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Processo n.º 538/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de Dezembro de 2003, que confirmou a sua condenação como autora de um crime de abuso de confiança, sob a forma continuada, p. e p. pelo art.º 205º, n.º 4, alínea b), do Código Penal (CP), decretada pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, apenas alterando a condição de suspensão da pena de obrigação de pagamento à entidade ofendida da indemnização de € 39.483,87 (7. 915.805$30) no prazo de 12 meses para a obrigação de pagamento dessa mesma indemnização durante o período de 3 anos, sendo 1/3 em cada um desses anos, pretendendo a apreciação da constitucionalidade do art.º 205º, n.º 1, do CP enquanto abrangendo na sua previsão as coisas móveis fungíveis e, designadamente, somas de dinheiro, por violação do disposto no art.º 8º, n.º 1, e 27º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2 – Sobre a questão de constitucionalidade perante si suscitada, a decisão recorrida discorreu do seguinte modo:
«Defende a recorrente que o crime de abuso de confiança taxado no art.º 205º, n.º 1, do CP não abrange as coisas móveis fungíveis designadamente as somas de dinheiro, pois a não ser assim estar-se-ia a legitimar prisão por dívidas. Quando a coisa for fungível o agente deve ser absolvido da prática do crime e apenas condenado no pagamento das importâncias que estão em causa. Ao não se entender assim, sufragando que a interpretação a dar ao art.º 205º, n.º 1. do CP não é a agora preconizada, como é o caso do acórdão recorrido, mostra-se violado o disposto no art.º 8°, n.º 1, e por compreensão lógica, o conteúdo do art.º 27º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Decidindo:
“Questões podem suscitar-se quando a coisa móvel alheia é constituída por objectos fungíveis, nomeadamente por dinheiro (sobre o ponto cf. entre nós Eduardo Correia, RDES, 1954 65 e na literatura alemã H. Mayer, GS 104 100, e Roxin, H. Mayer - FS 1966, 467 ss). Tratando-se aqui de objectos que se confundem ou podem confundir no património de quem os recebe, e ainda que seja exacto que o direito de propriedade só pode ter por objecto coisas certas e determinadas, o carácter alheio da coisa nem é, por um lado, em princípio afectado pela sua confusão no património do tomador, nem, por outro lado, tal confusão perfaz sem mais o tipo objectivo do abuso de confiança. Problemas que poderão ainda levantar-se não relevam do elemento “carácter alheio da coisa”, mas suscitam-se, na verdade, nos termos da apropriação, da sua ilegitimidade e do dolo respectivo (aí devendo ser considerados cf. Infra 25,28,31). Uma vez estabelecida aquela conclusão, problemas sobrantes e diversas situações especiais a propósito pensáveis (v. g. dinheiro enviado pelo correio, por vale postal, etc.) serão ainda decididos de acordo com o princípio de que é ao direito civil - eventualmente também ao direito administrativo - que pertence determinar quem é, em cada momento, o titular da propriedade do dinheiro”
(Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pp. 99). O crime de abuso de confiança consuma-se com a apropriação, que se traduz na inversão do título de posse, passando o agente a dispor de coisa como sua, sendo que a manifestação externa do acto de apropriação carece de ser demonstrada por actos concludentes. No caso de coisas móveis fungíveis (como o dinheiro), a mera. confusão ou o simples uso são insuficientes para integrar o elemento objectivo apropriação. Em tais casos a apropriação terá de resultar, mais tarde, pela disposição da coisa de forma justificada ou pela sua não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos, ao que terá de acrescer o correspondente dolo (Ac. Rel. do Porto, de 2/4/03, no recurso 0210711). Perante o exposto e a factualidade dada como provada, nomeadamente de que a
“arguida fez suas as ...importâncias” “...utilizando-o em proveito próprio e no seu interesse pessoal”, consideramos não assistir razão à recorrente, quer no que respeita à verificação dos pressupostos, quer no que respeita à inconstitucionalidade.».
3 - Alegando no Tribunal Constitucional, a recorrente sintetizou nas seguintes conclusões o seu discurso argumentativo:
«1) O crime de abuso de confiança taxado no art.º 205°, n° 1, do C. Penal não abrange as coisas móveis fungíveis, designadamente as somas em dinheiro, pois a não ser assim estar-se-ia a legitimar a prisão por dívidas,
2) Quando a coisa for fungível, o agente deve ser absolvido da prática do crime e apenas condenado no pagamento das importâncias de que se mostre provado que indevidamente se apropriou;
3) Ao não se entender assim, sufragando que a interpretação a dar ao art.
205°, n° 1, do C. P. não é a agora preconizada, como é o caso do acórdão da Relação, mostra-se violado o disposto no art.º 8°, nº 1, e por compreensão lógica, o conteúdo do art. 27°, n° 1, ambos da Constituição da República Portuguesa;
4) A norma do art. 205°, n° 1, do C. P., por errada interpretação e aplicação, que é a do acórdão da Relação, deve ser declarada inconstitucional, e não pode ser aplicada pelos tribunais, di-lo o art. 204° da C.R.P..
Termos em que, e invocando o douto suprimento de V. Exªs, colendos julgadores, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e o art. 205°, n°
1, do Código Penal ser declarado inconstitucional por no seu âmbito não caber o ilícito que se traduz na apropriação indevida de coisas móveis fungíveis, como são as quantias pecuniárias, pois a não ser assim estar-se-ia a legitimar a prisão por dívidas, o que é ilegal e inconstitucional, tudo com as legais consequências.».
4 – Por seu lado, o Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional contra-alegou, defendendo o não provimento do recurso e concluindo do seguinte jeito:
“Não viola manifestamente o princípio da proporcionalidade a inclusão, no âmbito do tipo legal do crime de abuso de confiança, do comportamento do trabalhador/comissário que – no exercício das funções de
“caixa” ao serviço da respectiva entidade patronal – se apropria ilegitimamente de quantias em dinheiro de que era mero detentor, desviando-as do património social a que se destinavam, para as fazer suas, utilizando-as em proveito próprio e no seu interesse pessoal”.
B – Fundamentação
5 – A questão decidenda é a de saber se a norma do art.º 205º, n.º
1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual se abrangem na sua previsão quantias em dinheiro de que o trabalhador/comissário é mero detentor por serem destinadas ao património social da entidade patronal/comitente, é inconstitucional, por violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado no direito à liberdade e segurança reconhecido no art.º 27º, n.º 1, da CRP, em consonância com o estabelecido no artigo 1º do Protocolo Adicional (n.º
4) à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
6 – O artigo 205º, n.º 1, do Código Penal tem a seguinte redacção:
«Artigo 205º Abuso de confiança
1 – Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.».
A recorrente controverte a constitucionalidade desta norma com o fundamento de que “o abuso de confiança pressupõe a existência de um direito de propriedade a favor do titular da coisa, e dado que só existe propriedade, com os inerentes direitos de sequela e de reivindicação, quando estamos perante coisas certas e determinadas, as coisas fungíveis escapam ao aro da incriminação. Porque, a não ser assim, estaria o legislador a permitir que alguém pudesse ser preso por dívidas”. Mas esta tal interpretação – acrescenta - viola não só o art.º 1º do Protocolo Adicional (n.º 4) à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 16/09/1963, que vigora no nosso ordenamento jurídico como direito internacional recebido como o art.º 27º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Constitucional já foi confrontado com a problemática da prisão por dívidas, entre outros casos, a propósito da conformidade com a Lei Fundamental da norma do art.º 49º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, na parte em que ela permite que a suspensão da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado
(Acórdão n.º 440/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º, vol., pp. 521 e segs.), das normas constantes dos artigos 1º-A, 11º, 11º-A, n.º
2, e, consequencialmente, das demais disposições, nomeadamente de índole procedimental, que integram o regime penal do cheque, regulado pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro (Acórdão n.º 663/98, publicado no Diário da República II Série, de 15 de Janeiro de 1999) e da conformação legal de um crime próximo daquele que está agora sob exame – o abuso de confiança fiscal, quer nas versões do art.º 24º e do art.º 27º-B (abuso de confiança fiscal relativamente à Segurança Social) do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras - RJIFNA (Acórdãos n.ºs 312/00, 516/2000, 389/2001, 427/2002, publicados os dois primeiros, respectivamente, no Diário da República II Série, de 17 de Outubro de
2000, 31 de Janeiro de 2001, e os dois últimos inéditos), quer na do art.º 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (caso do Acórdão n.º 54/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia).
Teceram-se, então, a propósito do respectivo thema decidendum naquele Acórdão n.º 663/98 as seguintes considerações, a que os demais arestos posteriores citados aderiram no essencial:
«Resulta claramente dos trabalhos preparatórios do Protocolo Adicional nº
4 que o que o artigo 1º desse Protocolo 'proíbe, porque contrário à noção de liberdade e de dignidade humanas, é privar um indivíduo da liberdade pela simples razão de que ele não teria meios materiais de cumprir as suas obrigações contratuais', e ainda que 'a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual, como seja a recusa deliberada de cumprir uma obrigação' (estas duas passagens do relatório explicativo final, a primeira, e das actas de reunião a segunda, do Comité de peritos que elaborou o Protocolo nº 4, são citadas para determinar a interpretação do artigo 1º pela decisão de 18 de Dezembro de 1971 da Comissão, sobre o pedido nº 5025/71, Yearbook of the European Convention on Human Rights, XIV, p.692, 697-8). Nestes casos, e ainda se a impossibilidade de cumprir é devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crime puníveis com prisão (assim, citando o mesmo relatório explicativo, Francis G. Jacobs, The European Convention on Human Rights, Oxford, 1975, p.183). Exemplificando, a doutrina tem considerado que não violam o artigo 1º do Protocolo as leis penais que incriminam a burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços ou a insolvência dolosa (assim, referindo disposições correspondentes do Code pénal belga, Jacques Velu, Rusen Ergec, La Convention Européenne des droits de l'homme, Bruxelles, 1990, p.315). Há que entender que uma norma com o conteúdo da do artigo 1º do Protocolo nº 4 integra o conteúdo do direito à liberdade e à segurança do nº 1 do artigo 27º da Constituição, numa dimensão que não é abrangida pelos restantes números do artigo. Nomeadamente, o nº 2 do artigo 27º, também invocado na decisão recorrida, expressamente exclui do seu âmbito garantístico a privação de liberdade 'em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão'. Nenhuma lei penal, incluindo a que incrimina a emissão de cheque sem provisão, e é questionada no caso, jamais violará o nº 2 do artigo 27º. De modo semelhante se entendeu necessário criar o artigo 1º do Protocolo nº 4 para 'reforçar as disposições do artigo 5º da Convenção Europeia' (assim Jacques Velu, Rusen Ergec, ob.cit., p.314), que corresponde sistematicamente ao artigo 27º da Constituição.
É claro que, reconhecida a vigência de uma norma ou princípio, que proíba a prisão pela única razão da incapacidade de pagar uma dívida contratual, tal implica a proibição da prisão por uma lei penal com esse pressuposto, do mesmo modo que o princípio da culpa implica a proibição da prisão por uma lei penal por facto não culposo. Só que estas restrições à excepcional permissão da prisão do nº 2 do artigo 27º, que resultam de um conceito material de direito penal, não se deduzem do próprio nº 2, mas de outros preceitos constitucionais. A norma do artigo 1º do Protocolo nº 4 visou dar expressão a uma convicção jurídica que remonta ao início do Estado de direito e que está generalizada nos Estados membros. A abolição da prisão por dívidas, mais precisamente, do uso da prisão como meio de coacção para obter o cumprimento de obrigações contratuais foi uma exigência do iluminismo, que em muitos países já estava realizada antes da época constitucional. Isso talvez ajude a explicar a falta de consciência aguda da necessidade da sua explícita consagração constitucional. Em Portugal as várias formas de prisão como meio de coacção na disponibilidade do credor previstas nas Ordenações (Ordenações Filipinas, livro IV, título 76) foram revogadas pela Lei de 20 de Junho de 1774, § 19 (António Delgado da Silva [ed.], Collecção da Legislação Portugueza Desde a Ultima Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774, Lisboa, 1829, p.787), cujas razões foram assim interpretadas no Assento da Casa da Suplicação de 18 de Agosto do mesmo ano:
'sendo a razão e espírito daquela piíssima Lei o desterrar de todos os Juízos e Auditórios a barbaridade, com que trataram aos devedores as primeiras Leis Romanas, de que ainda são relíquias as prisões contra os devedores de boa fé, era violentíssimo este procedimento; pois não havendo Lei alguma Civil, ou Criminal, que o decrete sem culpa, nenhuma há nos devedores pobres, que se impossibilitaram para pagar, pelos adversos casos da fortuna: servindo nestes termos as prisões de cevarem o ódio e a vingança dos credores, e de oprimirem, contra todas as razões da humanidade, os miseráveis devedores, até darem a vida nos horrorosos cárceres, em que os têm detidos; ao mesmo passo, que se consultassem as regras do interesse particular e público, deveriam consentir na soltura; porque postos em liberdade os devedores, adquiririam meios, com que satisfizessem as suas dívidas, e até a República se serviria deles, empregando-os nos seus respectivos ministérios:' (Collecção Chronológica dos Assentos das Casas da Supplicação e do Cível, 2ª ed. Coimbra, 1817, p. 411-2). Estas razões conservam no essencial plena validade à face da Constituição: a prisão, como meio de coacção ao cumprimento de obrigação contratuais, viola os princípios da necessidade das restrições de direitos fundamentais e, nomeadamente, da pena e de sanções similares (artigo 18º, nº 2)e da culpa
(derivado do princípio da dignidade da pessoa humana: artigo 1º). Com efeito, a tutela das obrigações contratuais do cidadão faz-se através das sanções preventivas e repressivas do direito privado, e só quando há violação que, do ponto de vista da culpa, merece especial reprovação, a ponto de provocar justificado alarme social, exige a sua prevenção o recurso às sanções penais. A estas considerações, que já têm pleno valor para a concepção pública da justiça penal do Estado ilustrado, como neste aspecto o foi o do josefinismo português, acresce o novo conteúdo que o princípio da necessidade da pena tem no Estado de direito, orientado pela valoração básica dos direitos da pessoa humana, por comparação com a sua interpretação no Estado absolutista, mesmo quando ilustrado, em função da prevenção geral da violação de uma ordem orientada por valores heterónomos. Assim, num Estado de direito a possibilidade de os credores se servirem da prisão pública como meio de coacção ao serviço dos seus interesses contratuais, traduz-se numa espécie de servidão pessoal entre credor e devedor, que ofende de modo insuportável o direito à liberdade. Poderá ainda invocar-se a violação de dois princípios, que só tiveram consagração com o Estado de direito: os princípios da reserva de lei e da tipicidade. A reserva de lei na definição dos pressupostos da privação de liberdade (artigo 27º, nº2 e 3, artigo 165º, nº 1, alíneas b) e c)) seria violada, na medida em que a descrição dos comportamentos seria remetida para as cláusulas contratuais (este aspecto, noutra linguagem, é apontado pela doutrina francesa como uma das razões da proibição da 'contrainte par corps', denominação francesa do meio de coacção proibido pelo artigo 1º do Protocolo nº 4 : Jacques Mourgeon in L.- E.Pettiti, E. Decaux, P.H. Imbert, La Convention Européene des Droits de l'Homme, Paris, 1995, p.1041). Teríamos normas em branco quanto à previsão, sem descrição especificada dos elementos de facto, exigida pelo princípio da tipicidade (outra dimensão dos mesmos preceitos). No mesmo sentido se poderá ainda invocar o argumento sistemático de o caso central da prisão por dívidas - o meio de coacção do antigo direito de prisão de prazo variável até pagamento de dívida contratual - estar excluído pela exigência constitucional de determinação do tempo quer da prisão como pena criminal (cfr.artigo 30º, nº1), quer da prisão preventiva (artigo 28º, nº4), quer dos restantes casos excepcionais de detenção previstos no nº3 do artigo 27º. Mas há que reconhecer que estes argumentos têm menos força que os anteriores: o princípio da tipicidade tem que se acomodar com a por vezes necessária remissão de certos conceitos como 'alheio', 'ilegítimo', etc. para normas extra-penais, pelo que a razão da doutrina francesa terá mais a ver com o carácter contratual da ofensa, que não justifica sanção penal, do que com a sua falta de determinação legal; e a indeterminação do prazo pode ser eliminada pela sua fixação. Semelhantes argumentos se poderiam formular com base nas anteriores constituições portuguesas, pelo que a consagração, quer na Constituição de 1911
(artigo 3º, nº 19), quer na de 1933 (artigo 8º, nº 13), da garantia individual de não haver 'prisão por falta de pagamento de custas ou selos' se deve entender como uma extensão para lá do domínio contratual de uma garantia dada por assente neste domínio. Há que concluir como no acórdão nº 440/87 : 'tem, pois, de considerar-se como princípio constitucional consignado nas nossas Constituições - e aqui interessa apenas a de 1976 - a proibição da chamada 'prisão por dívidas' (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10, p.527). Importa, no entanto, acentuar que também em Portugal sempre se entendeu que o princípio só se aplicava aos 'devedores de boa fé', excluindo os casos de provocação dolosa do incumprimento ( nas palavras do acima citado assento da Casa da Suplicação: 'quando sem dolo nem malícia se reduziram a estado de não terem com que satisfaçam aos seus credores' [ibidem]). Havendo dolo ou malícia não se tratava, desde logo, de um caso em que a 'única' razão do incumprimento era a incapacidade de pagar por parte do devedor. Também é claro que o conjunto de razões invocadas para a proibição de prisão por dívidas não se aplica quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei. Assim a Comissão Europeia dos Direitos do Homem considerou que os parágrafos 899 e seguintes do Código de Processo Civil alemão, que prevêem a prisão até seis meses como meio de coacção para obter do devedor executado o cumprimento da obrigação legal de declarar sob juramento os seus bens, quando, sendo o devedor requerido para fazer a declaração pelo credor exequente, falta ou se recusa a fazê-lo, não violam o artigo 1º do Protocolo nº 4 (decisão de 18 de Dezembro de
1971, queixa nº 5025/75, supra citada). No mesmo sentido se pode invocar a jurisprudência da mesma Comissão sobre a contrainte par corps do direito francês. A contrainte par corps que tem a sua origem na prisão por dívidas do antigo direito, foi abolida em matéria civil e comercial pela lei de 22 de Julho de 1867, e só subsiste como medida decretada em processo penal a favor do Estado, em caso de inexecução de uma condenação a pagamento pecuniário, de multa ou qualquer outro, que não tenha o carácter de reparação civil, nem de custas judiciais, por uma infracção que não seja de natureza política (artigo 749º do Código de Processo Penal francês, modificado pela Lei nº 93-2 de 4 de Janeiro de
1993). Consiste na prisão, embora sem obrigação de trabalho (artigo 761º CPP), por tempo fixo, em função do montante da dívida, entre cinco dias e quatro meses
(artigo 750 CPP), mas podendo ser de dois anos, quando a multa e as condenações pecuniárias pelas infracções penais e alfandegárias relacionadas com estupefacientes excedem 500.000 francos (artigo 706-31 CPP). A contrainte é prevenida, ou os seus efeitos cessam, pelo pagamento, consignação ou caução da soma devida (artigo 759 CPP) e não pode ser executada contra os condenados que façam prova legal da sua insolvência (artigo 752 CPP). Sendo estes os traços essenciais do regime, a Comissão da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem-na justamente considerado um meio de coacção ou 'mesure d'execution forcée'
(decisão de 9 de Abril de 1996, queixa nº 20509/92 (Desborough)), de acordo com a jurisprudência e a doutrina francesas (citadas na mesma decisão e no acórdão Jamil cit.infra), e decidido que está fora do âmbito de aplicação do artigo 1º do Protocolo nº 4, por resultar de uma 'condenação proferida por uma jurisdição penal' (assim, além da decisão já citada, as três decisões de 15 de Maio de
1996, nas queixas nº 26198/95 (J.-M.B.), nº 27373/95 (Ninin e nº 28645/95
(Bitti); a idêntica decisão da mesma data na queixa nº 29246/95 (Byott) implica a mesma doutrina). É certo que a Comissão decidiu no primeiro caso citado
(Desborough) receber a queixa, mas por não ser claro que o requerente dispusesse de um 'recurso para um tribunal', no sentido do artigo 5, § 4 da Convenção, quando pediu o levantamento da contrainte por insolvabilidade, uma vez que o juiz só podia julgar da regularidade formal da imposição da contrainte. Também é certo que no acórdão Jamil, de 8 de Junho de 1995 (vol.320 da Série A), o Tribunal da Convenção Europeia decidiu que a contrainte par corps era de considerar uma pena para o efeito da proibição de retroactividade do artigo 7º,
§ 1º da Convenção, num caso em que ao tempo da prática do facto (importação de cocaína) a duração da contrainte aplicável era de quatro meses, e o tribunal de recurso aplicou uma lei nova que aumentou a duração para dois anos; mas não se pronunciou sobre a aplicação do artigo 1º do Protocolo nº 4, que já não tinha sido retida pela Comissão no mesmo caso, não obstante invocada. Haveria que dizer o mesmo da prisão como medida (ou meio) de coacção (ou coercitiva) que o Código de Processo Civil de 1939 previa nos casos dos tesoureiros, recebedores e outros depositários de dinheiros ou valores do Estado, quando encontrados em alcance (artigo 418º; excluindo, no confronto com o arresto do artigo 416º, os devedores da Fazenda Pública por efeito de contrato), do depositário de bens penhorados (artigo 854º), do arrematante ou proponente na venda judicial (artigo 904º e 894º, § 2º; sobre casos semelhantes do antigo direito que não se consideraram abrangidos pela abolição da prisão por dívidas de 1774, ver Melo Freire, Institutiones Iuris Civilis Lusitani, 2ª ed., Lisboa, 1795, IV, título 22, § 18 e Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Portuguez, 2ª ed., Coimbra, 1848, I, § 170). Estes casos foram suprimidos pelo Decreto-Lei nº 368/77 de 3 de Setembro, por se considerarem contrários ao artigo 27º da Constituição de 1976, mas certamente por incompatibilidade com a enumeração taxativa do nº 2 do artigo 27º (incompatibilidade contestada por Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção pecuniária compulsória, Coimbra 1987, p.389, que argumenta com o direito comparado), não por serem casos de prisão por dívidas. Quanto à prisão do devedor de alimentos em condições de cumprir a prestação a que está obrigado e que ficava extinta quando se prove estarem pagos os alimentos em dívida, e que não era uma medida de coacção mas uma pena criminal
(já no artigo 1465º do Código de Processo Civil de 1939, como notou Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1944, p.163), em que o pagamento era uma causa de extinção da responsabilidade criminal (ponto não reconhecido, aliás, por Manuel de Andrade), foi mantida pelo artigo 190º do Decreto-Lei nº 314/78 de 27 de Outubro, e, posteriormente, pelo actual artigo
250º do Código Penal, em que o pagamento é apenas possível causa de dispensa da pena ou de extinção da responsabilidade criminal. Estava, portanto, autorizada pelo nº 1 do artigo 27º da Constituição e, por razões distintas das anteriores, não foi justamente considerada um caso de 'prisão por dívidas'. Note-se, ainda, que há consenso interpretativo em que o princípio vale, para lá dos casos de prisão, referidos no artigo 11º do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos e nas fontes antigas portuguesas, para todas as formas de privação de liberdade (Velu, Ergec, ob.cit., p.314; Pettiti et al., ob. cit., 1041, nº 2), e que o qualificativo 'contratual' abrange tanto contratos entre particulares como contratos com entidades públicas (Pettiti et al., ob. cit.,p.1042; Jochen Abr. Frowein, Wolfgang Paukert, Europäische Menschenrechts-Konvention: EMRK-Kommentar, Kehl 2.ed., 1996, p.843). Há, finalmente, que reconhecer que a garantia de que 'ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual', tendo partido historicamente da proibição da prisão por dívidas contratuais como meio de coacção, manteve a relação da proibição com o seu histórico pressuposto, a mera impossibilidade de cumprimento de obrigações contratuais, generalizando todavia o conteúdo da proibição, na medida em que abrange qualquer forma de privação de liberdade com esse pressuposto, seja ou não configurada como meio de coacção. Mas aquela origem histórica explica que sejam casos subsistentes de prisão como meio de coacção que tenham sido questionados perante a Comissão da Convenção Europeia dos Direitos do Homem quanto à sua conformidade com a Convenção. Identificado o princípio constitucional relevante para a questão de constitucionalidade suscitada, ancorado no nº 1 do artigo 27º, desnecessário se torna averiguar da violação de norma idêntica eventualmente contida no direito internacional geral e das questões de violação indirecta da Constituição (nºs 1 e 2 do artigo 8º).
[...] Deve entender-se que as normas penais em questão sobre os vários tipos de crime de emissão de cheque sem cobertura não violam o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e à segurança (artigo 27º, nº 1 da Constituição). Com efeito, não se trata aqui de impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade. A impossibilidade de cumprimento não é elemento dos crimes de emissão de cheque sem cobertura, mas antes o incumprimento na forma de não pagamento integral por falta de provisão ou por irregularidade do saque, causador de prejuízo patrimonial ao tomador ou a terceiro. Além deste resultado, o tipo de crime contém vários outros elementos, que se enumeram adiante e que explicam a especial gravidade do ilícito e, portanto, da culpa, e o especial regime de punibilidade que o caracteriza. Esse conjunto de elementos permitem, como veremos, caracterizar o crime em termos semelhantes a outros que a doutrina atrás citada tem apontado como estando claramente fora da garantia aqui questionada. Não pode ser outra a solução para o crime de emissão de cheque sem provisão. Não se pretende implicar que a questão da constitucionalidade de incriminação do crime de emissão de cheque sem provisão e, menos ainda, de qualquer forma de incumprimento doloso de obrigações contratuais, fique dilucidada. O entendimento tradicional no nosso direito penal é o de que só certas formas de ofensas ao património, que se revestem de especial gravidade pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa, necessitam da intervenção do direito penal, satisfazendo o princípio constitucional da necessidade da pena. Assim, quanto aos crimes contra o património em geral, que têm como resultado o prejuízo, e para só falar dos tipos de crime que historicamente constituíram o seu acervo nuclear, a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coacção na extorsão, a situação de necessidade na usura. Poderá, neste sentido, dizer-se que há ainda uma outra proibição constitucional, da punição pelo mero incumprimento, mesmo doloso, de obrigações contratuais. São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal.».
7 – Ao contrário do que a recorrente defende não é possível sustentar que não haja direito de propriedade sobre coisas móveis fungíveis, de que o dinheiro constitui paradigma, e, consequentemente, que o mesmo pertença a determinada pessoa ou titular. A circunstância de as coisas serem fungíveis não obsta a que possam ser objecto do direito de propriedade. Mesmo a moeda legal, corporizada em um título (fiduciário) formal com valor liberatório legal como meio de pagamento de obrigações de quantidade, pode ser objecto de direito de propriedade, na medida em que o titular do mesmo goza, de modo pleno e exclusivo, em relação a ele de poderes de uso, fruição e disposição.
Anote-se, a este respeito, que o legislador ordinário conformou o tipo legal de crime de abuso de confiança enquanto crime contra o bem jurídico do património e, dentro deste, contra a propriedade, não distinguindo dentre as coisas móveis cuja ilícita apropriação constitui seu elemento constitutivo as fungíveis e as não fungíveis (Livro II, Título II, Capítulo II, do Código Penal).
A fungibilidade dessas coisas móveis apenas releva para efeitos de o respectivo valor poder ser preenchido, a quando da entrega ao titular do direito que o tenha por objecto (proprietário ou não), por outros títulos da mesma natureza.
Como acentua Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, anotação ao artigo 205º, pp. 99),
“tratando-se aqui de objectos que se confundem ou podem confundir no património de quem os recebe, e ainda que seja exacto que o direito de propriedade só pode ter por objecto coisas certas e determinadas, o carácter alheio da coisa nem é, por um lado, em princípio afectado pela sua confusão no património do tomador, nem, por outro lado, tal confusão perfaz sem mais o tipo objectivo do abuso de confiança” e, por outro lado, “o tipo objectivo de ilícito de confiança não será integrado pela mera confusão ou o simples uso de coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos; ao que, é claro, terá de acrescer o dolo correspondente” (A. e op. cit., pp. 104).
Segundo a interpretação que a decisão recorrida fez deste tipo de crime, o abuso de confiança consuma-se com a apropriação que se traduz na inversão do título da posse – a coisa móvel foi entregue ao agente por título não translativo de propriedade, a título de non domini e este passa, em certo momento, a agir com animo domini e a dispor dela animo domini, sendo que, “no caso de coisas móveis fungíveis (como o dinheiro) a mera confusão ou o simples uso são insuficientes para integrar o elemento objectivo da apropriação” que advirá “mais tarde, pela disposição da coisa de forma justificada ou pela sua não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos, ao que terá que acrescer o correspondente dolo”. Determinante para que se verifique a consumação do crime é, pois, no caso de se tratar de dinheiro, que o agente se aproprie, passe a agir e a dispor animo domini do valor imputado legalmente a certa moeda que lhe foi entregue por título não translativo da propriedade ou seja, a título de não ficar dono dele, sendo irrelevante que os actos de disposição desse valor aconteçam mediante utilização de outros títulos da mesma natureza (outras moedas ou notas com curso legal) ou até de títulos de crédito de mobilização do respectivo valor (caso dos cheques cujo pagamento é descontado), até porque, também, a restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos poderá ser feita igualmente mediante a entrega de outros títulos da mesma natureza.
Como escreve Figueiredo Dias (op. Cit. pág. 97), a essa apropriação
«acresce no (nosso) abuso de confiança [por contraste com a essência típica do crime de Unterschlagung do Código Penal alemão, a que o Autor se refere] um elemento novo, a saber, a relação de fidúcia que intercede entre o agente e o proprietário ou entre o agente e a própria coisa e que aquele viola com o crime. Neste sentido pode e deve dizer-se – com a consciência das relevantíssimas consequências dogmáticas que a afirmação importa – que o abuso de confiança é um delito especial, concretamente na forma de delito de dever, pelo que autor só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança que o liga ao proprietário da coisa recebida por título não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de restituição. Característica esta que, de resto, só acentua a “personalização” dos bens jurídicos de natureza patrimonial que foi justamente a intenção da reforma de
1995».
Por outro lado, este Autor acentua ainda que “o dolo é necessário relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, tratando-se pois de crime de congruência total” (A. e op. cit., pp. 107).
Quando o agente actua, como aconteceu no caso dos autos, na qualidade de trabalhador e comissário de certa entidade patronal e no exercício das suas funções recebe certas quantias fungíveis em dinheiro para serem entregues a essa entidade patronal ou para as integrar no património social, é evidente que essas coisas lhe são entregues por título não translativo de propriedade ou a título de simples detenção fundada em “uma relação de fidúcia” entre ele e o proprietário desse dinheiro. Ao apropriar-se do valor respectivo, não lhes dando aquele destino, ainda que mediante a utilização de outros títulos da mesma natureza (de outras moedas ou notas com curso legal ou títulos de valor equivalente), o agente ao mesmo tempo que procede a uma inversão ilícita do título de posse de tais quantias fungíveis quebra aquela “relação de fidúcia”, passando a ser criminalmente censurável se agindo com dolo.
A inversão do título de posse não tem como objecto, ao contrário do que a recorrente pressupõe, uma obrigação de natureza contratual, mas sim um valor corporizado em título(s) com valor liberatório legal, sendo indiferente a essa inversão que ela incida sobre outros títulos conquanto do mesmo valor liberatório legal e a “restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos” ou a entrega à pessoa a quem os mesmos se destinam não aconteça mediante a utilização de outros concretos títulos do mesmo valor liberatório legal, por em todas essas situações se verificar aquela violação da “relação de fidúcia”.
De obrigação contratual apenas será pertinente falar relativamente à obrigação de o agente ter dar certo destino às quantias “fungíveis” em dinheiro: no caso, de entregar à sua entidade patronal ou integrar no seu património social essas quantias. Mas já não relativamente ao elemento objectivo do tipo, de natureza ética, consubstanciado na “relação de fidúcia” em cuja existência se fundamenta a entrega ao autor das quantias em dinheiro e ao elemento subjectivo do animus de este passar a agir uti dominus relativamente a uma coisa que recebera apenas uti alieno.
Mas ainda que se veja a questão desta perspectiva não se poderá considerar a criminalização dessa obrigação como constitucionalmente ilegítima, por equivalente a uma “privação de liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual”. Na verdade, repetindo o afirmado no acórdão n.º 663/98, já atrás reproduzido, “a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual”.
Ora, relativamente a esta matéria, cumpre notar que a impossibilidade do cumprimento dessa obrigação contratual não é elemento do tipo de crime de abuso de confiança, pois o que releva é a apropriação, consequente da quebra da relação de fidúcia, da quantia “fungível” em dinheiro e tudo isso agindo com dolo, ou seja, a ofensa feita a essa relação de fidúcia construída em torno da protecção dispensada eticamente ao direito de propriedade da quantia em dinheiro por parte de quem a tem em seu poder em consequência de acto não translativo de propriedade.
Por fim, num Estado de direito, social e democrático, que assume como princípio material a tutela da confiança e da boa fé, vinculando, conquanto em diferentes dimensões, tanto o legislador como os cidadãos, e o respeito pelos direitos reconhecidos pela ordem jurídica, entre os quais se conta até como direito análogo a direito fundamental o direito de propriedade, não se afigura que a solução do legislador de colocar sob a protecção do direito penal aquela apropriação de coisas móveis, ainda que fungíveis – efectuada com quebra da relação pessoal de confiança que levou a que as mesmas fossem entregues ao agente por título não translativo de propriedade (no caso, por o recebimento dessas quantias se enquadrar em certo desempenho profissional confiado ao agente por conta da entidade patronal a quem elas passaram a pertencer e a quem deviam ser entregues ou integradas no seu património) e de que este se apropria, ilegítima e dolosamente - corresponda a qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva, susceptível de constituir violação do art.º 18º, n.º
2, da Constituição.
É evidente, numa tal situação, a existência de uma censurabilidade social justificativa da eleição de tal comportamento como integrante de um crime.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 205º, n.º 1, do Código Penal na interpretação segundo a qual se abrangem na sua previsão quantias em dinheiro de que o trabalhador/comissário é mero detentor por serem destinadas ao património social da entidade patronal/comitente;
b) negar provimento ao recurso;
c) condenar a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 4 de Novembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos