecer quando se não verifique qualquer efeito útil do mesmo sobre ela”. Assim, no caso concreto, ainda que se admitisse que o Tribunal Constitucional pudesse eventualmente vir a julgar inconstitucional o segmento da norma que é questionado pelo recorrente, tal juízo nenhuma repercussão teria na decisão recorrida. De facto, desprovido desse segmento, o artigo 1691º, n.º 1, alínea d) do Código Civil limitar-se-ia a estatuir que “1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges: ...d) - As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se [...] vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens”, o que, manifestamente, não deixaria de conduzir à solução a que chegou a decisão recorrida.
4. Por todo o exposto, entendemos ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso delimitado pelo recorrente, por manifesta inutilidade do mesmo. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias, sem prejuízo do prazo em curso para [a] recorrid[a] responder às alegações.”
7. Notificada para responder, querendo, ao parecer do relator, a recorrente veio dizer o seguinte:
“[...]1. Salvo o devido respeito, só por mero lapso se poderá entender que o objecto do presente recurso se limita à apreciação da conformidade constitucional da parte final do artº, n° 1, al. d) do Código Civil.
2. Com efeito, nunca poderia ser só a parte final deste artigo a estar em causa, sob pena de o próprio objecto do recurso ficar desprovido de qualquer sentido.
3. Efectivamente, o que a recorrente alega é que o facto das dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio serem automaticamente consideradas da responsabilidade de ambos os cônjuges, representa uma clara violação dos princípios fundamentais da família, da igualdade no acesso ao direito, do princípio da proporcionalidade e do direito a um processo equitativo, constantes dos artºs 13°, 20º e 36°, todos da Constituição da República.
4. Na verdade, interpretar o artº 1691°, n° 1, d) do Código Civil, na sua totalidade, no sentido de ser considerada para proveito comum do casal qualquer dívida contraída por apenas um dos cônjuges - mesmo não tendo sido feita prova de comunicabilidade alguma dessa dívida e apesar de o cônjuge responsável pela mesma não necessitar de provar que os seus proventos se destinavam ao sustento de todo o agregado familiar - é violar de forma crassa os princípios garantidos nos artigos constitucionais supra referidos.
5. Com efeito, ao cônjuge não-comerciante é imposto, à partida, a obrigatoriedade de provar um facto negativo, ou seja, apesar de nada ter a ver com a transacção efectuada, é-lhe imposto que prove que dela não usufruiu, independentemente do facto de o outro cônjuge conseguir ou não provar que o proveito de semelhante dívida foi para proveito de ambos.
6. Daqui resulta que o objecto do presente recurso nunca se poderia limitar exclusivamente à parte final do artigo em discussão, antes abrangendo todo aquele artigo.
7. Consequentemente, nunca se poderá afirmar que o conhecimento do objecto do presente recurso é manifestamente inútil, por falta de projecção com utilidade sobre o mérito da causa.
8. Na verdade, sendo o presente recurso julgado procedente e, consequentemente, declarada materialmente inconstituciona1 a norma em apreço, nunca a ora recorrente poderá vir a ser condenada ao pagamento de uma dívida que não contraiu e da qual nunca beneficiou, pelo que é manifestamente evidente a utilidade do conhecimento do objecto do presente recurso. [...]”.
8. A recorrida, por seu turno, notificada, nada disse.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
9. Admitido o recurso no Tribunal da Relação do Porto e não obstante ter sido determinada a produção de alegações, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC).
Emitido o despacho do relator de 1 de Outubro de 2004, a recorrente veio dizer, no essencial, que “só por mero lapso se poderá entender que o objecto do presente recurso se limita à apreciação da conformidade constitucional da parte final do art.º, n° 1, al. d) do Código Civil” e que “o objecto do presente recurso nunca se poderia limitar exclusivamente à parte final do artigo em discussão, antes abrangendo todo aquele artigo”, pelo que “nunca se poderá afirmar que o conhecimento do objecto do presente recurso é manifestamente inútil”.
Ora, como se demonstrou naquele despacho, foi a recorrente que, no requerimento de interposição do recurso, delimitou, como é sua obrigação, o objecto do recurso, solicitando que “o Venerando Tribunal Constitucional [exercesse] a sua actividade cognitiva sobre o seguinte preceito: – Sobre a parte final do artigo
1691.º, n.º 1 al. d) do Código Civil, quando diz «salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal»” (sublinhado aditado). E tal delimitação foi confirmada de forma clara, expressa e precisa, nas alegações para este Tribunal. Assim sendo, a haver algum lapso, o mesmo só pode ser imputável à recorrente, a qual, contudo, se encontra devidamente representada por profissional do foro, oportunamente constituído como mandatário judicial.
Por outro lado, a recorrente, na resposta ao despacho do relator, vem afirmar que “o objecto do presente recurso nunca se poderia limitar exclusivamente à parte final do artigo em discussão, antes abrangendo todo aquele artigo”. Acontece, todavia, que esta ampliação do objecto do recurso não é, como, aliás, já se referia naquele despacho, admissível. Na verdade, como se decidiu no Acórdão n.º 286/00 (disponível na página Internet do Tribunal - http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000286.html),
“[...] conforme vem sendo reafirmado por este Tribunal, o requerimento de interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º 1 do artigo 75º-A desta Lei), sem prejuízo de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, n.º 3). O que a recorrente não pode fazer é nas alegações (recte, nas suas conclusões) ampliar o objecto do recurso antes definido (neste sentido, cfr. Acórdãos nºs. 71/92, 323/93, 10/95,
35/96, 379/96 e 20/97, publicados na II Série do Diário da República, de
18/8/92, 22/10/92, 22/3/95, 2/5/96, 15/7/96 e 1/3/97, respectivamente).
E se não é admissível a ampliação do objecto do recurso “nas alegações (recte, nas suas conclusões)”, por maioria de razão o não será na resposta ao despacho do relator, que, antevendo a possibilidade de não conhecimento do recurso por manifesta inutilidade do mesmo, manda ouvir a recorrente sobre esta matéria.
Assim, estando apenas em causa, como está, por delimitação da recorrente, a
“parte final do art.º 1691°, n.º1, d), do Código Civil, quando diz “...salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal...”, o próprio objecto do recurso, como aquela bem reconhece, “fica[] desprovido de qualquer sentido”, isto é, revela-se manifestamente inútil.
Pelo exposto e pelas razões constantes do despacho do relator notificado às partes, que não foram infirmadas e, por isso, aqui se reiteram, não pode efectivamente o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso, por manifesta inutilidade do mesmo, ficando igualmente precludida a possibilidade de o Tribunal verificar um eventual carácter manifestamente infundado da questão.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Novembro de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa) Artur Maurício (vencido, nos termos da declaração do Exm.º Cons.º Vítor Gomes)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Embora concordando com as premissas que lhe presidem, de que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tem uma função instrumental e de que incumbe ao recorrente a definição do objecto do recurso, sendo o requerimento de interposição o momento adequado para fazê-lo (sem prejuízo de posteriores restrições, mas não ampliações), não posso acompanhar a decisão de não conhecer do objecto do presente recurso.
Muito sumariamente, por interpretar o requerimento de interposição do recurso, no contexto processual em que surge, designadamente da discussão travada perante o tribunal a quo e da resposta que este deu à concreta questão de constitucionalidade suscitada e de que não pode ser desligado, como incidindo sobre a norma do n.º 1, alínea d) do artigo 1691.º do Código Civil, na parte em que faz impender sobre o cônjuge não comerciante o ónus de provar que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal.
A circunstância de a recorrente ter feito a definição do objecto do recurso por referência ao segmento “salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal” não impede objectivamente esta interpretação porque, na estrutura do preceito, é precisamente aí que está o fulcro do efeito normativo ou critério jurídico de decisão contra o qual batalha. Ao identificar um segmento normativo a recorrente não visou propriamente erradicar do preceito legal determinada expressão verbal, mas o sentido normativo de que ela é portadora : a presunção e a consequente repartição do ónus da prova do proveito comum do casal que estabelece. Atendendo à função do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, nada obstava a que o Tribunal conhecesse do recurso com este objecto porque daí não resultaria qualquer dificuldade de execução do acórdão pelo tribunal da causa, fosse qual fosse a resposta. Aliás, o acórdão recorrido, entendeu perfeitamente que era esse o alcance da questão quando ela lhe foi suscitada no seu âmbito de competência.
Acrescento, contudo, que negaria provimento ao recurso, no essencial, pelas razões com que o acórdão recorrido afrontou e decidiu a questão de constitucionalidade. Vítor Gomes
[1] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 3ª ed., pág. 220, nota I ao artº 36°;
[2] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 3. ed., nota V ao artº
36°, pág. 221 e 222;
[3] Direito Comercial, Sumários das Lições ao 3° ano jurídico, Coimbra
1977-1978, 92e ss.;
[4] RDES, Ano XXIV – nº 4 (Dez. - Out. 1977), nota 3, pág. 243;