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Processo n.º 156/04
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público recorreu para o Tribunal Constitucional,
“nos termos do estatuído no art. 280º, n.ºs 1, Al. a), e 3, da CRP”, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2003, de fls. 383, que negou provimento ao recurso de apelação interposto pelo ICOR (Instituto para a Construção Rodoviária), confirmando integralmente, nos termos do disposto no n.º
5 do artigo 713º do Código de Processo Civil, a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Amarante, de fls. 326. Esta sentença, por sua vez, julgara parcialmente procedente o recurso interposto pelos expropriados, A. e mulher, B., da decisão arbitral que fixara a indemnização devida pela expropriação da parcela de terreno devidamente identificada nos autos, para o que agora interessa, nos seguintes termos:
“Ora, considerando as características do terreno expropriado nestes autos, a definição legal que, de imediato, a ele se ajusta é a que, constando do art. 24º, n.º 2, al. a), determina a respectiva classificação como solo apto para construção.
Trata-se, na verdade, de uma parcela que confronta com via pública
(Estrada Nacional n.º -------) que dispõe de pavimentação betuminosa, dotada de redes de energia eléctrica, abastecimento de água e drenagem de esgotos, sendo certo que todas esses infra-estruturas se encontravam já, à data da declaração de utilidade pública, em pleno funcionamento.
De acordo com estas características, a sua potencialidade edificativa é, pois, indiscutível, tanto mais que a parcela situa-se dentro do perímetro urbano de ------ (...).
Preenchida a previsão do art. 24º, n.º 2, al. a) do Cód. das Expropriações a atribuição de classificação distinta de solo apto para construção, apenas poderia fundamentar-se no disposto no art. 24º, n.º 5, do C. Exp., que equipara a solo para outros fins o que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção.
E tal conclusão assentaria na circunstância de parte da parcela estar localizada em área da Reserva Agrícola Nacional, em 25% da sua extensão.
Jamais poderia resultar do Plano Director municipal de --------, que não estava em vigor à data da declaração de utilidade pública, pois alterações posteriores não assumem relevância, como resulta também do disposto no art. 23º n.º 1, do Código das Expropriações de 1991.
O regime art.24º, n.º 5, do C. Exp. aplicável não pode, no entanto, ser interpretado isoladamente, nem como princípio absoluto.
Não se esqueça que, por imperativos constitucionais (art. 61º, n.º
2, da C.R.P.). o critério prevalecente é sempre, face ao princípio da justa indemnização, o do valor de mercado ou valor corrente do bem expropriado.
O mesmo critério essencial, aliás, é seguido pela lei ordinária
(art. 22º do C.E. de 1991). De tal como que, segundo se entende, a aplicação do disposto no art. 24º, n.º 5, só terá lugar quando se justificar, face a todas as características do caso, nomeadamente a sua localização e a área sobre a qual incide a impossibilidade de construção, que a parcela expropriada seja classificada como solo para outros fins.
Esta interpretação, se ainda é comportada pela letra da lei, que não a afasta, está manifestamente baseada no seu espírito, e ademais, é a única que se mostra adequada ao princípio constitucional da justa indemnização. Na verdade, se uma lei permite várias interpretações das quais apenas uma certa e determinada é compatível com a Constituição, deve tal lei ser interpretada nesse sentido.
Para perceber, aliás, que o critério do valor corrente e de mercado
é prevalecente basta ver, simplesmente, que a doutrina do anterior art. 24º, n.º
5, não foi transposta para o actual C.E.
No mesmo sentido depõe ainda, a nosso ver decisivamente, o disposto no art. 25º, n.º 5, do C.E. de 1991. Pois essa norma pressupõe precisamente que, não obstante a existência de área que não possa ser aplicada na construção, o terreno mesmo assim possa ser classificado como solo apto para construção.
“No caso dos autos, entende-se que o artigo 24º, n.º 5, não impede a qualificação da parcela expropriada como solo apto para construção.
Desde logo, apenas 25% da área da parcela expropriada insere-se na RAN.
Por outro lado, a potencialidade edificativa do terreno é patente, prevalecendo sobre quaisquer outras circunstâncias: confronta com estrada que dispõe de todas as estruturas básicas; situa-se dentro de perímetro urbano; está muito próxima do centro da cidade e da sua zona histórica; é rodeada por construções unifamiliares de cave, rés do chão e andar, prédio de habitação colectiva e, inclusivamente, construções com um piso destinadas a comércio e garagem.
Na verdade, aqui, como em caso já apreciado pela jurisprudência, deve entender-se que a inclusão na RAN e a inexistência de alvará de loteamento de uma parcela expropriada por utilidade pública não obsta à avaliação, pelo seu valor real e corrente, consequente da aptidão para construção urbana, desde que lhe seja reconhecida pelos peritos, com o fundamento de que se situa em zona que se encontra em fase de expansão urbanística, e recusar a avaliação em função dessa aptidão ofende os princípios constitucionais da justa indemnização e da igualdade perante a lei (cfr. Ac. da R. P. de 21-1-1992, BMJ, 413º, p. 612). Adere-se, portanto, ao laudo maioritário dos peritos. A parcela é classificada como solo apto para construção, aplicando-se o regime do art. 25º do Código das Expropriações”.
2. No requerimento de interposição de recurso, o Ministério Público sustentou o seguinte:
“1º O douto acórdão recorrido confirmou integralmente a douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Amarante.
2º Sentença esta na qual se decidiu que, embora à data da publicação da DUP, 25% da
área da parcela expropriada se inserisse em Reserva Agrícola Nacional, toda a parcela expropriada deveria, para efeitos de cálculo da indemnização a atribuir aos expropriados, ser classificada como solo apto para construção, conforme previsto no artigo 25º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro.
3º Para assim se decidir, foi recusada, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por ofensa dos princípios constitucionais da justa indemnização e da igualdade perante a lei, contidos, respectivamente, nos artigos 62º, n.º 2, e 13º da CRP, a aplicação do artigo 24º, n.º 5, do mesmo Código das Expropriações.
4º Na verdade, o artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991 equipara a solo para outros fins – excluindo-o, portanto, da classificação como solo apto para a construção – o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção, tal como sucede com os solos inseridos na RAN.
5º A interposição do presente recurso é obrigatória para o Ministério Público – artigo 72º, n.º 3, da LTC, Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.”
3. Pela decisão sumária de fls. 404, decidiu-se não conhecer do objecto do recurso. A decisão veio, todavia, a ser revogada pelo Acórdão n.º 402/2004, de fls. 420, que deferiu a reclamação apresentada pelo Ministério Público, a fls.
414.
4. Assim, foi determinado o prosseguimento do recurso, tendo as partes sido notificadas para apresentarem alegações.
Quanto ao Ministério Público, sustentou não existir “qualquer razão para julgar inconstitucional a interpretação normativa do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, traduzida em considerar colidente com a Constituição da República Portuguesa a atribuição de relevância, para aferir da natureza do solo expropriado, às normas legais e regulamentares que ditam a sua inclusão na RAN – num caso em que a potencialidade edificativa do terreno não existia no momento da expropriação, não foi desencadeada pelo processo expropriativo, nem revelada pelo fim concreto que a Administração atribuiu aos solos expropriados – nada na Lei Fundamental impondo que a classificação dos solos para fins indemnizatórios tenha de assentar exclusivamente na ponderação da sua natureza e localização «física», com obrigatória «desgraduação» do quadro normativo e regulamentar existente quanto ao jus aedificandi”.
Nesta sequência, formulou as seguintes conclusões:
“1 – Não é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da justa indemnização, a interpretação normativa do artigo 24º, n.º 5 do Código das Expropriações de 1991 que confere relevância às restrições legais ou regulamentares ao jus aedificandi, resultantes, no caso, da inclusão da parcela expropriada na área da RAN – num caso em que as finalidades da expropriação – construção de vias de comunicação – não revelam qualquer aptidão edificativa próxima, e sem que se vislumbre qualquer actuação pré-ordenada da Administração, destinada directamente à «degradação» do valor do solo expropriado.
2 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Quanto aos recorridos, concluíram as respectivas alegações do seguinte modo:
“5 – Donde se conclui não assistir razão de espécie alguma à recorrente porquanto e em síntese,
A decisão tomada não invocou ou se serviu da interpretação da inconstitucionalidade fosse de que norma fosse (nomeadamente do artigo 24º, n.º
5, do Código das Expropriações de 1991). Antes o fez pela positiva ao abrigo do artigo 24º, n.º 2, do mesmo Código e por referência ao princípio constitucional da justa indemnização.
Apenas 25% do terreno se inseria na RAN à data da DUP, pelo que na pior das hipóteses só esta parcela deveria ser objecto de valorização diferente por ser considerada terreno para outros fins.
A verdade é que essa parcela já foi objecto de avaliação «corrigida» nos termos do artigo 25º, n.º 5, do Código das Expropriações e avaliada de forma diferente, e por bem menor preço por metro quadrado que o restante terreno.”
5. É o seguinte o texto da norma do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro e entretanto revogado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, que aprovou o novo Código das Expropriações):
Artigo 24º
(Classificação de solos)
...
5 – Para efeitos de aplicação do presente Código é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção.
A norma do n.º 5 do 24º do Código das Expropriações de 1991 foi já apreciada por diversas vezes pelo Tribunal Constitucional. Pelo Acórdão n.º 267/97 (publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Maio de 1997), foi julgada inconstitucional a norma do referido n.º 5 “enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de solo apto para a construção os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola”.
Todavia, em todos os outros casos em que foi chamado a pronunciar-se sobre o mesmo artigo 24º, n.º 5, o Tribunal julgou no sentido da não inconstitucionalidade, como se pode verificar da seguinte transcrição do seu Acórdão n.º 275/04 (publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Junho de
2004):
“No Acórdão 20/2000 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Abril de 2000), decidiu-se «não julgar inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações vigente, interpretada por forma a excluir da classificação de ‘solo apto para a construção’ solos integrados na Reserva Agrícola Nacional expropriados para implantação de vias de comunicação». E esta jurisprudência, no sentido da não inconstitucionalidade, veio a ser confirmada e desenvolvida posteriormente pelo Tribunal, não só em relação a solos integrados na Reserva Agrícola Nacional expropriados para implantação de vias de comunicação, mas também expropriados para outros fins, nomeadamente nos Acórdãos n.ºs 247/2000, 346/2003, 347/2003 e 425/2003 (disponíveis na página do Tribunal Constitucional na Internet, no endereço www.tribunalconstitucional.pt), e nos Acórdãos n.ºs 219/2001, 243/2001, 172/2002, 121/2002, 155/2002, 417/2002,
419/2002, 333/2003 e 557/2003 (publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 6 e 4 de Julho de 2001, 3 de Junho de 2002, 12, 30, 17 e 31 de Dezembro de 2002, 17 de Outubro de 2003 e de 23 de Janeiro de 2004).”
Estes diversos julgamentos de não inconstitucionalidade não correspondem, todavia, a nenhuma mudança de orientação na jurisprudência do Tribunal. Como se observou, por exemplo, no Acórdão n.º 419/2002, aprovado a propósito de um recurso interposto para o Plenário do Tribunal Constitucional, apontando a ocorrência de contradição de julgados entre o acórdão então recorrido, o Acórdão n.º 155/2002, e o referido Acórdão n.º 267/97,
“A decisão proferida no presente processo não contradiz a jurisprudência deste Tribunal sobre a norma questionada – a norma contida no n.º 5 do artigo 24º do Código da Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro.
Na verdade, a existência de oposição entre dois acórdãos quanto ao julgamento da mesma questão de inconstitucionalidade não pode aferir-se em função do teor literal das decisões, mas em função das razões de decidir num caso e no outro.
No acórdão fundamento (Acórdão n.º 267/97), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, “enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de «solo apto para a construção» os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola”. No caso discutido nesse acórdão, estava em causa uma parcela de terreno, que fazia parte da RAN, mas que dela foi desafectada para o efeito de ser expropriada, e que não poderia ser avaliada como terreno apto para a construção, ainda que dotada de todas as infra-estruturas, sendo a expropriação destinada à construção de um quartel de bombeiros. No julgamento de inconstitucionalidade teve-se em conta a circunstância de a parcela em questão ter sido desafectada da RAN, para o mencionado fim, de tal modo que o direito de edificar não podia deixar de ser considerado no cômputo da indemnização da expropriação. Por outro lado, na situação analisada nesse processo, o Tribunal detectou um comportamento da Administração que implicitamente considerou estar próximo da figura do “abuso de direito” – o que transparece claramente do segmento em que se reconhece ter ocorrido alguma tentativa “de manipulação das regras urbanísticas por parte da Administração”, traduzidas na “classificação dolosa” de um terreno como zona verde (ou reservada a uso agrícola), “desvalorizando-o, para mais tarde o adquirir, por expropriação, pagando por ele um valor correspondente ao de solo não apto para construção”.
O alcance da decisão proferida no citado Acórdão n.º 267/97 foi explicitado pela jurisprudência constitucional posterior no sentido de que o que interessa para efeitos de “justa indemnização” não é o facto de o terreno deixar de ser agrícola, pois isso não afecta a necessidade da sua qualificação como
“solo apto para a construção”, mas sim a circunstância de o terreno ter ou não uma muito próxima ou efectiva aptidão edificativa, que resulta do facto de o expropriante lhe dar uma utilização para construção urbana (cfr. os Acórdãos n.ºs 20/2000, 247/2000, 219/2001, 243/2001, 121/2002, 172/2002, bem como o Acórdão recorrido, n.º 155/2002).
Segundo o critério defendido por este Tribunal, “só a existência desta possível aptidão edificativa justificaria que os terrenos em causa pudessem ser qualificados como «aptos para construção», com a consequente eventual violação da Constituição no caso de o não virem a ser”.
Ora, partindo deste critério, o Tribunal, nos casos que foram submetidos à sua apreciação, deu resposta diferente à questão da constitucionalidade consoante a potencialidade edificativa dos terrenos que, em cada processo, estavam em causa. Assim, o Tribunal entendeu que a desafectação dos terrenos da RAN/REN para efeitos de expropriação com vista à construção de vias de comunicação não traz a tais terrenos uma maior potencialidade edificativa (Acórdãos n.ºs 20/2000, 247/2000, 219/2001, 243/2001, 121/2002,
172/2002). O mesmo se decidiu no Acórdão recorrido (nº 155/2002), em que a desafectação dos terrenos da RAN/REN para efeitos de expropriação se destina à construção de uma central de incineração de resíduos e respectivo aterro sanitário.
Em todos estes caos, considerou o Tribunal que a potencialidade edificativa não existia antes, uma vez que os terrenos se inseriam na RAN/REN, e que a expropriação (e a desafectação) não gerou tal potencialidade edificativa, uma vez que neles não se edificaram construções urbanas; antes se implantaram equipamentos que carecem, em absoluto, de estar distanciados dos núcleos urbanos.”
6. No presente recurso, não estão presentes as razões que levaram ao julgamento de inconstitucionalidade formulado pelo Acórdão n.º 267/97, antes valendo as considerações que, nos demais arestos citados, conduziram ao julgamento de não inconstitucionalidade, que se encontram resumidas na transcrição acabada de fazer e para as quais agora se remete.
7. Assim, decide-se conceder provimento ao recurso e determinar a reformulação da decisão recorrida, em consonância com o presente julgamento de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de Novembro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício