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Processo n.º 88/08
 
 2ª Secção
 Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
 
 
 Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
             I – Relatório
 
  
 
 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, em 
 que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto recurso 
 obrigatório de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea 
 a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão 
 daquele Tribunal, de 29.05.2007, na parte em que recusou a aplicação da norma do 
 artigo 8.º, n.º 6, do “Regulamento de exercício de clínica médico-veterinária 
 dos animais de companhia em centros de atendimento médico-veterinários” 
 
 (publicado na Revista da Ordem dos Médicos Veterinários, n.º 24, Jan/Fev/Mar 
 
 2000), por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República 
 Portuguesa. 
 
  
 
 2. Dos autos emergem as seguintes ocorrências, relevantes para a presente 
 decisão:
 
 − A., médica veterinária, foi arguida no âmbito de processo disciplinar 
 instaurado pelo Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos 
 Veterinários, tendo-lhe sido aplicada pena de multa e de suspensão pelo período 
 de um mês. 
 
 − Terminado o período de suspensão, retomou a direcção clínica que anteriormente 
 exercia em dois estabelecimentos médico-veterinários.
 
 − Por ofício de 30.07.2003, do Bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, foi 
 informada que “em função da punição com pena de suspensão de um mês”, ficava 
 inibida de continuar a exercer essas funções. Posteriormente, foi-lhe 
 comunicado, por ofício de 09.10.2003, e em resposta a um pedido de 
 esclarecimento, que a duração da penalização estava dependente da evolução do 
 seu comportamento, tendo em conta a não reincidência em infracção e a relevância 
 do seu bom comportamento pelo período de cinco anos.
 
 − Na sequência, A. intentou uma acção administrativa especial contra a Ordem dos 
 Médicos Veterinários, na qual pediu a declaração de nulidade dos actos do 
 Conselho Directivo daquela Ordem, contidos nos citados ofícios de 30.07.2003 e 
 
 09.10.2003.
 
 − Pelo citado acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, foi a acção 
 julgada procedente e, em consequência, declarada a nulidade dos actos contidos 
 nos ofícios, datados de 2003-07-30 e 2003-10-09 e outros actos praticados no 
 procedimento com fundamento no artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento de exercício de 
 clínica médico-veterinária dos animais de companhia em centros de atendimento 
 médico-veterinários, cuja aplicação foi recusada, por inconstitucional, por 
 violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
 
  
 
 3. Neste acórdão, de que vem interposto o presente recurso, pode ler-se o 
 seguinte, na parte que agora releva:
 
 «(…) Ora, resulta do probatório que a inibição do exercício das funções de 
 directora clínica acontece por efeito do artigo 8.° n.° 6 do Regulamento, 
 situação reconhecida pelo Conselho Directivo da Ordem dos Médicos Veterinários 
 na correspondência dirigida à A., como uma penalização sem termo certo, sujeita 
 a posterior avaliação. 
 O artigo 30.° n.° 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP) preceitua que: 
 
 
 
 “4 − Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos 
 civis profissionais ou políticos”. 
 A este propósito tem vindo a pronunciar-se o Tribunal Constitucional no sentido 
 da inconstitucionalidade material de normas que têm como consequência, 
 automática, sem qualquer mediação ponderadora numa condenação judicial ou numa 
 decisão administrativa concreta, a impossibilidade temporária do exercício de um 
 direito profissional (o direito de escolha de profissão e consequente 
 exercício), ficando essas pessoas, ope legis, impedidas de exercer na plenitude 
 os direitos decorrentes da sua profissão. 
 A titulo meramente exemplificativo, refira-se o Acórdão do Tribunal 
 Constitucional n.° 282/1986, publicado na I Série do D.R. de 1986-11-11, citado 
 pela A., e o Acórdão n.° 154/2004 do Tribunal Constitucional de 2004-03-16 que 
 declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma 
 constante do n.° 2 do artigo 4.° do Decreto-Lei n.° 263/98, de 19 de Agosto, por 
 violação do n.° 4 do artigo 30.° da Constituição, e no qual se concluiu: 
 
 “11. Conclui-se, assim, que a norma constante do artigo 4.°, n.° 2, do 
 Decreto-Lei n.° 263/98, ao determinar que se considerem ´não idóneas, durante um 
 período de três anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tenham sido 
 condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a 3 anos, salvo 
 reabilitação´, tem como consequência, automaticamente, sem qualquer mediação 
 ponderadora numa condenação judicial ou numa decisão administrativa concreta, a 
 impossibilidade temporária do exercício de um direito profissional (o direito de 
 escolha de profissão e consequente exercício), ficando essas pessoas, ope legis, 
 impedidas de exercer a profissão de motorista de táxi. Pelo que deve 
 considerar-se essa norma materialmente inconstitucional por violação do n.° 4 do 
 artigo 30.° da Constituição.” in www.tribunalconstitucional.pt.)” 
 Na verdade, também no caso sub judice, por via da punição em processo 
 disciplinar com pena de suspensão, sem qualquer apreciação, em concreto, do 
 comportamento da A. enquanto Directora Clínica, ficou esta impedida ope legis de 
 exercer tais funções, sem qualquer fundamentação a não ser a da aplicação da 
 norma do artigo 8.° n.° 6 do Regulamento. 
 Deste modo, embora a A. continue a poder exercer Medicina Veterinária, não pode 
 deixar de concluir-se que a norma em apreciação, ao impedir que quem tenha sido 
 condenado em pena de suspensão, possa exercer as funções de Direcção Clínica, 
 tem por efeito a perda das liberdades de escolher e de exercer a profissão de 
 Médico Veterinário, em todas as suas valências, ou seja, constitui uma restrição 
 
 à sua esfera jurídica de direitos profissionais não tolerada pelo artigo 30.° 
 n.º 4 da CRP. 
 Situação esta agravada pelo facto de nem sequer se encontrar estabelecido o 
 período de tempo que delimita tal inibição. 
 Com efeito, a perda (ou redução) de direitos civis, profissionais e políticos 
 traduz-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode deixar de estar 
 sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de direito democrático, 
 designadamente, aos princípio da culpa, princípio da necessidade e 
 proporcionalidade, princípios estes que impõem uma ponderação, em concreto, da 
 adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando a possibilidade de penas 
 automáticas por via da aplicação, sem mais, de uma norma jurídica. 
 Eis pois, porque também assiste razão à A., quando invoca a violação do artigo 
 
 32.° n.° 10 da CRP que garante o direito de audição e defesa em qualquer 
 processo sancionatório, do artigo 18.° n.° 2 da CRP relativo às restrições de 
 direitos em harmonia com o princípio da proporcionalidade e da necessidade, do 
 artigo 29.° n.°s 3 e 5 da CRP, no que respeita à necessidade de a punição se 
 encontrar prevista em lei anterior e de ninguém poder ser punido duas vezes 
 pelos mesmos factos, o que aconteceu à A., (primeiro, com a pena disciplinar e, 
 em simultâneo, e depois, com a restrição automática do exercício de funções como 
 Directora Clínica por via do artigo 8.° n.° 6 do Regulamento), sem qualquer 
 apreciação em concreto, e sem a adequada fundamentação de facto e de direito. 
 Face ao exposto o artigo 8.° n.° 6 do Regulamento de exercício de clínica 
 médico-veterinária dos animais de companhia em centros de atendimento 
 médico-veterinários deve considerar-se norma materialmente inconstitucional por 
 violação do n.° 4 do artigo 30.° da CRP e, em consequência, ser determinada a 
 sua desaplicação, no caso concreto. 
 Em consequência, não pode a A. ser afastada do exercício da função de Directora 
 Clínica pela aplicação do artigo 8.° n.° 6 do Regulamento de exercício de 
 clínica médico-veterinária dos animais de companhia em centros de atendimento 
 médico-veterinários, declarando-se a nulidade dos actos contidos nos ofícios que 
 nele se fundamentam, datados de 2003-07-30 e de 2003-10-09 e outros actos 
 praticados no procedimento com fundamentação nessa norma»
 
  
 
 4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional 
 concluiu da seguinte forma as respectivas alegações:
 
 «1. É exigência constitucional, por força do artigo 30.°, n.° 4, da Lei 
 Fundamental, que da aplicação de uma pena — independentemente da sua natureza — 
 não pode resultar como sua consequência automática e imediata, a perda de 
 direitos, à revelia da culpa do agente infractor e das necessidades de 
 prevenção. 
 
 2. É por isso, inconstitucional a norma do artigo 8.°, n.° 6, do Regulamento de 
 exercício de clínica Médica Veterinária dos animais de companhia em centros de 
 atendimento médico veterinário, ao estabelecer como consequência directa e 
 imediata de condenação em pena de suspensão, a retirada de acreditação para o 
 exercício de director clínico. 
 
 3. Termos em que, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade alcançado 
 pela decisão recorrida.»
 
  
 A recorrida não apresentou contra-alegações.
 
  
 Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II − Fundamentação
 
  
 
 5. O artigo 8.° do “Regulamento de exercício de clínica médico-veterinária dos 
 animais de companhia em centros de atendimento médico-veterinários” reza assim:
 
 «Artigo 8.°
 Director Clínico do Centro
 
 1 − O Director deverá possuir marcada capacidade de organização e uma excelente 
 preparação científica, experiência em clínica de animais de companhia e 
 frequência regular comprovada de acções de formação profissional especializada.
 
 2 − O Director deverá ser um Médico Veterinário, acreditado pela Ordem, mediante 
 apreciação do seu Curriculum, e será responsável pela organização da actividade 
 clínica nos Centros e Locais de Alojamento.
 
 3 − O Director zela para que a assistência clínica nos Centros respeite os 
 Estatutos, o Código Deontológico Médico Veterinário e demais Regulamentos da 
 Ordem, sendo igualmente sob sua orientação que serão ministrados os cuidados de 
 maneio aos animais detidos nos Locais de Alojamento, sendo igualmente o 
 responsável sanitário por esta instalação.
 
 4 − Não poderá ser Director de mais de dois Centros ou Locais de Alojamento.
 
 5 − Deverá facultar o acesso às instalações de que é responsável, para efeitos 
 da sua avaliação pelos elementos designados pela Ordem.
 
 6 − Será retirada a acreditação a todo o Médico Veterinário que seja 
 disciplinarmente punido com pena de suspensão. 
 
 7 − O Bastonário, sob proposta do Profissional e Deontológico, poderá ainda 
 proceder ao cancelamento da inscrição e acreditação do Director que seja punido 
 disciplinarmente com qualquer sanção disciplinar.»
 No presente recurso, está em causa o n.º 6 deste artigo 8.º: a recorrente ficou 
 inibida do exercício das funções de directora clínica por, dependendo tal 
 exercício de acreditação pela Ordem (n.º 2), esta lhe ter sido retirada, em 
 aplicação daquela norma.
 A decisão recorrida considerou o n.º 6 do artigo 8.º materialmente 
 inconstitucional, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP.
 Prescreve-se nesta norma: «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda 
 de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».
 A primeira questão que o confronto da citada disposição do Regulamento em 
 análise com o parâmetro constitucional invocado pode suscitar é a da 
 aplicabilidade deste, no âmbito em causa. De facto, estão em apreciação efeitos 
 de um ilícito disciplinar, quando é certo que todo o artigo 30.º da CRP, 
 incluindo o seu n.º 4, tem por objecto os limites das penas criminais e das 
 medidas de segurança. Há que determinar, pois, se a garantia expressa neste 
 preceito constitucional, quanto aos efeitos do ilícito penal, é ou não 
 transponível para outros universos sancionatórios, mormente o 
 contra-ordenacional e o disciplinar.
 A jurisprudência deste Tribunal tem-se pronunciado em sentido afirmativo. Assim 
 decidiram os Acórdãos n.º 282/86, n.º 522/95 e n.º 562/2003 (disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt). Neste último aresto, após se considerar que «a 
 autonomia do ilícito disciplinar não é suficiente para fundamentar o 
 afastamento, em relação a ele, do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da 
 Constituição», concluiu-se que «o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da 
 Constituição proíbe igualmente a atribuição às sanções disciplinares de efeitos 
 automáticos que consistam na perda de direitos civis, profissionais ou 
 políticos».
 Na doutrina, também se vê sufragada esta orientação. É assim que em GOMES 
 CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, I, 
 Coimbra, 2007, 506, se pode ler, em referência específica ao n.º 4, que «não se 
 vê razão para [o] restringir ao domínio criminal, justificando-se a sua 
 aplicação aos demais domínios sancionatórios, aliás por maioria de razão».
 Assente a aplicabilidade do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, não sofre 
 dúvidas de que o disposto no artigo 8.º, n.º 6, do “Regulamento de exercício de 
 clínica médico-veterinária dos animais de companhia” recai no seu âmbito de 
 previsão, mais concretamente, no segmento atinente aos “direitos profissionais”. 
 
 
 Estamos, na verdade, perante um verdadeiro efeito necessário da condenação, em 
 sentido próprio, uma vez que ele não é prescrito pela decisão (nem dela consta), 
 resultando antes, directamente, de uma norma regulamentar. Esta toma a decisão 
 condenatória como um facto, associando-lhe imperativamente uma sanção 
 suplementar, a que ficam sujeitos todos os disciplinarmente punidos com pena de 
 suspensão. A retirada da acreditação é um efeito inelutável e automático da 
 condenação, imposto, de plano, por regulamento, à margem de qualquer intervenção 
 do decisor constitutivamente fundante dessa consequência.
 E certo também é que esse efeito importa a perda de direitos profissionais. Na 
 verdade, nos termos dessa norma, a punição disciplinar na pena de suspensão 
 acarreta a retirada da acreditação necessária para o exercício das funções de 
 director clínico. A consequente inibição do exercício desta forma de desempenho 
 profissional representa uma afectação de uma dada dimensão da liberdade de 
 escolha e de exercício de profissão, consagrada, como direito fundamental, no 
 artigo 47.º, n.º 1, da CRP. Uma vez proferida a condenação, o médico veterinário 
 punido perde, por força do n.º 6 do artigo 8.º do predito Regulamento, o título 
 legitimante das funções de director clínico, ficando privado da continuidade do 
 seu exercício.
 O n.º 4 do artigo 30.º da CRP visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora 
 da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da 
 concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por 
 confronto com os padrões normativos aplicáveis. O que se proíbe é a automática 
 imposição de uma sanção, como efeito mecanicisticamente associado à pena ou por 
 esta produzido, sem a mediação de qualquer juízo, em concreto, de ponderação e 
 valoração da sua justificação e adequação, tendo em conta o contexto do caso. E 
 a proibição é necessária para garantia de efectivação de princípios fundamentais 
 de politica criminal, os quais, como vimos, devem reger a aplicação de qualquer 
 medida sancionatória. 
 Como se sustentou no Acórdão n.º 284/89:
 
  «[…] com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de 
 quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e 
 simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, 
 profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer 
 caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos 
 princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de 
 todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República 
 Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana».
 Na mesma linha se situou o recente Acórdão n.º 239/2008, na esteira, aliás de 
 uma jurisprudência constante e já extensa deste Tribunal, nesta matéria (cfr. a 
 sua referenciação no Acórdão n.º 562/2003).
 Ora sendo patente, como acima se procurou demonstrar, que o n.º 6 do artigo 8.º 
 do Regulamento em apreciação consagra uma solução que o n.º 4 do artigo 30.º da 
 CRP proíbe, forçoso é concluir pela sua inconstitucionalidade, com este 
 fundamento.
 
  
 
  
 III − Decisão
 Pelo exposto, decide-se:
 a)                              Julgar inconstitucional, por ofensa ao artigo 
 
 30.º n.º 4, da Constituição da República, a norma do artigo 8.º, n.º 6, do 
 
 “Regulamento de exercício de clínica médico-veterinária dos animais de companhia 
 em centros de atendimento médico-veterinários” (publicado na Revista da Ordem 
 dos Médicos Veterinários, n.º 24, Jan/Fev/Mar 2000);
 b)                             Negar provimento ao recurso, confirmando-se a 
 decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
 Sem custas.
 Lisboa, 2 de Julho de 2008
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Mário José de Araújo Torres
 Benjamim Rodrigues
 João Cura Mariano
 Rui Manuel Moura Ramos