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Processo n.º 940/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. vem, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), reclamar do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Julho de 2004, que não admitiu o recurso de constitucionalidade por ela interposto, despacho esse que assume expressamente como sua fundamentação as razões expendidas em precedente parecer do representante do Ministério Público, do seguinte teor:
“2. Vem o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LOFPTC.
Diz, para tanto, a recorrente que «as normas constantes dos artigos
271.º, n.º 3, 497.º, n.ºs 1 e 2, 498.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 673.º e 813.º, alíneas a) e g), do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação que lhes é dada pelo douto Acórdão recorrido, violam os princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei, ínsitos nos artigos 2.º, 9.º, alínea b), e 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que garantem aos cidadãos a permanência e a inalterabilidade do caso julgado» (fls. 1613, verso).
Em causa, alegada violação do caso julgado formado na acção n.º
1910/83, tal como foi declarado nas acções n.ºs 91/87 e 135/98.
Persiste, pois, a recorrente, na defesa da sua tese que entre a presente acção e aquelas outras existem relações de identidade (remete-se, quanto a esta parte, para a vista liminar do recurso, a fls. 1514/8).
Ora, no douto acórdão recorrido expressamente afastou-se a existência de relações de identidade entre tais acções, do mesmo passo se rejeitando a verificação de caso julgado.
As normas invocadas não foram, em suma, aplicadas no acórdão recorrido.
Como se refere na última parte do acórdão do Tribunal Constitucional, de 28 de Outubro de 2003, junto a fls. 1556/71 [trata-se da Decisão Sumária n.º 260/2003], que não conheceu do recurso, interposto pela mesma recorrente, do acórdão deste Tribunal, de 28 de Janeiro de 2003, proferido no processo de embargos de executada, citando anterior jurisprudência: «a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida» (fls. 1571).
3. Termos em que se conclui no sentido de, atento o disposto no n.º
1 e na parte final do n.º 2 do artigo 76.º da LOFPTC, dever o requerimento de interposição de recurso ser indeferido, por manifestamente infundado.”
Na sua reclamação, a reclamante desenvolve a seguinte argumentação:
“A decisão de rejeição do recurso, perfilhando o parecer do Ministério Público, assenta na consideração de que «as normas invocadas não foram, em suma, aplicadas ao acórdão recorrido», sendo que neste «afastou-se expressamente a existência das relações de identidade entre tais acções, do mesmo passo se rejeitando a verificação de caso julgado».
Em defesa dessa tese, a decisão que rejeitou o recurso, cita uma passagem do Acórdão n.º 197/97 do Tribunal Constitucional, ou seja, «a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida».
Em conclusão, a decisão de rejeição do recurso estriba-se no facto de o acórdão recorrido não ter aplicado as normas do caso julgado que a recorrente apontou como violadoras dos princípios constitucionais.
Com todo o devido respeito, a reclamante não pode conformar-se com tal entendimento, tanto mais que os pressupostos em que se fundamenta não se verificam no caso concreto.
Na verdade, as normas imanentes aos preceitos legais reguladoras do caso julgado são aplicadas
– quer quando se decide existir uma situação de caso julgado;
– quer ainda quando se reanalisa indevidamente uma questão já antes apreciada judicialmente com trânsito em julgado e se decide em sentido contrário àquela decisão transitada, violando-se dessa forma o caso julgado.
O que sucede é que neste último caso os preceitos legais atinentes ao caso julgado são interpretados por forma a permitir a reavaliação judicial da mesma questão, já antes decidida com trânsito em julgado. Ora, esta reanálise é vedada pelos princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei.
E quando essa reanálise ocorre e a decisão judicial daí resultante conclui pela não verificação dos pressupostos do caso julgado, atentando claramente contra o caso julgado já declarado, não podemos deixar de entender que os preceitos legais atinentes ao caso julgado foram aplicados embora com uma interpretação claramente violadora dos princípios constitucionais atrás enunciados. Só assim será possível a sindicância, através do Tribunal Constitucional, de uma decisão judicial atentatória dos princípios constitucionais imanentes às normas processuais que consagram o caso julgado, pois a entender-se o contrário essa sindicância deixará de ser possível, bastando apenas que o Tribunal, ao reanalisar uma questão, conclua – erradamente – pela não repetição da causa e consequente inexistência de caso julgado. Ora, estas circunstâncias representam a forma mais paradigmática da violação do caso julgado e dos princípios constitucionais com ele relacionados. Negar nesses casos a possibilidade de controlo do Tribunal Constitucional em relação às decisões dos Tribunais judiciais será truncar de uma forma grave a amplitude das competências daquele Tribunal e reduzir as garantias dos cidadãos no tocante a princípios consagrados na Constituição.
No caso presente, existiu uma clamorosa e óbvia ofensa do caso julgado e dos princípios constitucionais com ele relacionados. Vejamos para o efeito a cronologia factual e processual:
Em 10 de Maio de 1983, a exequente intentou contra o então seu marido B. (hoje seu ex-marido) e contra a C., Lda., a acção ordinária 1910/83, ou seja, a acção principal cuja sentença aqui se executa. Tal acção visou obter a declaração, em relação à autora, da ineficácia da venda que o B. fizera em 8 de Outubro de 1981 à C., tendo por objecto um terreno e uma construção nele implantada, terreno esse então inscrito na matriz rústica sob o artigo ---- da freguesia da ---------------, em Coimbra, e descrito na Conservatória sob o n.°
------------. Mais peticionou a entrega do terreno e da construção, bem como o cancelamento dos registos operados com base na escritura de venda. A acção baseou-se no abuso dos poderes de representação. Esta acção procedeu, nos termos constantes na decisão exequenda – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de
10 de Março de 1987, confirmado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), proferido em 16 de Novembro de 1988, constantes da acção principal;
Antes de a decisão da acção 1910/83 (atrás referida) haver transitado em julgado, ou seja, no dia 23 de Março de 1987, a mesma autora intentou uma nova acção (91/87) contra a C., e contra os diversos adquirentes das fracções em que o edifício implantado no terreno com o artigo matricial n.°
--- havia sido dividido após a sua inscrição na matriz como prédio urbano a que passou a corresponder o artigo ------ e depois da sua constituição em propriedade horizontal. A autora alegou para o efeito que a venda inicial
(feita pelo seu marido à C.) havia sido declarada ineficaz, mas a C. havia prosseguido a construção, constituíra o prédio em propriedade horizontal por escritura pública de 11 de Abril de 1983, inscrevera o prédio na matriz e vendera de seguida todas as fracções. Por conseguinte, face à declarada ineficácia da venda inicial, conforme decisão proferida na acção 1910/83, todas as vendas subsequentes das fracções feitas peja C. aos diversos compradores eram nulas por serem feitas a non domino.
Peticionou por fim a declaração de nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal e de todas as vendas das fracções, bem como o cancelamento dos registos feitos com base nas escrituras de venda e a entrega a ela das fracções do prédio.
Na contestação, os diversos réus invocaram várias excepções, entre elas a diversidade entre o objecto da acção 1910/83 (terreno com construção) e dessa mesma acção 91/87 (prédio urbano constituído por diversas fracções) e os efeitos do registo, nomeadamente os advenientes da caducidade do registo da acção 1910/83, verificada em 30 de Março de 1990.
Na réplica, a autora alterou o pedido face à repercussão que, segundo ela, a ineficácia da venda inicial tinha nas vendas subsequentes das fracções, sendo estas também ineficazes em relação a si mesma e não nulas como referira na petição inicial.
A acção foi julgada parcialmente procedente no despacho saneador proferido na 1.ª instância, tendo sido declarada a ineficácia em relação à autora das vendas de todas as fracções feitas pela C. aos demais réus, condenando-se estes a fazer a sua entrega à autora e ordenando o cancelamento dos registos – cfr. sentença cuja cópia consta a fls. 447 a 481 destes autos.
Desse saneador-sentença foi interposto recurso pela maioria dos réus compradores das fracções e por Acórdão da Relação de Coimbra, proferido em 28 de Abril de 1998, foi decidido – em relação às fracções que continuam a ser objecto da presente execução – que pelo facto de o registo da acção 1910/83 ter sido feito antes do registo da aquisição dessas fracções estavam esses réus abrangidos pelo caso julgado daquela primeira por força do preceituado pelo artigo 271.º, n.° 3, do Código de Processo Civil (CPC), pelo que julgou procedente a excepção do caso julgado e absolveu esses réus do pedido formulado na acção 91/87 – cfr. cópia das decisões insertas de fls. 447 a 481.
Esse Acórdão da Relação de Coimbra transitou em julgado nessa parte. Todavia, adianta-se que a autora interpôs recurso para o STJ em relação às fracções não abrangidas pelo caso julgado e o STJ, no seu Acórdão de 16 de Março de 1999 veio reiterar a aplicação do artigo 271.º, n.° 3, do CPC ao caso presente, afirmando mesmo que, não fora o facto de a aquisição de algumas fracções ter sido registada antes do registo da acção 1910/83, todas as fracções do prédio estariam abrangidas pelo caso julgado da acção 1910/83 – fls. 447 a
481 dos presentes autos.
Como entretanto os compradores das fracções F e AL, D. e mulher, haviam doado, em 16 de Março de 1990 à sua filha E. as referidas fracções, a autora intentou contra os pais e contra a filha uma nova acção que tomou o n.º
135/98, com o fim de impugnar tal doação e conseguir contra a última um título executivo.
Todavia, esta acção foi também julgada no saneador com base no caso julgado formado na acção 1910/83, que considerou extensível à donatária, por força do preceituado no artigo 271.º, n.º 3, do CPC, pelo que, julgando procedente essa excepção, absolveu da instância todos os réus, tendo a Relação de Coimbra confirmado tal decisão – cfr. fls. 963 a 975 da presente execução.
Voltando um pouco atrás, a presente execução foi instaurada em 14 de Fevereiro de 1992, tendo sido requerida apenas contra a C., a qual deduziu embargos de executado.
Esses embargos fundamentaram-se no facto de a sentença ser inexequível porque, ainda antes da instauração da execução, a embargante cedera validamente a terceiros as fracções autónomas do prédio edificado no terreno
(note-se que a acção 91/87 atrás referida visava apreciar exactamente a validade da venda das fracções).
Na sequência do douto despacho de fls. 303 a 318 proferido na presente execução, a C. e os compradores das fracções interpuseram recursos de agravo e estes últimos deduziram ainda embargos de terceiro.
A instância foi declarada suspensa na presente execução (artigo
1041.º, n.° 2, do CPC, vigente à data) a fim de se aguardar o resultado dos vários processos de embargos de terceiro. Por seu turno, a instância nos diversos embargos de terceiro e nos embargos de executado foi também suspensa a fim de se aguardar o desfecho da acção 91/87. Ou seja, houve uma suspensão de instâncias em cadeia que só veio a terminar quando a acção 91/87 foi julgada em definitivo.
Os embargos de terceiro referentes às fracções que continuam a ser objecto da presente execução foram todos julgados improcedentes por obediência ao caso julgado declarado na acção 91/87 – fls. 1177 e seguintes.
Contudo, os embargos de executado deduzidos pela C. foram julgados procedentes na 1.ª instância por se haver entendido que a coisa cuja entrega fora decidida na acção 1910/83 era uma, enquanto hoje (data dessa decisão), como já à data da instauração da execução, era outra, pois a coisa inicial havia sido «como que transformada» e «incorporada numa outra realidade distinta», através da constituição da propriedade horizontal, pelo que se concluiu pela
«inexistência ou inexequibilidade do título» ou por «facto extintivo ou modificativo da obrigação», fundamentos subsumíveis à previsão das alíneas a) e g) do artigo 813.º do CPC. Consequentemente, determinou a extinção da instância executiva para entrega de coisa certa.
Interposto recurso pela embargada, o acórdão da Relação de Coimbra proferido nesses embargos de executado (junto a fls. 1136 dos presentes autos), após haver esclarecido que a instância executiva cuja extinção fora ordenada era apenas a estabelecida nesses embargos de executado entre a exequente A. e a executada C., deu como prejudicado o conhecimento das conclusões de recurso da embargada (exequente), confirmando, todavia, a sentença da 1.ª instância.
Contudo, a exequente interpôs recurso para o STJ, que proferiu novo acórdão, confirmativo do aresto da Relação, depois de afirmar que o objecto da acção 1910/83 já não existe, pois agora existem diversos prédios – diga-se fracções autónomas – distintos do primitivo, pelo que o artigo 271.º, n.° 3, do CPC não é aplicável ao caso.
Ou seja, a decisão proferida nos embargos de executado, já perante a mesma realidade e os mesmos sujeitos processuais, é contrária àquelas que haviam sido proferidas nas acções 91/87 e 135/98, sendo que nestas se entendeu ser aplicável ao caso o artigo 271.º, n.º 3, do CPC com a consequente procedência da excepção do caso julgado, deixando, por isso, a ora exequente de poder discutir nessas acções (91/87 e 135/98) as questões jurídicas ali colocadas, uma vez que as partes estavam abrangidas pelo caso julgado formado na acção inicial (1910/83).
Assim, perante a procedência dessa excepção (no tocante a determinadas fracções), é óbvio que nos embargos de executado se não podia reabrir a discussão sobre o direito da reclamante a essas fracções em que o prédio havia sido transformado, nomeadamente sobre a identidade do objecto ou quaisquer outros meios de defesa que foram ou podiam ter sido deduzidos naquelas acções, sendo certo que inexistiam novos meios de defesa.
A dignidade e a credibilidade dos Tribunais foi posta em causa com a decisão proferida nos embargos de executado, pelo que, ao inverso do sufragado no douto acórdão recorrido, não pode ser acatada na presente execução em detrimento das anteriores decisões proferidas nas acções 91/87 e 135/98, impondo-se antes o caso julgado formado por estas (artigo 675.º, n.º 1, do CPC).
Nestes termos, reafirma-se, os mencionados preceitos legais atinentes ao caso julgado foram aplicados, embora com interpretação claramente violadora dos princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei. Assim, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso interposto.”
Notificados desta reclamação, os recorridos F. e outros, apresentaram a resposta de fls. 12 a 29, do seguinte teor:
“I – A recorrente, no seu requerimento, além do mais, proclama no mesmo o que pedimos licença para transcrever: «O que sucede é que neste último caso os preceitos legais atinentes ao caso julgado são interpretados por forma a permitir a reavaliação judicial da mesma questão, já antes decidida com trânsito em julgado. Ora, esta reanálise, é vedada pelos princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei.»
II – Este proclamação nada tem de verdadeira, pois a reclamante a partir de um eventual direito a uma parte de um terreno, que o seu marido adquiriu na constância do casamento, e que depois vendeu, pretende atingir um prédio edificado e constituído em propriedade horizontal. Esta venda do terreno foi, depois, declarada ineficaz, apenas em relação à reclamante, e, a partir desta ineficácia, veio arvorar-se no direito a um prédio, que como confessa
«mas a C. havia prosseguido a construção constituindo em propriedade horizontal por escritura pública de 11 de Abril de 1987, inscreveu o prédio na matriz e vendeu em seguida todas as fracções», ou seja, a partir daquela minúscula aquisição, pretende ter direito a um prédio, no qual nada gastou e nem sequer alega esse facto.
III – Esta realidade criada ex novo, mesmo em cima de um terreno que teria pertencido também à reclamante A., não pode fornecer os pressupostos que demonstra estar-se perante uma substituição processual, prevista no artigo 271.º do Código de Processo Civil (CPC), por a realidade transmitida pela escritura de
8 de Outubro de 1981 não ter qualquer semelhança com o que se pretender atingir nas escrituras sobre as transmissões das fracções de um condomínio.
IV – Pois esta substituição só se podia dar se a escritura que foi julgada ineficaz em relação à reclamante, que diz respeito à outorga em 8 de Outubro de 1981, tivesse transmitido tudo o que se pretende atingir com as novas acções e execuções, o que não corresponde à verdade, pelas razões referidas, sem esquecer que a própria ineficácia apenas foi declarada em relação à reclamante, e não ao seu ex-marido.
V – Logo, nunca estiveram criadas as condições ou pressupostos para se poder aplicar o artigo 271.º do CPC invocado na reclamação, uma vez que «nas transmissões posteriores das fracções, estava em causa um direito novo, ou seja originário, criado pela C. através da edificação do prédio, e pela constituição do mesmo em propriedade horizontal, como o ensina a Prof.ª Paula Costa Silva, quando sobre a substituição processual e os seus pressupostos, diz: “Por
último, e ainda dentro da determinação da amplitude que ao termo «transmissão» deve ser dada, perguntar-se-á se ocorrendo a aquisição originária do direito litigioso deve aplicar-se o regime constante do artigo 271.º. Verifica-se a aquisição originária de um direito sempre que este se constitua independentemente «da existência ou da extensão de um direito anterior». Ao constituir-se, o direito surge ex novo na ordem jurídica, sem se confundir ou identificar com qualquer outro direito anterior.” (A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, págs. 76/77).»
VI – Basta conhecer um pouco da história desta questão, e verificar o «triste enredo» em que a reclamante colocou os nossos Tribunais, da qual esperamos um dia publicar a mesma, e que aqui se resume:
VII – A assistente A. casou catolicamente, sem convenção antenupcial, no dia 8 de Abril de 1979 com o Dr. B., licenciado em Economia, com a profissão de construtor civil.
VIII – E nesta situação o casal, através do Dr. B., comprou por escritura de 23 de Dezembro de 1980, por um milhão e duzentos mil escudos, um terreno destinado à construção urbana, com a área de mil, quatrocentos e cinquenta metros, sito na ----------------, da freguesia da -------------- do Concelho de Coimbra, inscrito no matriz rústica sob o artigo ----- desta freguesia.
IX – E neste terreno e na qualidade de construtor, começou o Dr. B. a construir um grande prédio de 8 andares e 42 fracções, tendo começado a efectuar contratos-promessa de venda para com este capital poder fazer face à construção, uma vez que o casal, e muito especialmente a mulher, não tinha capital para tal empreendimento.
X – E por isso, também, se apresentou perante os bancos a pedir créditos, a fornecer por estes, que exigiam as assinaturas da ora reclamante, assim como a colaboração desta na execução de tamanho projecto, quando inesperadamente o casal entrou em ruptura, colocando-se em causa a conclusão de tal projecto pelo casal, face ao ambiente criado.
XI – Na verdade, no dia 31 de Janeiro de 1980, nasceu o único filho do casal, e no início de Setembro de 1981, o casal entrou em ruptura, pois o Dr. B. veio a encontrar um vizinho na casa do casal, situação inesperada que o abalou, face às expectativas criadas com este casamento.
XII – E, por esta razão, ficou este sem condições, até psicológicas, para prosseguir com o projecto e, por isso, era necessário encontrar uma entidade que tivesse credibilidade para avançar com a construção, face à necessidade dos créditos para o investimento, que não se compadeciam com aquela instabilidade.
XIII – Para tal, e face à ruptura, era necessário que a reclamante passasse uma procuração que permitisse transmitir o projecto para tal entidade, uma vez que o projecto já estava em execução, o que acabou por acontecer. No dia
25 de Setembro de 1981, aquela, no Cartório Notarial de Coimbra, passou uma procuração ao ainda seu marido, para este poder alienar os projectos onde este estava envolvido, assim como chegou mesmo a assinar um contrato-promessa de partilha de bens, onde no artigo 3.° se comprometia: «Terceiro: – o primeiro outorgante, no sentido de dar continuidade à sua vida profissional de construtor civil, necessita da parte da segunda outorgante de autorização e procuração com amplos poderes para livremente dispor de bens imóveis que são propriedade adquirida pelo casal.»
XIV– E de facto, o Dr. B., com a procuração demandou alcançar uma solução para ser lavado a cabo o referido projecto de construção, e por estas razões, ao que parece, fez interessar alguns amigos para que pegassem na obra.
XV – Estes amigos constituíram, por escritura pública de 8 de Outubro de 1981, uma sociedade, a que foi dado o nome de C., Lda., para a qual alienou o terreno, para esta prosseguir com os trabalhos de construção e alcançar a meta que se tinha proposto como construtor civil em nome individual.
XVI – Assim, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Coimbra, no dia 8 de Outubro de 1981, o Dr. B., por si e em nome da sua mulher, ora reclamante, através da referida procuração de 25 de Setembro de 1981, vendeu
à C., o referido terreno, pelo preço de um milhão e trezentos mil escudos, como consta da mesma: «... Que, por esta escritura, em seu nome e no de sua mulher, vende à sociedade que o segundo outorgante aqui representa, pelo preço de um milhão e trezentos mil escudos, que dela já recebeu, um terreno destinado a construção urbana, com a área de mil quatrocentos e cinquenta metros quadrados, sito na ---------------------, freguesia da ------------, desta cidade de Coimbra ...».
XVII – E a reclamante instaurou no dia 10 de Maio de 1983, a acção a que correspondeu o Proc. n.° 1910/83, pedindo na mesma a apreciação da validade da referida alienação e a reivindicação do prédio, a qual teve apenas como réus o naquela data ainda seu marido Dr. B. e contra a C., onde concluiu pelo pedido seguinte: «Nestes termos, deve a acção ser julgada procedente e provada e: a) Declarar-se a ineficácia em relação à autora do contrato de compra e venda celebrado entre o réu B. e a ré C., referenciado no número 41.º desta petição, em relação ao terreno descrito no número 3.º deste mesmo articulado, incluindo a construção nele implantada, com todas as consequências daí (ineficácia) advenientes, ordenando-se nomeadamente o cancelamento de todos os registos operados com base na escritura pública que titulou tal contrato e condenando-se a ré C. a fazer a entrega de tal terreno, com a construção, à autora: ou
(alternativamente) b) Serem os réus B. e C. solidariamente condenados a pagar à autora a indemnização de doze milhões de escudos (12 000 000$00), alicerçada na ilicitude, traduzida no abuso de poderes de representação, de que os réus sempre estiveram cientes, indemnização que corresponde à sua meação do prédio.»
Não se pede sequer que seja julgada inválida a procuração referida no item XIII.
XVIII – A acção correu os seus trâmites normais, sem nunca ter sido sequer registada, nomeadamente com despacho saneador, audiência de discussão e julgamento, e em consequência, por sentença de 31 de Outubro de 1985, foram absolvidos quer o Dr. B., quer a C., pela forma seguinte: «8 – Nestes termos e tendo em conta todo o exposto decide-se: a) Julgar improcedente os pedidos da acção principal e deles se absolverem os réus C. e B..»
XIX – A autora, ora reclamante, não se conformou com tal decisão e veio da mesma impetrar recurso para o superior Tribunal da Relação de Coimbra, e por acórdão de 23 de Março de 1987, foi revogada aquela decisão, pela forma que nos permitimos transcrever: «Por tudo o exposto, pois, e sem necessidade de mais longas considerações, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, revogando, com os fundamentos que referidos foram, a sentença recorrida, declaram a ineficácia em relação à autora do aludido contrato de compra e venda celebrado em 8 de Outubro de 1981 entre o ré B. e a ré C. do dito terreno sito na ----------------, inscrito na matriz rústica sob o n.º
---------- e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º
-------------, com a construção nele implantada. Mais acordam em condenar a ré C. a fazer a entrega de tal prédio (terreno e construção) à autora, e em ordenar o cancelamento de todos os registos feitos com base na escritura do aludido contrato de compra e venda.»
XX – E só depois desta decisão mandou a reclamante efectuar o registo da mesma, em 30 de Março de 1987, provisório por natureza e por dúvidas, tendo sido removidas, em parte, as dúvidas em 19 de Novembro de 1987, mas tal registo esteve válido apenas até 30 de Março de 1990, altura em que caducou por não ter sido renovado e, por isso, ao contrário do que se proclama, poder-se-á concluir que sempre se esteve perante uma acção não registada, como o determina o artigo 10.º do Código do Registo Predial.
XXI – E chegou a ser interposto recurso desta decisão pela C., mas, de facto, por acórdão de 16 de Novembro de 1988, foi o anterior confirmado, ou seja negado provimento, o que determinou a formação de caso julgado no Proc. n.°
1910/83, mas apenas pelo decidido naquele acórdão de 23 de Março de 1987, que se transcreveu no item XIX.
XXII – E não obstante esta realidade, já no dia 23 de Março de 1987, a reclamante tinha vindo instaurar uma nova acção, sem que tenha vindo desistir da mesma, face àquele trânsito, que depois veio a invocar. Que passou a proclamar. Mas de facto a nova acção foi instaurada contra todos os adquirentes das fracções, conforme se pode ver pelo cabeçalho da petição, onde se pede, além do mais, o que se transcreve: «Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente e provada e consequentemente decretada a nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal, bem como a nulidade de todas as escrituras de compra e venda das fracções desse prédio referidas nos artigos 15,
16 e 17 desta petição (entre a ré C. e os demais réus e transmissões subsequentes), ordenando-se o cancelamento de todos os registos feitos com base nessas escrituras e condenando-se os réus a fazer entrega imediata à autora das divisões do prédio a que tais escrituras se reportam...».
XXIII – Esta petição deu lugar ao Proc. n.° 91/87, que correu ternos no 4.° Juízo Cível do Tribunal de Coimbra e a generalidade dos réus contestou, houve réplica e tréplica, e na verdade o M.mo Juiz a quo, no saneador/sentença de 3 de Janeiro de 1994, julgou parcialmente procedente a acção, pela forma que nos permitimos transcrever: «Em face de tudo o exposto decide-se: a) Em julgar improcedente o pedido de declaração de ineficácia da escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio urbano, deduzido pela autora: b) Em julgar procedentes os restantes pedidos por esta formulados e consequentemente declara-se a ineficácia em relação à autora de todos os contratos de compra e venda celebrados entre a ré C. e os restantes réus e intervenientes e entre os réus indicados em 4 e 5 do relatório desta decisão, devidamente titulados pelas respectivas escrituras, e tendo por objecto as fracções do prédio urbano identificado no artigo 15 da petição inicial, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.° -----------, condenando-se todos os réus a fazer entrega à autora das fracções e ordenando o cancelamento de todos os registo feitos com base nos aludidos contratos...».
XXIV – A reclamante não recorreu desta decisão, no que toca à constituição da propriedade horizontal, mas a generalidade dos adquirentes interpuseram recurso, para o superior Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 28 de Abril de 1998, o qual foi confirmado pelo STJ (acórdão de 16 de Março de 1999), decidiu o que pedimos licença para transcrever: «Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar provimento aos agravos e julgar procedentes as apelações, com o que revogam o douto saneador sentença, na parte recorrida, e julgam a acção parcialmente improcedente, absolvendo do pedido os réus indicados supra no item 14. A) e B) relativamente à aquisição das fracções mencionadas.».
XXV – Ora como se pode ver pelo pedido, além do mais, pedia-se a entrega das fracções à autora A., do qual, como se pode ver, foram os adquirentes, que contestaram em tempo, absolvidos da obrigação de entregar as fracções, como o demonstra a decisão transcrita no item anterior.
XXVI – E face à decisão constante do acórdão de 16 de Março de
1999, a decisão do acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 1998, transcrita no item XXIV, transitou em julgado. E uma vez que a propriedade horizontal foi preservada por aquela decisão da 1.ª Instância de 3 de Janeiro de
1994 (item XXIII) e, por isso, tornou-se intocável, face ao caso julgado, ou seja, ficou definitivamente consolidada uma nova realidade que pouco ou nada tem a ver com o que foi decretado e julgado no Proc. n.º 1910/83, ficando, por isso, consagrada esta nova realidade, que não pode ser atingida pelo decidido no Acórdão de 23 de Março de 1987.
XXVII – Os adquirentes/recorrentes, referidos nos itens 14-A e B daquela decisão (item XXIV), ficaram convencidos que o seu problema estava resolvido, face ao conteúdo daquele acórdão de 28 de Abril de 1998, que os absolvia a todos do pedido de entrega das fracções, e ao seu trânsito em julgado, mas face à ordem jurídica que nos rege estavam redondamente enganados.
XXVIII – De facto, a reclamante, que vinha defendendo a existência de caso julgado no Proc. n.° 1910/83, pelo referido acórdão de 23 de Março de
1987, e proclamando que este produzia efeitos em relação a todos os adquirentes das fracções do prédio em questão, sem sequer ter desistido em tempo do Proc. n.° 91/87, continuou a instaurar novas acções, embora sem nunca ter colocado aos tribunais a questão da propriedade.
XXIX – Na verdade, não obstante as acções posteriores, a reclamante veio, por petição de 14 de Fevereiro de 1992 instaurar acção executiva, contra a C., com o fundamento constante dos seus artigos 1.º e 2.°, onde, além do mais, alegou: «1.° – Por douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, confirmada no Supremo Tribunal de Justiça através de acórdão transitado em julgado no dia 2 de Dezembro de 1988, proferido na acção ordinária n.° 1910/83 que correu termos no 3.° Juízo, 1.ª Secção, Comarca de Coimbra, a executada foi condenada a entregar à exequente o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º -----------, correspondente a terreno com a área de 1450 m2, sito na --------------, freguesia da -------------, confrontando do sul com a Rua ------------------------, poente com -------------------------, norte com
---------- e nascente com ---------------------, com a construção nele implantada. 2.° – Contudo, a executada não entregou até agora o prédio em questão (terreno e construção), sucedendo até que na pendência da acção 1910/83, a executada constituiu em propriedade horizontal a construção existente no terreno, tendo vendido de seguida a terceiros parte das fracções, tudo com nítido propósito de dificultar a presente execução».
XXX – Para depois, na mesma petição, concluir da forma seguinte:
«Nestes termos, requer a citação da executada para no prazo de 10 dias fazer a entrega do prédio ou deduzir oposição sob pena de a entrega se fazer judicialmente, mantendo-se o beneficio do apoio judiciário concedido à exequente».
XXXI – E como tivesse sido alertada pela executada de que o prédio tinha sido por si construído, constituído em propriedade horizontal, registada a mesma, e vendidas todas as fracções, veio, de imediato, requerer o que se transcreve: «Na sequência da impossibilidade de entrega de coisa face à declaração da sua venda em propriedade horizontal, vem requerer a notificação da executada C. para juntar aos autos certidões das escrituras que titulam a venda de todas as fracções.»
XXXII – Perante este pedido, esquecendo que no dia 23 de Março de
1987 tinha instaurado uma acção contra todos os adquirentes das fracções, logo por requerimento de 1 de Junho de 1993, sem que sequer tenha nesta acção executiva habilitado (petição executiva) qualquer dos adquirentes, face até aos registos, veio, além do mais, no requerimento proclamar: «Os autos aguardam a junção das respectivas escrituras de venda pela executada. Só que as vendas não impedem a execução da sentença, conforme se passará a expor.»
XXXIII – Para depois de algumas considerações, voltar, no requerimento, a acrescentar: «Mais concretamente, a questão situa-se no campo da repercussão pela via substantiva da eficácia do caso julgado material constituído pela sentença exequenda em relação aos adquirentes» (embora esteja a executar o acórdão de 23 de Março de 1987).
XXXIV – E depois, no mesmo requerimento, conclui pela forma que se transcreve: «Em conclusão, a eficácia do caso julgado da sentença exequenda repercute-se sobre todos os subadquirentes, não estando estes protegidos pelo artigo 291.º do Código Civil, nem pelo registo anterior da aquisição em relação ao registo da presente acção, estando obrigados à entrega face à ineficácia da venda inicial».
XXXV – Para, no fim do mesmo, pedir o que se transcreve: «Nestes termos, requere-se que a execução prossiga, com a entrega à exequente das diversas fracções pelos seus subadquirentes».
XXXVI – Perante o assim requerido, o M.mo Juiz a quo estranhamente, por despacho de 18 de Dezembro de 1993, determinou, depois de enormes considerações, o que pedimos licença para transcrever: «Assim sendo, proceda-se
à entrega, investindo a exequente na posse do prédio. Notifique, incluindo a executada e os detentores (artigo 930.º, n.º 3, do C.P.C.)».
XXXVII – Foi só a partir desta data e desta decisão que a generalidade dos adquirentes das fracções, iniciaram a sua «luta» na execução relativa ao Proc. n.° 1910/83, pelo advogado que escolheram, que veio, quer recorrer do despacho (tendo sido recebido o recurso a subir imediatamente e nos próprios autos, sem que até hoje tenha sido julgado) quer instaurar embargos de terceiro, de que se fala, face à violação dos direitos de aquisição à C. das suas fracções e, de facto, apenas num se julgou procedente o pedido, não tendo nos outros sido analisada a questão de fundo, mas a reclamante ignora aquela.
XXXVIII – Ora no Proc. n.° 1910/83, através do qual a reclamante veio proclamar a existência de caso julgado, e, por isso, a questão resolvida, não foi discutida a propriedade horizontal constituída por escritura pública de
11 de Abril de 1983, nem se ordenou a entrega de qualquer das 42 fracções.
XXXIX – E, como se demonstrou, a reclamante chegou a «atacar» a constituição do prédio em propriedade horizontal, e esta foi analisada e julgado, como se já demonstrou, no Proc. n.° 91/87, pela sentença de 3 de Janeiro de 1994, como se pode ver pelo transcrito no item XXIII, improcedente o pedido de declaração de ineficácia da escritura da constituição da propriedade horizontal, tendo esta decisão transitado, por falta de recurso.
XL – Portanto, as fracções, através da edificação do prédio foram, por isso, adquiridas originariamente pela C., por se tratar de um direito novo consubstanciado, além do mais, pela escritura da constituição da propriedade horizontal e jamais derivado do direito constante da escritura de 8 de Outubro de 1981.
XLI – Logo, como podia ou pode a reclamante insistir na execução em relação às fracções, com base no referido acórdão de 23 de Março de 1987, no Proc. n.° 1910/83, quando este jamais condenou na entrega de qualquer fracção, e o que se julgou neste foi apenas a questão da escritura (8 de Outubro de 1981) que transmitiu o terreno e, eventualmente, o que estivesse construído à data da mesma.
XLII – De facto, passou a existir uma nova realidade, ou seja, o direito que se pretende executar não deriva apenas do direito daquela, mas de uma edificação originária efectuada pela C., pelo que não se pode admitir que nas novas decisões se reanalise o que foi julgado no Proc. n.° 1910/83.
XLIII – E não restam dúvidas que consagrado o caso julgado neste processo, aliás defendido pela própria reclamante, tudo o que se fizesse posteriormente tinha de ser ilegal, face, além do mais, o que determina o artigo 675.° e n.° 4 do artigo 684.°, ambos do Código de Processo Civil, e os artigos 2.°, alínea b) do artigo 9.°, n.° 1 do artigo 13.°, 110.° e 205.° da Constituição da República, como já acontecia pela Constituição da República de
1933, ou seja, o caso julgado é sagrado e não pode ser sequer alterado por acordo, como se poderem efectuar tantas ilegalidades?
XLIV – Pois o caso julgado é tão sagrado que nem sequer pode ser corrigido, ou existir transacção sobre o mesmo, como aliás, há muitos, muitos anos, já o ensinava o Prof. Castro Mendes, quando proclamou o que pedimos licença para transcrever: «VII. Falamos, note-se, no impedimento à génese do caso julgado e não na destruição do caso julgado, uma vez gerado. Sob esta rubrica, a incluirmo-la no nosso tema, haveria a estudar a anulação do caso julgado mediante recurso extraordinário e mediante ainda, segundo cremos, acção destinada a anular o acto que lhe serviu de causa, remota ou próxima (transacção
– artigo 301.º, n.º 2; sentença); a ofensa do caso julgado por lei posterior, e o seu regime constitucional (derivado do § único do artigo 123.º da Constituição) e ordinário (artigo 13.º, n.° 1, do Código Civil, designadamente); e a irrelevância da vontade das partes. Com efeito, as partes não podem por convénio posterior à decisão considerar-se não vinculadas por ela
– estamos longe do tempo em que, através da teoria do contrato ou quase-contrato judicial, se ligava a eficácia da sentença à prévia aceitação pelas partes. A sentença é um acto de soberania (artigo 71.º da Constituição Política da República Portuguesa), cujos efeitos se impõem aos litigantes, não ficam na sua disposição. As partes não podem sequer, em nossa opinião, considerar a situação de incerteza resolvida pela sentença transitada como res dubia, como “litígio”
(artigo 1248.º do Código Civil), para efeitos de a tomarem posteriormente como objecto de um contrato de transacção, ou de sujeitarem o mesmo pleito a compromisso arbitral. A indiscutibilidade de uma res judicata é qualidade jurídica indisponível, designadamente para os efeitos dos artigos. 299.º, n.° 1, e 1510.º» (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, págs. 33/34).
XLIV – E não obstante esta realidade, a reclamante pretende executar uma sentença posterior, ou seja aquela de 3 de Janeiro de 1994, no Proc. n.°
91/87, que se tem de admitir procedente em relação aos adquirentes que não contestaram, nem recorreram, ou o fizeram fora de prazo, mas violadora da Constituição.
XLV– Assim, para a reclamante, não obstante aquele caso julgado inicial, que proclama, estranhamente, é possível pegar numa ponta deste e noutra daquele, ou seja «cavar na vinha e no bacelo ao mesmo tempo», para levar a sua avante, executando a seu próprio talante, o que lhe apeteceu no Proc. n.º
1910/83, e o mesmo em relação ao Proc. n.° 91/83, o que não deixa de ser
«vergonhoso».
XLVI – Aliás, esquecendo mesmo o que determinam aquelas normas, e ainda o que determina a alínea f) do artigo 814.° do Código de Processo Civil:
«Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes: a) (...); b) (...); c) (...); d) (...); e) (...); f) Caso julgado anterior à sentença que se executa; (...)».
XLVII – Aliás, a reclamante não tem, nem nunca teve qualquer título que lhe atribuísse a propriedade do edifício em causa, nem este chegou alguma vez a estar registado a seu favor, e muito menos de qualquer fracção, pois em todas as acções que instaurou jamais pediu ao tribunal que a declarasse, a ela ou ao casal, donos de tal prédio, e muito menos de qualquer fracção, por jamais ter tido legitimidade legal e muito menos moral para o fazer.
XLVIII – E o Prof. Castro Mendes, quando tratou sobre os fundamentos ou motivações e a decisão no julgamento em relação às acções de reivindicação, ensinou o que pedimos licença para transcrever: «Tomemos por exemplo a acção de reivindicação, reivindicatio, acção pela qual a propriedade vence a posse. A pede como proprietário a condenação de R a entregar x que está na posse deste. Vence, transitando em julgado a decisão. Qual é o conteúdo desta? Só que R deve entregar x a A? Mas então, em momento imediatamente posterior e fundando-se em propriedade que ele, R, invoque (a questão da propriedade, em si, foi resolvida como fundamento e por isso no rigor da teoria restritiva não o foi em termos de caso julgado), pode R pedir que seja A a restituir-lhe x, e – pressupondo que os tribunais vão resolvendo pendularmente a questão, discutível sempre, da propriedade – assim sucessivamente de A para R e de R para A, até que uma das partes peça que a quaestio praejudicialis da propriedade seja resolvida em termos de caso julgado.» (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 106)
XLIX – E depois, quando apresentou a solução que defendia em direito positivo, referiu o exemplo seguinte: «Só quando à faculdade concedida a ambas as partes pela parte final do artigo 96.º, n.º 2, se compreende a exclusão das questões não incidentais suscitadas pelo autor. E isso em virtude da seguinte verificação: o exercício dessa faculdade alarga o thema decidendum. Por conseguinte, parece curial que o autor, que teve ampla liberdade de estabelecer na demanda a fronteira entre questões prejudiciais, fundamentais e tema a decidir, não possa no decorrer do processo arbitrariamente alargar o objecto do mesmo. O autor podia ter pedido declarem-me proprietário e condenem na indemnização de danos causados à minha propriedade, indicando assim lealmente a tribunal e réu dois temas de discussão de igual realce. Se pediu só a condenação, sibi imputet; não é justo que, fora dos casos dos artigos 272.º e
273.º, faça o tribunal elevar a declaração da propriedade (questão fundamental, questão parcial dentro da matéria da causa de pedir) a thema decidendum»
(ibidem, pág. 214).
L – Portanto, podemos, sem qualquer relutância, ainda hoje afirmar que a questão da propriedade em relação à reclamante está por decidir, assim como em relação ao casal dissolvido, que não tem, nem nunca teve, qualquer título pelo qual possa levar ao registo, com verdade, o direito de propriedade, e por isso, jamais a mesma tem caso julgado, que lhe possa oferecer respaldo à proclamação constante da reclamação.
LI – Logo a reclamante não tem qualquer razão legal e muito menos moral na sua peça processual que é a reclamação, por nada se ter reanalisado, que coloque em causa o antes julgado, por serem questões totalmente diferentes.
Face ao exposto e por tudo o mais que V. Ex.as doutamente suprirão, deve ser confirmada a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu o recurso.”
No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente. Na verdade, e ao contrário do que parece supor a reclamante, não compete obviamente a este Tribunal apreciar se entre duas ou mais causas se verificam os pressupostos de identidade, objectiva e subjectiva, de que a lei adjectiva faz depender a excepção dilatória do caso julgado – sendo evidente que, afastada tal identidade, está naturalmente prejudicada a aplicação das normas que instituem a dita excepção.
É precisamente este fenómeno que – obviamente – se verifica no caso dos autos: o acórdão recorrido, proferido pelo STJ, considerou que entre as causas, primitivamente julgadas, e os presentes autos não ocorrem relações de identidade, mas de eventual dependência e prejudicialidade, considerando, por tal razão, afastada a verificação da invocada excepção de caso julgado, e não aplicando, por isso, como ratio decidendi, as normas questionadas pela recorrente.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Constitui requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), que a decisão judicial impugnada haja feito aplicação, como ratio decidendi, da norma ou interpretação normativa arguidas de inconstitucionais.
O despacho ora reclamado não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional justamente por entender não ter sido feito aplicação, no acórdão recorrido, das normas que a reclamante reputa de inconstitucionais.
Interessa, assim, apurar o que nesse acórdão se decidiu e com que fundamentos.
No presente processo de execução de sentença para entrega de coisa certa, foi proferido despacho que deferiu pedido da exequente A. para que fosse investida na posse de determinadas fracções de prédio urbano, que a executada C. fora vendendo no decurso de acção declarativa que a exequente movera contra o seu ex-marido e contra a aludida executada, visando a declaração de ineficácia em relação a si da venda do terreno respectivo pelo seu ex-marido à C., e a entrega ao património do dissolvido casal desse terreno e da construção entretanto nele implantada.
Desse despacho agravaram para o Tribunal da Relação de Coimbra diversos adquirentes de tais fracções.
Nesse Tribunal, o respectivo Desembargador Relator proferiu o despacho de 16 de Dezembro de 2002 (fls. 1145 a 1175), que: (i) alterou o regime de subida do recurso, de imediata para diferida; (ii) determinou “a baixa dos autos à 1.ª instância, para ali se analisar e decidir, desde logo, a situação decorrente da confirmação da procedência, ditada, em sede de recurso de apelação nesta 2.ª instância, dos embargos deduzidos pela executada C.”.
Este despacho foi objecto de reclamação para a conferência, por parte dos agravantes, quanto à sua primeira parte, e por parte da exequente, quanto à sua segunda parte, mas, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de Junho de 2003 (fls. 1269 a 1278), foram indeferidas ambas as reclamações.
A exequente interpôs recurso deste acórdão, na parte em que indeferiu a respectiva reclamação contra o precedente despacho do Desembargador Relator, para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, como fundamento da sua admissibilidade, a ofensa de caso julgado (artigos 678.º, n.º
2, e 754.º, n.º 3, do CPC), por, em seu entender, “não acatar o caso julgado formado nas acções 1910/83, 91/87 e 135/98” (cfr. requerimento de fls. 1287).
Na respectiva alegação (fls. 1293 a 1309), a recorrente formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
“13.ª – Ao determinar que o prosseguimento e a sorte da presente execução estão absolutamente dependentes da decisão final dos embargos de executado, o douto Acórdão recorrido consagra a tese de que não obstante numa segunda acção, interposta contra um segundo transmitente e os seus respectivos transmissários, haver sido julgada procedente a excepção do caso julgado formado numa primeira e anterior acção interposta contra o dono inicial da coisa (primeiro transmitente) e contra aquele segundo transmitente, ex vi artigo
271.º, n.º 3, do CPC, este segundo transmitente (e os respectivos transmissários) pode, em embargos de executado deduzidos contra a execução que lhe foi movida pelo autor daquelas acções, deduzir e discutir os meios de defesa que já apresentara, ou outros que podia ter apresentado, naquelas acções.
14.º – Consequentemente, as normas constantes dos artigos 271.º, n.º
3, 497.º, n.ºs 1 e 2, 498.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 673.º e 813.º, alíneas a) e g), do CPC, na interpretação que lhes é dada pelo douto Acórdão recorrido, violam ao princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei, ínsitos nos artigos
2.º, 9.º, alínea b), e 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que garantem aos cidadãos a permanência e a inalterabilidade do caso julgado».
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Abril de 2004 (fls. 1574 a 1591), não deu, porém, por verificada, no caso, a existência dos requisitos do caso julgado, pelo que entendeu que “se mostra prejudicada a aplicação aos autos do preceituado no artigo 271.º, n.º 3, do CPC”, conclusão que alicerçou na constatação de que, relativamente às decisões proferidas nas acções n.ºs 1910/83, 91/87 e 135/98, não se verificavam “relações de identidade, mas de eventual dependência e prejudicialidade”, atenta a diversidade de partes, de pedidos e de causas de pedir.
Tanto basta para se concluir pela não aplicação, como causa de decisão do acórdão recorrido, da interpretação normativa arguida de inconstitucional pela reclamante, o que conduz à inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto, merecendo, assim, confirmação o despacho reclamado.
São aqui inteiramente aplicáveis as seguintes considerações tecidas na Decisão Sumária n.º 260/2003, que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional pela mesma recorrente, então contra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Janeiro de 2003, que confirmou a decisão de julgar procedentes os embargos deduzidos pela executada C.:
“9. Independentemente do exposto, subsiste ainda um outro motivo que impede o Tribunal Constitucional de tomar conhecimento do recurso, porquanto, mesmo que, cum grano salis, se considerasse o problema cuja inconstitucionalidade foi equacionada na arguição de nulidade da decisão recorrida [«ao violar o caso julgado, o acórdão notificado fez uma interpretação das normas atinentes ao caso julgado (artigos 271.º, n.º 3, 497.º, 498.º, 671.º, n.º 1, e 813.º, alíneas a) e g), do CPC) violadora dos direitos e princípios legal e constitucionalmente garantidos, v. g. da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei, ínsitos nos artigos 2.º, 9.º, alínea b), e 13.º, n.º 1, da CRP, que garantem aos cidadãos a permanência e a inalterabilidade do caso julgado»], como dando corpo uma questão de constitucionalidade normativa – que não pretende questionar a própria decisão judicial em si, convocando a (inconcebível) intervenção deste Tribunal como instância de amparo, sancionando a justeza da decisão recorrida no que se refere à correcção do juízo «aplicativo» aí realizado –, é manifesto que tal interpretação não foi a realizada pela decisão recorrida que considerou, precisamente, que a matéria em discussão não integrava a excepção do caso julgado («é outrossim notória a não ocorrência dos pressupostos ou requisitos, atinentes ao instituto do “caso julgado”», como se afirmou no Acórdão do STJ), e, como se sabe, quando se questiona a norma legal apenas tendo em conta um seu segmento ou uma sua determinada dimensão normativa, é necessário que a norma que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido, efectivamente, aplicada in casu com a interpretação que se entende inconstitucional (e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., entre a abundante jurisprudência existente sobre tal matéria, os Acórdãos n.os 139/95, 197/97 e
214/03, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt –, sob pena de faltar um dos requisitos do recurso de constitucionalidade, já que, como se disse no Acórdão n.º 197/97, «a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida».”
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos