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Processo n.º 913/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e B. reclamam para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º
4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho de 22 de Junho de 2004, do relator do processo no Tribunal da Relação do Porto, (Proc. n.º 1218/04-3, de que este emerge), que não lhes admitiu o recurso de constitucionalidade que interpuseram do acórdão do mesmo Tribunal de 20 de Maio de 2004.
Sustentam, em síntese, que o despacho reclamado antecipou o juízo sobre o mérito do recurso mediante uma análise que não cabe no conceito de
“recurso manifestamente infundado” para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo
76.ºda LTC, que se aplica, apenas, quando o recurso tenha natureza manifestamente dilatória, sendo liminarmente evidente ou ostensiva a sua falta de fundamento, o que no caso não sucede.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é, a nosso ver, manifestamente improcedente. Importa, na verdade, realçar que a entidade recorrente não especificou adequadamente, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, qual a específica dimensão ou interpretação dos preceitos legais invocados que pretendia questionar; e não curou sequer de aproveitar a presente reclamação para suprir tal omissão, relativamente ao cumprimento de um ónus, essencial para a delimitação do objecto do recurso de constitucionalidade. Tal implica, como resulta, aliás, da decisão reclamada, que o recurso – reportado às normas processuais questionadas, na sua “literalidade” e objectividade (e ao princípio da preclusão dos meios probatórios, na fase de recurso, que lhe está subjacente) – tenha efectivamente de considerar-se
‘manifestamente infundado’. Importa ainda realçar que, por um lado, não compete ao TC sindicar da concreta decisão proferida, no que respeita à previsibilidade e necessidade da junção dos documentos, na fase de recurso. E, por outro lado, que tais normas não foram aplicadas com o sentido, alegadamente inconstitucional, invocado pela reclamante na reclamação para a conferência – de ser irrelevante a superveniência subjectiva do documento, em consequência de um fenómeno de sucessão de partes, que o acórdão proferido, a fls. 119, considera não se ter verificado, já que a Autora fora, ela própria, parte no processo cujos documentos documentados se pretendiam juntar aos presentes autos.”
2. Para decisão da reclamação interessam as ocorrências processuais seguintes, documentadas nos autos: a) As requerentes propuseram contra C. uma acção que foi julgada improcedente, por sentença de 7 de Maio de 2003,do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia. b) Interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto e juntaram documentos com as respectivas alegações. c) Por despacho do relator do processo no Tribunal da Relação, de 25 de Fevereiro de 2004, alguns desses documentos não foram admitidos, sendo ordenado o seu desentranhamento, nos seguintes termos:
“IV- A segunda diz respeito aos documentos. Quanto a estes temos de atentar nos artigos 524.º e 706.º. A regra é a junção até ao encerramento da discussão em primeira instância; As excepções dizem respeito a documentos; Destinados a provar factos posteriores; Cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, Cuja junção apenas se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. As duas primeiras estão condicionadas - parece-nos evidente - pela admissibilidade da consideração dos factos posteriores; A terceira - conforme tem sido entendido sistematicamente pela Jurisprudência - só pode ter lugar quando a parte apresentante não contava, num plano de razoabilidade, com a necessidade de junção em 1ª instância. O que se compreende perfeitamente, pois, de outro modo, estaríamos a abrir caminho a que grande parte da prova se fizesse apenas em sede de recurso. Ora, dúvidas não subsistem que, discutindo-se a propriedade do aqueduto, as AA deviam ter previsto, antes do encerramento da discussão na 1ª instância, a vantagem para elas da junção dos documentos relativos à outra acção. Tal vantagem a existir, já estava ali perfeitamente delineada, devendo ser logo perante a Srª Juíza da 1ª instância, que tudo devia ter sido carreado. E contra isso não podem argumentar as AA que desconheciam a existência do outro processo judicial. A 1ª autora sucedeu à ali Autora - cfr-se o art.º 10° da resposta à contestação. A esta regra não escapa, no caso presente, o Parecer do Prof. Mota Pinto que foi junto com a outra acção. Não foi elaborado perante as questões que se ventilam no presente processo, pelo que não ultrapassa agora a categoria de documento. Nem escapa o documento n.6, aliás extraído da outra acção também. Dele devia ter do mesmo modo e num plano de razoabilidade, conhecimento ao autora a tempo de o juntar até ao encerramento da discussão em primeira instância. V- Fora da impugnação do recorrido está o documento n. 2. Mas o art.º 700°, n.º1 d) confere-nos poderes para, independentemente da posição da contraparte, recusar, se for caso disso, a junção de documentos em fase de recurso. VI- Se atentarmos no art.º 663° e dermos, como devemos inequivocamente dar, à expressão “encerramento da discussão' o sentido de encerramento em primeira instância, temos que o registo agora invocado, porque ocorreu posteriormente, não pode ser tido em conta. Na verdade, o encerramento da discussão no Tribunal de Vila Nova de Gaia teve lugar em 25.2.2003 ( folhas 325, II Vol. ) e o averbamento do registo agora invocado foi levado a cabo - conforme as recorrentes confessam, nomeadamente, a folhas 370 – em 2 de Julho seguinte. Não se trata de um facto anterior cuja certificação tenha sido obtida posteriormente. Trata-se dum facto, ele mesmo, posterior. Verdadeiramente aqui a questão não é de tempestividade ou não da junção do documento, mas de inocuidade desta, vedada, por isso, até pelo artigo 137°. E, de qualquer modo, estando a presente acção registada (folhas 78) sempre seria muito discutível - pelo menos discutível - o efeito do registo obtido posteriormente sobre a propriedade do aqueduto. VII- Nesta conformidade, face a todo o exposto: Indefere-se a questão prévia levantada pelo recorrido respeitante à inadmissibilidade do recurso: Ordena-se o desentranhamento e entrega à recorrente dos documentos que juntou com cos as alegações de recurso, sob os n.ºs 2 a 9, inclusive, ou seja, de fls.
406 (II vol.) a fls. 519 (III vol.).”
d) As requerentes reclamaram deste despacho para a conferência. e) Por acórdão de 20 de Maio de 2004, o Tribunal da Relação do Porto decidiu:
“III A construção jurídica que implica o desentranhamento já foi levada a cabo no despacho reclamado em termos que aqui acolhemos e que damos por reproduzidos, excepto quanto ao Parecer referido. Limitamo-nos, pois, a reforçá-la no que ultrapassa esta ressalva, principalmente tendo em conta os argumentos agora aduzidos ou repisados. IV- Há que distinguir: A sociedade; Os accionistas. Estes mudam e aquela permanece a mesma. Estes têm memória “humana”, mas aquela não pode deixar de ser encarada com ente autónomo, com todas as referências pessoais devidamente arquivadas. No caso presente, conforme “expressis verbis” se refere no art.º 10° da resposta
à contestação (“continuando a ser a mesma sociedade com uma diferente denominação”), a Autora permaneceu. Mudaram os accionistas, mas isso não afecta a manutenção da personalidade jurídica do ente colectivo e de tudo o que constitui o seu património, a sua história, os seus dados pessoas e aí por diante. Trata-se duma situação bem diferente da – invocada pela recorrente – que se verifica quando morre alguém e outrem lhe sucede. Assim, se a Autora foi parte no processo cujos elementos agora se pretendem juntar por certidão, pertencia à sua “memória” enquanto ente autónomo tal episódio. Por isso, não pode invocar o desconhecimento a partir do desconhecimento pessoal dos agora accionistas. V- O n.º 2 do art.º 706° não dispõe que podem ser juntos pareceres, mas “os” pareceres. Esta subtileza justificaria, de certo modo, que se entendesse que só podiam ser juntos, nesta altura, pareceres específicos para o processo. Mas cremos agora que se deve dar à lei uma grande latitude, admitindo que um processo seja ainda nesta fase enriquecido com um parecer que não é elemento de prova, mas tão só de alegação jurídica. VI- Já quanto ao registo, a recorrente não tem razão.
É ele bem posterior ao momento último que deve ser atendido para efeitos de decisão da presente acção. VII - Quanto à segunda reclamação: Gira ela em torno da admissibilidade da junção de documento para instruir a reclamação apresentada. Entendemos que a reclamação, por natureza, não pode acrescentar dados aos que estavam à disposição quando foi lavrado o despacho reclamado. De outro modo, estaríamos, não a reapreciar, mas a tomar uma decisão com bases diferentes de raciocínio. Assim, subscreve-se, neste ponto, a posição reclamada. VIII Nesta conformidade: Altera-se a decisão do relator no respeitante à juncão do Parecer do Prof. Mota Pinto que se admite; Mantém-se o decidido quanto à segunda reclamação. Assim: Desentranhe e devolva à parte os documentos de folhas 601 a 667 e 704 a 719 (o de folhas 594 a 599 já havia sido mandado desentranhar no despacho que antecede).”
f) As requerentes interpuseram recurso deste acórdão, nos seguintes termos:
“Não se conformando, por entenderem terem sido violados os seus direitos de acesso ao direito e aos tribunais e a garantia de recurso contencioso, artigos
20.º/1 e 277.º da CRP , e ao manter a decisão de ordenar o desentranhar dos documentos ter efectuado uma interpretação incorrecta dos artigos 706.º, n.º 1 e
2 quando conjugado com o artigo 524.º, n.º 1, ambos do C.P.C., violando, assim, o principio do direito à prova, sub-princípio do princípio do acesso aos tribunais (artigo 20.º , n.º 1 da C.R.P .). As referidas questões de inconstitucionalidade foram suscitadas na dita reclamação apresentada no Tribunal da Relação do Porto pelas Recorrentes em 12 Março de 2004, vem RECORRER para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), n.º 2 e 3 e 72.º, n° 1 b) e n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional.”
g) O relator do processo no Tribunal da Relação proferiu, então, o seguinte despacho [ despacho reclamado]:
“I- A folhas 751, veio o A. requerer a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional Nos termos do art.º 70°, n.º 1 b), 2 e 3 da Lei n.º 28/82, tal recurso seria admissível. Mas, por força da parte final do n.º 2 do art.º 76° desta mesma lei há que indagar se é manifestamente infundado. II- Para a admissão argumenta que este Tribunal da Relação violou os seus direitos de acesso ao Direito e aos Tribunais e de garantia de recurso contencioso. Refere ainda que estas questões de inconstitucionalidade foram suscitadas em reclamação anteriormente apresentado. III - Esta reclamação está a folhas 586 e seguintes, situando-se a parte que nos interessa a folhas 592 e 593. Daqui se vê que as questões são as seguintes: a) O A. pretendeu juntar elementos de outra acção que correu anteriormente e de que foi parte a entidade a que sucedeu nos direitos e obrigações; b) Pretendeu ainda juntar documento comprovativo de registo predial levado a cabo depois do encerramento de discussão em primeira instância. Este tribunal, primeiro pela mão do relator, e, depois, em conferência, recusou tal admissão. No essencial, quanto à primeira parte, porque era previsível a importância dos documentos e a parte já os poderia ter juntado em primeira instância; E, quanto à segunda, porque o teor do registo não podia relevar, uma vez que interessava apreciar a situação existente à data do encerramento da discussão em primeira instância. Além, valia o art.º 706.°, n.º1 conjugado com o art.º 524°, ambos do CPC; Aqui teve-se em atenção o que determina o art.° 663.° do mesmo código. III - Com ressalva evidente por melhores opiniões, parece-nos claro que a junção dos documentos tem de ter a sua oportunidade e que a mesma em sede de recurso tem de ser altamente restringida. De outro modo, gerar-se-ia uma anarquia processual, uma situação de possibilidade de subtracção de documentos importantes à essencial discussão da causa no aspecto factual (que é a que tem lugar em primeira instância) para serem apresentados só em fase onde tal discussão já não tem contornos de primacialidade. E, se se admitissem factos posteriores ao encerramento da discussão em primeira instância estaríamos a abrir caminho a que os recursos o não fossem, passando a constituir afinal o primeiro julgamento. Dito de outro modo, teríamos, quer num caso, quer noutro, o arrimar da primeira instância para uma importância meramente introdutória da apreciação da questão. Ao arrepio de toda a nossa estrutura processual e até – aqui sim – de princípios constitucionais. Para além da consequente perda de tempo e de utilidade. Este modo de entender as coisas, quanto à junção dos documentos, corresponde ao entendimento do Tribunal Constitucional plasmado nos Acórdãos de 17.6.95 e n.º
227/94 para que aquele remete. Sendo certo que não vemos razões para se entender de outro modo quanto à outra questão. Até pelo contrário, quanto a esta existem razoes acrescidas porque se está no domínio da substância (admitindo ou não factos novos) e não da prova. IV- Creio, pois, que o recurso pretendido é manifestamente infundado e, assim, atento o já referido n.º 2 do art.º 76.° da Lei n.º 28/82, não o admito. Custas do incidente pela requerente, com 4 UCs de taxa de justiça .”
3. Apesar da referência, apenas, ao “A.” e do uso concordante do singular que nele se faz, as reclamantes não tiveram dúvidas em interpretar o despacho reclamado como estando abrangida a posição de ambas pela decisão de não admissão do recurso que, aliás, conjuntamente haviam interposto. O autor do despacho reclamado mandou subir a reclamação, proferindo despacho de sustentação, sem qualquer reparo (fls. 19). Assim, não é desrazoável tomar por assente aquela interpretação, pelo que se reconhece legitimidade a ambas as requerentes e se passa à apreciação da reclamação.
4. O recurso sobre que recaiu a decisão reclamada foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. A decisão reclamada não o admitiu, invocando para tanto o n.º 2 do artigo 76.º, da mesma Lei, na parte em que dispõe que o requerimento de interposição de recurso ao abrigo daquela alínea b) deve ser indeferido quando for “manifestamente infundado”.
Determinando o sentido deste conceito, no âmbito deste preceito legal, escreveu-se no Acórdão n.º 501/94 (Diário da República, II série, de 10 de Dezembro de 1994) o seguinte:
“9 – Neste domínio, é fundamental concretizar critérios de aferição do que seja
«um recurso meramente infundado» para delimitar tal conceito.
É desde logo evidente que não se pode, em sede de reclamação, antecipar a apreciação do mérito do recurso, procedendo a uma análise circunstanciada dos seus fundamentos. Não constitui objecto da reclamação avaliar a atendibilidade dos fundamentos do recurso, mas apenas apreciar a verificação das condições de admissibilidade do recurso. Em regra, tais condições possuem natureza formal, embora uma delas, concretamente a que ora nos interessa - ou seja, a de o recurso não ser 'manifestamente infundado' -, tenha uma irrecusável componente substantiva, na medida em que impõe uma certa avaliação dos fundamentos do recurso. Porém, esta avaliação não pode ser idêntica à que teria lugar no julgamento do próprio recurso. Não é por entender que os fundamentos do recurso improcedem que o julgador pode, logo na apreciação da reclamação, considerar o recurso
'manifestamente infundado': por isso, a lei não se basta com que o recurso seja
'infundado', para determinar a não admissão do recurso e o subsequente indeferimento da reclamação, mas exige que o recurso seja 'manifestamente infundado'. Isto significa que o recurso só pode ser indeferido e a reclamação desatendida se uma avaliação sumária dos seus fundamentos permitir concluir, inequivocamente, pela sua inatendibilidade. Se o julgador, no âmbito da reclamação, tiver de desenvolver uma actividade cognitiva e argumentativa semelhante à que utilizaria em sede de recurso para poder concluir pela inatendibilidade dos respectivos fundamentos, tal indiciará que não estamos perante um 'recurso manifestamente infundado' - e, por conseguinte, será de deferir a reclamação e determinar a subida do recurso, ainda que, a final, venha a ser-lhe negado provimento.
10. No Acórdão nº 269/94, publicado no Diário da República, 2ª Série, de
18/6/94, o Tribunal Constitucional abordou o conceito de 'recurso manifestamente infundado' e concluiu que ele visa impedir que o recurso de constitucionalidade sirva fins dilatórios: a questão de inconstitucionalidade só deve subir ao Tribunal Constitucional quando apareça, prima facie, dotada de uma certa atendibilidade. A finalidade deste pressuposto de admissibilidade do recurso é, sem dúvida, evitar recursos inúteis, com efeitos meramente dilatórios. Porém, tendo em atenção as considerações anteriormente expendidas, ele não pode ser utilizado para obstar à subida de recursos cuja atendibilidade seja duvidosa, sob pena de subversão das finalidades e características do meio processual 'reclamação', que não pode substituir o meio processual 'recurso' (com diferentes prazos e garantias para as partes). Com efeito, é este último o meio próprio para a avaliação ponderada da atendibilidade dos fundamentos do recurso. Resulta do exposto que o conceito de 'recurso manifestamente infundado' deve ser delimitado negativamente, como, aliás, decorre da própria formulação legal do conceito. Assim, é 'manifestamente infundado' o recurso cuja inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva. Isto significa que não há que averiguar se o recurso procede, nem se exige um determinado grau de probabilidade dessa procedência - caso em que se estaria a entrar, profundamente, na apreciação do respectivo mérito. O que o legislador exige é que se verifique, tão-só, se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis.
[ ... ]”
Não há razões para divergir ou acrescentar algo a este entendimento do conceito de “recurso manifestamente infundado” para efeitos do disposto no nº 2 do art.
76º da LTC, de que o Tribunal tem feito aplicação repetida. Apenas se deixa a nota, porque as reclamantes parecem ter feito outra leitura da jurisprudência do Tribunal, de que não é necessária a demonstração de um propósito dilatório por parte do recorrente, bastando que o recurso tenha objectivamente essa natureza, por não apresentar qualquer possibilidade de sucesso.
5. Isto posto – ou apesar disto, porque esta compreensão do conceito coincide, no essencial, com o que as reclamantes defendem –, a pretensão das reclamantes não pode ser deferida, porque o recurso, tal como se considera interposto, tem de ser qualificado como “manifestamente infundado”, como no despacho reclamado se decidiu.
Ponto de partida decisivo é a determinação do objecto do recurso. Ora, com efeito, como salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, não tendo as recorrentes indicado, seja no requerimento de interposição, seja na reclamação, uma específica dimensão ou uma particular interpretação normativa com que esses preceitos tenham sido aplicados, só resta entender que a imputação de constitucionalidade é feita às normas dos “artigo 706.º, n.ºs 1 e 2, quando conjugado com o artigo 524.º, n.º 1” do Código de Processo Civil, na sua
“literalidade” e “objectividade”, isto é, com o sentido que correntemente o intérprete lhes possa atribuir, de acordo com as regras gerais da hermenêutica jurídica.
Efectivamente, como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de
1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”. Ora, nem o recorrente procedeu a essa indicação precisa, nem do texto do acórdão de que se pretende recorrer resulta, de modo absolutamente inequívoco, que os preceitos em causa tenham sido interpretados com uma interpretação perfeitamente determinada que nitidamente se aparte do sentido corrente.
Sucede que sobre a manifesta falta de fundamento de um recurso de constitucionalidade com o objecto assim definido já este Tribunal se pronunciou, designadamente, no Acórdão n.º 227/94, publicado no Diário da República, II série, de 22 de Agosto de 1994, em que também foi chamado a apreciar reclamação de despacho de não admissão de recurso e conclui pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
“(...)
3- O regime normal do oferecimento de prova documental determina a sua anexação ao articulado em que se aleguem os factos correspondentes. Não se trata de uma disciplina rígida na medida em que se admitem desvios a essa regra, como no caso da apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância – previsto no n.º 2 do artigo 523.º do CPC – ou no de apresentação em momento posterior ao encerramento da discussão, por impossibilidade de o ter feito antes – n.º 1 do artigo 524.º – ou, ainda, se destinados os documentos a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior – n.º 2 deste artigo. No caso vertente, a junção dos documentos não se enquadra em nenhuma dessas previsões – como se colhe do seu exame e se disse nas instâncias, em termos, de resto, insindicáveis por este Tribunal – sendo exacto que, como observa o Ministério Público, a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, permitida nos termos do artigo 663.º do CPC, nada tem a ver com a apresentação de novas provas, configurando-se em diferente sede. Ou seja, não se trata de impossibilidade de oferecimento atempado de documentos, nem de surperveniente necessidade de junção, na sequência de factos ocorridos, posteriormente. A disciplina da matéria é clara, não oferecendo controvérsia os termos em que está estabelecida, sem prejuízo de poder não se concordar com a mesma. Poderá mesmo acrescentar-se que, ao apresentar os documentos juntamente com as alegações de recurso, os reclamantes não desconheciam – não «podiam» desconhecer
– o descrito regime jurídico, até porque as regras são unívocas e a sua interpretação não tem oferecido dúvidas de maior, jurisprudencial e doutrinalmente. No entanto, não é esse propriamente, o problema em jogo, mas sim o perfil constitucional das normas que se pretendem sindicar, o que já respeita ao próprio fundamento jurídico-material do recurso. Ora, se é certo que o Tribunal Constitucional ainda não se pronunciou, directa e concretamente, sobre essas normas, numa perspectiva jurídico-constitucional, não
é menos certo não se esboçar, liminarmente sequer, uma não conformidade de qualquer desses preceitos com os parâmetros constitucionais. Na verdade, inserem-se todos eles na disciplina processual do aparecimento de prova por documentos, não se vislumbrando em que medida são susceptíveis de atentar contra o designado «princípio constitucional da justiça substancial»: como bem observou o Ministério Público, em passagem já referenciada, esta é uma
área onde o iter processual mais maleável se revela. Por outro lado, o desvio à regra da instrução feita na 1ª instância só se mostra relevante se, face à fundamentação da sentença ou ao objecto da condenação, se torna necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida (neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, 2ª ed., pp. 533 e 534) – o que não é o caso, como se salientou no aludido despacho de 30 de Junho de 1992.
É, assim, manifesta a falta de fundamento da atitude dos ora reclamantes.”
Esta jurisprudência, retomada, aliás com desenvolvimento das mesmas linhas essenciais, no Acórdão n.º 473/94 (Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 1994) e repetida no Acórdão n.º 400/95 (inédito) nos quais, então já em conhecimento de fundo, se julgou não violarem o artigo 20.º da Constituição as limitações à junção de documentos, na fase de recurso, decorrentes dos artigos 706.º e 524.º do Código de Processo Civil, permite que, com o objecto definido no requerimento de interposição – repete-se que as reclamantes não indicam, aí ou na reclamação, uma particular dimensão ou sentido normativo –, se qualifique o recurso de constitucionalidade interposto pelas reclamantes como manifestamente infundado (Aliás, quer o Acórdão n.º 227/94, quer o Acórdão n.º
400/95 são invocados no despacho reclamado).
Com efeito, não é razoável sustentar que, tal como se encontra disciplinado no artigo 706.º, n.ºs 1 e 2, em conjugação com o artigo 524.º, do Código do Processo Civil, o regime de junção de documentos na fase de recurso prive ou limite desproporcionadamente o interessado na defesa dos seus direitos e interesses legítimos perante os tribunais (proibição de indefesa na vertente do direito à produção de prova). A junção de documentos é amplamente permitida até ao encerramento da discussão em 1ª instância e é ainda permitida relativamente a documentos cuja apresentação não tiver sido possível até aquele momento, destinados a provar factos posteriores ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ou em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.
Consequentemente, é manifestamente infundado imputar ao referido regime violação do artigo 20.º da Constituição. Importa, apenas, salientar que não cabe ao Tribunal Constitucional censurar a aplicação que deste regime infraconstitucional se faça ao caso concreto, designadamente, no que respeita à impossibilidade de junção em momento anterior e à necessidade de apresentação na fase de recurso.
6. Além do parâmetro acabado de examinar, as requerentes indicaram no requerimento de interposição, também como violados pela norma em causa, a garantia de recurso contencioso e o artigo 277.º da Constituição. A referência
àquela garantia é incompreensível, porque não estamos perante acto ou actividade administrativa. E a invocação do artigo 277.º da Constituição, que define a inconstitucionalidade por acção e disciplina a relevância da inconstitucionalidade de tratados internacionais, é inócua. Tal preceito qualifica a infracção a normas ou princípios constitucionais; não é parâmetro de aferição de inconstitucionalidade normativa (salvo de norma de direito ordinário que se propusesse qualificar diversamente aquela infracção).
7. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso e em condenar as reclamantes nas custas, fixando a taxa de justiça em vinte UC, por cada uma.
Lisboa, 26 de Novembro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício