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Processo nº 755/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente o Ministério Público e como recorrido o banco A., é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 12º, nº 1, da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores de entidade declarada falida com vista à garantia dos salários em atraso e indemnizações por despedimento devidas, prevalecer, ao abrigo do disposto no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada. O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1 - A norma constante do artigo 12°, n° 1 da Lei n° 17/86, de 14 de Junho, interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores de entidade declarada falida com vista à garantia dos 'salários em atraso' e indemnizações por despedimento devidas, prevalecer, ao abrigo do disposto no artigo 751° do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada, não é materialmente inconstitucional.
2 - Na verdade, a restrição à tutela da confiança do credor hipotecário na prioridade, emergente das regras do registo, na satisfação do crédito - puramente patrimonial - de tal credor encontra justificação constitucio-nalmente adequada na circunstância de o direito dos trabalhadores à remuneração do trabalho prestado e à indemnização por despedimento se configurar como expressão de um direito fundamental, susceptível de legitimar a referida 'compressão' do direito de credor hipotecário.
3 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Por seu turno, o Banco recorrido contra-alegou, sustentando o seguinte:
I. O artigo 12° da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, interpretado no sentido de que o privilégio imobiliário nele conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.° do Código Civil, é inconstitucional, por violação do artigo 2.° da CRP. II. A valoração e especificidade dos créditos laborais dada pela jurisprudência resultante do Acórdão n.º 498/2003, não permite, salvo melhor opinião, fundamentar uma restrição proporcional e adequada do princípio da confiança, comprimindo o direito do credor hipotecário. III. É que a matéria atinente aos privilégios creditórios laborais foi, com a aprovação e entrada em vigor do Código do Trabalho (Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto ), revista e integrada naquele normativo, no sentido do reforço da tutela conferida aos créditos dos trabalhadores. IV. Prevalecendo a jurisprudência que decorre do douto Acórdão n.º 498/2003, e se tivesse sido essa a percepção do legislador ordinário, a alteração legislativa não seria havida como 'um inquestionável reforço da tutela conferida aos créditos dos trabalhadores', mas sim uma efectiva restrição a essa tutela. V. Tal, porém, não suscitou quaisquer dúvidas que motivassem a inclusão deste normativo (artigo 377° do Cód. Trabalho) no pedido de fiscalização preventiva formulado pelo Presidente da República ao Tribunal Constitucional. VI. A interpretação que decorre do douto Acórdão n.º 498/2003, mostra-se caritativa nos fins que se propõe alcançar, mas, salvo o devido respeito, extravasa a verdadeira e única dimensão e âmbito dos privilégios imobiliários gerais que, perante a omissão de qualquer intenção do legislador ordinário nesse sentido, patente nos diversos diplomas avulsos nos quais consagrou os privilégios imobiliários gerais, retira que o constante da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, tem natureza especial não susceptível de um juízo de inconstitucionalidade nos termos e fundamentos dos Acórdãos n.º 362/2002 e
363/2002. VII. Não se vislumbra qualquer alteração dos pressupostos que motivaram os Acórdãos n.º 362/2002 e 363/2002, estando, aliás, pela natureza composta dos créditos em causa - retribuição acrescida da indemnização -, os mesmos, porventura, agravados. VIII. As invocadas adequação e proporcionalidade da restrição ao princípio geral da confiança, no sentido resultante das doutas alegações do Ministério Público e do Acórdão n.º 498/2003, fundamentadas pela aplicação do regime decorrente dos artigos 17° e seguintes da C.R.P., determinam, salvo melhor opinião, um agravamento excessivo e desproporcionado do princípio da confiança postulado pelo artigo 2°. IX. Não vinga o argumento de que os trabalhadores beneficiários não dispõem de meios alternativos para cobrar os seus créditos, atenta a existência e os fins do Fundo de Garantia Salarial (DL n.º 219/99, de 15 de Junho), entidade de
índole pública, que procede ao pagamento dos créditos laborais, sub-rogando-se nos mesmos, permitindo que o custo social e a efectivação do direito fundamental podem ser suportados pela colectividade (Estado), desonerando-se os agentes económicos privados de suportarem a invocada restrição. X. Incorre sobre o agente económico financiador o duplo encargo de financiar a actividade da empresa, assegurando, por via dos financiamentos concedidos, o pagamento dos salários dos trabalhadores e pelo registo da sua própria garantia hipotecária que os imóveis da entidade empregadora não sejam objecto de actos de disposição. XI. O que decorre da jurisprudência firmada no Acórdão n.º 498/2003 é, salvo o devido respeito, uma subversão do normal fluência do comércio jurídico, onerando os agentes económicos privados com encargos sociais, que, apesar do seu carácter relevante, lhes são absolutamente alheios, ocultos e não atendíveis para a efectivação dos financiamentos.
Cumpre apreciar.
2. O Tribunal Constitucional já apreciou a questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade normativa. Com efeito, no Acórdão nº 498/2003 (D.R., II Série, de 3 de Janeiro de 2004), o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma em apreciação. Não suscitando os presentes autos qualquer questão nova no plano da constitucionalidade que deva ser apreciada, entende o Tribunal Constitucional que são aqui válidos os argumentos do Acórdão nº 498/2003, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma em questão, nos termos da fundamentação do referido aresto para a qual se remete.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 12º, nº 1, da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil, revogando consequentemente a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 23 de Novembro de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos