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Processo n.º 899/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 347 e seguintes, foi proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e mulher, B., com os seguintes fundamentos:
“[...] Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto processual a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Nos termos do artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei, considera-se que tal pressuposto só se encontra preenchido se o recorrente tiver suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Sucede que, contrariamente ao afirmado pelos recorrentes no requerimento de interposição do presente recurso (supra, 6.), a questão de inconstitucionalidade normativa que ora pretendem ver apreciada não foi suscitada nas alegações do recurso de apelação. Nestas alegações, e conforme decorre das transcrições acima efectuadas (supra,
3.), apenas foi sustentada a inconstitucionalidade da «fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo», a violação, por parte da sentença então recorrida, do artigo 44º da Constituição e, bem assim, a violação, pelo «entendimento do Tribunal a quo, não especificamente em relação à localidade da Parede, mas de um modo genérico abrangendo, em teoria, o mundo inteiro», do artigo 44º da Constituição. Em suma: nessas alegações de apelação não foi imputada qualquer inconstitucionalidade às normas dos artigos 69º, n.º 1, alínea a), e 71º, n.º 1, do RAU, na interpretação agora identificada pelos recorrentes. Só no momento da arguição da nulidade do acórdão ora recorrido foi colocada a questão da inconstitucionalidade dessas normas, nessa interpretação, tendo os recorrentes simultaneamente sustentado que, nesse acórdão, indevidamente não se conhecera de tal questão (supra, 5.). Todavia, esse momento era já tardio, pois que, nos termos do artigo 666º do Código de Processo Civil, já se havia extinguido o poder jurisdicional do tribunal recorrido quanto à matéria da causa, não lhe sendo consequentemente possível conhecer de tal questão de inconstitucionalidade normativa. Não tendo os recorrentes cumprido o ónus a que aludem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, conclui-se que não se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso. Como tal, e sem necessidade de analisar a verificação dos restantes pressupostos processuais, não é possível conhecer do respectivo objecto.
[...].”.
2. Notificados dessa decisão, A. e mulher vieram reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal
(requerimento de fls. 362 e seguintes e 368 e seguintes), invocando, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
5. Na interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, que delimita o seu objecto, os recorrentes afirmaram pretender «(...) ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 69°, n.° 1, alínea a), e 71°, n.°
1, ambos do Regime do Arrendamento Urbano, tendo em conta que a interpretação feita pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa do conceito de ‘necessidade de habitação’ previsto nos artigos acima identificados, sem ser por referência à localidade onde os ora recorrentes pretendem viver – Parede – é violadora do artigo 44° da Constituição da República Portuguesa».
6. O que significa que o que se reputou inconstitucional, por contradição com o artigo 44° da Constituição da República Portuguesa, foi a interpretação do conceito de «necessidade de habitação» previsto nos artigos 69°, n.° 1, alínea a), e 71°, n.° 1, ambos do Regime do Arrendamento Urbano (doravante designado RAU).
7. O Tribunal a quo, ao aplicar os artigos 69°, n.º 1, alínea a), e 71°, n.º 1, do RAU, interpretou o conceito de «necessidade de habitação» sem ser por referência à localidade onde está situado o prédio objecto do contrato de arrendamento que os recorrentes pretendem denunciar para habitação. 8. Esta interpretação demasiado ampla alargou a apreciação da verificação daquele requisito em termos abstractos, a todo o território nacional, e não apenas ao prédio alvo do contrato e à localidade onde este se encontra.
9. Tal interpretação do Tribunal a quo contraria, não só a letra dos artigos supra referidos do RAU, mas também o artigo 44° da Constituição da República Portuguesa, que estabelece o direito à emigração, assim como o direito ao regresso ao território nacional.
10. A interpretação que deveria ter sido feita daquele requisito, para estar dentro dos limites constitucionais, teria consistido na apreciação da necessidade da habitação daquele prédio em apreço, inserido numa determinada localidade, pelos senhorios, ora recorrentes.
11. No entanto, o Tribunal a quo aferiu da necessidade de habitação em relação a todo o território nacional, a toda e qualquer hipótese de habitação.
12. Logicamente, tal interpretação, inconstitucional, não fez prevalecer o direito dos recorrentes, tendo-lhes limitado fortemente o seu direito a regressar ao país.
13. Ora, esta interpretação inconstitucional do conceito de «necessidade de habitação» definido pelos artigos 69°, n.º 1, alínea a), e 71º, n.º 1, do RAU foi suscitada nas alegações do recurso de apelação consideradas como um todo.
14. E designadamente quando se afirma que «A fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo apresenta laivos de inconstitucionalidade (...)».
15. Obviamente, referindo-se os recorrentes à fundamentação utilizada, pelo Tribunal a quo, a propósito do conceito de necessidade de habitação decorrente dos artigos 69°, n.º 1, alínea a), e 71°, n.º 1, do RAU.
16. Também nas conclusões das alegações do recurso de apelação foi directamente suscitada esta questão, nomeadamente nos seguintes momentos:
«a) Inconformados com esta decisão, vêm os Apelantes recorrer da matéria de direito, pois na sentença recorrida foram incorrectamente aplicadas as normas constantes dos artigos 69°, n.° 1, alínea a), e 71°, n.° 1, alíneas a) e b), ambos do RAU (alínea a) das conclusões). b) O entendimento do Tribunal a quo, não especificamente em relação à localidade da Parede, mas de um modo genérico abrangendo, em teoria, o mundo inteiro, é violador do artigo 44° da Constituição da República Portuguesa (alínea v) das conclusões). c) Ao não entender a necessidade de habitação, respeitando o critério da localidade onde se situa o locado que se pretende despejar, previsto no artigo
71°, n.° 1, do RAU, o Tribunal a quo está a pretender interferir na escolha do local onde os Apelantes deverão viver (alínea w) das conclusões). d) O que é de todo inadmissível e ilegal (alínea x) das conclusões).
17. E menos se entende a decisão de que aqui se reclama quando afirma que a questão da inconstitucionalidade normativa não foi suscitada nas alegações do recurso de apelação,
18. mas foi suscitada no momento da arguição da nulidade do acórdão da Relação de Lisboa.
19. Ora, o requerimento de arguição de nulidade contém exactamente o mesmo raciocínio das alegações do recurso de apelação.
[...]
21. Pelo que, com o devido respeito, não entendem os recorrentes como pode entender-se que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada nas alegações do recurso de apelação, mas foi suscitada na arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
[...].”.
3. A recorrida C. respondeu nestes termos à reclamação apresentada (fls.
374):
“[...] A lei constitucional é clara: o artigo 70º, n.º 1 refere que no recurso interposto pelos recorrentes com base na alínea b) do referido preceito legal, a inconstitucionalidade de uma norma deve ser suscitada durante o processo e não o foi. Isso é inquestionável e incontornável. Os recorrentes vêm tentar fazer agora aquilo que deviam ter feito em sede de processo anterior – o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Com o devido respeito, estão a fazê-lo extemporaneamente tentando tornear a Lei de Processo do Tribunal Constitucional sem qualquer razão porque, sem dúvida, a mesma não foi respeitada, pelo que não pode o recurso ser aceite por esse douto Tribunal. Nestes termos, deve a reclamação apresentada ser indeferida por falta de fundamento legal.
[...].”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Através do presente recurso para o Tribunal Constitucional, os ora reclamantes pretendem “ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 69°, n.° 1, alínea a), e 71°, n.° 1, ambos do Regime do Arrendamento Urbano, tendo em conta que a interpretação feita pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa do conceito de «necessidade de habitação» previsto nos artigos acima identificados, sem ser por referência à localidade onde os ora recorrentes pretendem viver – Parede – é violadora do artigo 44° da Constituição da República Portuguesa”.
Na decisão reclamada, entendeu-se que “a questão de inconstitucionalidade normativa que ora pretendem ver apreciada não foi suscitada nas alegações do recurso de apelação” e, consequentemente, “que não se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso”. Como tal, e sem necessidade de analisar a verificação dos restantes pressupostos processuais, concluiu-se não ser possível conhecer do respectivo objecto e proferiu-se decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da LTC, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
5. Na reclamação agora deduzida, os reclamantes começam por sustentar que suscitaram a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado (cfr., designadamente, n.ºs 5 a 16 do requerimento apresentado, transcrito supra, 2.).
Criticam depois a decisão sumária reclamada na parte em que se considerou que “só no momento da arguição da nulidade do acórdão ora recorrido foi colocada a questão da inconstitucionalidade dessas normas, nessa interpretação, tendo os recorrentes simultaneamente sustentado que, nesse acórdão, indevidamente não se conhecera de tal questão” (cfr., designadamente, n.ºs 17 a 21 do mesmo requerimento).
6. A reclamação apresentada apenas vem confirmar o bem fundado da decisão sumária proferida nos autos.
Com efeito, nas alegações apresentadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa, e conforme decorre das transcrições agora seleccionadas pelos próprios reclamantes, apenas se sustentou: que “a fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo apresenta laivos de inconstitucionalidade, ao pretender coarctar o exercício de direitos consagrados e tutelados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito de deslocação, estabelecido no artigo 44°, n.° 1”; que a sentença então recorrida violou o artigo 44º da Constituição; que o “entendimento do Tribunal a quo, não especificamente em relação à localidade da Parede, mas de um modo genérico abrangendo, em teoria, o mundo inteiro”, violou o artigo 44º da Constituição.
Nessas alegações de apelação não foi imputada qualquer inconstitucionalidade às normas dos artigos 69º, n.º 1, alínea a), e 71º, n.º 1, do RAU, na interpretação agora identificada pelos reclamantes; os reclamantes imputaram directamente a inconstitucionalidade à própria decisão recorrida.
Os reclamantes alegaram igualmente – e repetem na reclamação – que
“foram incorrectamente aplicadas as normas constantes dos artigos 69°, n.° 1, alínea a), e 71°, n.° 1, ambos do RAU”.
Ora, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, no âmbito dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar a boa ou má aplicação do direito infra-constitucional ao caso concreto, nem para aferir se essa aplicação do direito infra-constitucional consubstancia uma decisão judicial desconforme com a Constituição.
7. Para demonstrar que suscitaram a questão de inconstitucionalidade
“durante o processo”, os reclamantes reproduzem, na reclamação, um parágrafo do requerimento através do qual arguiram a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. n.º 20 do requerimento), e transcrevem o enunciado do objecto do recurso, tal como consta do requerimento de interposição do recurso (cfr. n.º 5 do requerimento).
Independentemente de saber se, nessas duas peças processuais, os ora reclamantes identificaram uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa relativamente às normas constantes dos artigos 69º, n.º 1, alínea a), e 71º, n.º 1, do RAU, certo é que não se tratava já de momento adequado para considerar cumprido o ónus de invocação da inconstitucionalidade “durante o processo”, como é exigido pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos