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Processo n.º 616/04
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 1324, foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. e B., na qualidade, respectivamente, de assistente e demandante cível, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 5 de Fevereiro de 2003 do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 1142 e seguintes, acórdão que, concedendo provimento parcial ao recurso do arguido C., o condenou pela prática de um crime de homicídio, previsto no artigo 131º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução suspendeu pelo período de 4 anos, ao abrigo do disposto nos artigos 50º e 73º do Código Penal, bem como a pagar aos recorrentes a quantia global de 73.895 euros, a título de indemnização.
Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2004, constante de fls. 1274 e seguintes, foi rejeitado o recurso do demandante cível B. e da assistente A., “de acordo com o disposto nos artigos 401º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 414º, n.º 2, e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal”.
Para o que agora interessa, o Supremo Tribunal de Justiça fundamentou tal decisão nos seguintes termos:
“Quanto ao recurso do demandante cível B.:
Como refere a Exma Procuradora-Geral, este demandante ‘não tem legitimidade para recorrer em matéria penal visando apenas a condenação do arguido C. por autoria de um crime de homicídio simples sem atenuação especial da pena, pois, nos termos do disposto no n.º 1, alínea a), [c)] do art. 401º, as partes civis só podem recorrer da parte das decisões contra cada uma proferidas’.
No caso, o recorrente não autonomiza, nem fundamenta questão de natureza cível, limitando-se a co-participar e a aderir ao recurso da assistente.
(...)
Recurso da assistente A.:
A assistente pretende que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie sobre matéria de facto, invocando vícios previstos no n.º 2 do art.
410º do Código de Processo Penal.
Como é, porém, jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal, não lhe cabe reapreciar as questões de facto devido à sua natureza de tribunal de revista, quando já foi exercido efectivamente um duplo grau de jurisdição quanto a tal matéria pelo tribunal da relação. Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça estão fixados no disposto no artigo 434º, relativamente aos recursos a que se refere o artigo 432º nas alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal, e estando as questões de facto relativamente resolvidas pelo tribunal da Relação, a sua invocação escapa aos poderes de cognição do STJ, definidos na lei de processo.
No que se refere à questão de direito que suscita no recurso, a assistente pretende que a pena por autoria do crime de homicídio simples a aplicar ao arguido não seja, como foi, especialmente atenuada.
Está, pois, a ser apenas discutida a medida da pena aplicada por efeito da especial atenuação.
Porém, como foi decidido no assento 8/99, do STJ, publicado no
‘Diário da República, I série A, de 10 de Agosto, ‘o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente
à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir’.
Ora, como refere a Exma Procuradora-Geral, ‘a assistente apenas aderiu à acusação deduzida pelo MºPº, e em sede de recurso do acórdão final apenas pode recorrer relativamente a decisões contra ela proferidas (art. 401, n.º 1, alínea b), do CPP), pois o seu direito de o fazer pressupõe a existência de interesse em agir e de legitimidade.
A alteração e fundamentação para uma pena mais grave não pode representar uma satisfação ou até a consideração dos seus interesses privados de vítima, pois a medida da pena não constitui uma alteração à posição processual assumida pela assistente, pois o arguido continuou a ser condenado e o MºPº não recorreu’.
(...) o objecto do recurso reconduz-se, apenas e só, à determinação da medida da pena.
Mas, sendo assim, a decisão que fixou a medida da pena aplicada ao arguido não foi proferida contra a assistente, nem esta, de qualquer modo, invoca um concreto e próprio interesse em agir”.
Inconformados, os recorrentes vieram, “nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 716º e 732º, ambos do Código de Processo Civil ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal, reclamar para a conferência”, e invocaram ainda a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, “nos termos das disposições conjugadas dos artigos 419º, n.º 1, e 420º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal”, alegando que o mencionado acórdão “apenas está assinado por
3 Juízes Conselheiros, quando a lei processual penal exige a intervenção de 4 Juízes Conselheiros, a saber: o Presidente da Secção, o Relator e dois Juízes Adjuntos”.
Por acórdão de 28 de Abril de 2004, constante de fls. 1309, o Supremo Tribunal de Justiça desatendeu a arguição e indeferiu a reclamação, afirmando, designadamente, o seguinte:
“A arguição e a reclamação apresentadas não têm objecto.
A decisão consubstanciada no acórdão de 3 de Fevereiro de 2004 foi tomada em conferência, como dispõe o artigo 419º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal – caso de rejeição de recurso, e na conferência intervieram todos os juízes que a lei determina – artigo 419º, n.º 1, do CPP (cfr. acta de fls.
1278), tendo sido tomada por unanimidade (não tem declaração ou voto de vencido), nos termos definidos pelo sistema de decisão inscrito na lei (artigo
419º, n.º 2, do CPP).
A arguição e a reclamação, nos termos em que se apresenta, constitui uma intervenção anómala e baseada em motivação directamente contra legem.
É, assim, manifestamente improcedente.”
2. Ainda inconformados, os recorrentes “tendo sido notificados do acórdão final proferido que rejeitou o recurso por ambos interposto, bem como da decisão que indeferiu a reclamação para a conferência”, vieram “ao abrigo do disposto nos arts. 70º, 75º e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, com a actual redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro) do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional”.
No seu requerimento de interposição de recurso, afirmam os recorrentes o seguinte:
“1. O presente recurso visa a fiscalização concreta da constitucionalidade dos artigos 401º, n.º 1, alíneas b) e c) e 434º do Código de Processo Penal.
...
4. A inconstitucionalidade foi suscitada oportunamente, na Reclamação para a Conferência, já tendo sido igualmente prevenida aquando da apresentação da resposta ao parecer emitido pela Digna Procuradora-Geral Adjunta, junto do Supremo Tribunal de Justiça.
5. Os recorrentes pretendem ver apreciada a constitucionalidade dos normativos
ínsitos no art. 401º, n.º 1, als. b) e c), e no art. 434º, ambos do Código de Processo Penal na interpretação que lhes é dada pelo Tribunal a quo, nomeada e concretamente, na parte em que recusou o conhecimento do recurso interposto, considerando que o demandante cível não tem legitimidade para recorrer e que a Assistente, por seu turno, não tem legitimidade nem interesse em agir para interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O acórdão recorrido violou o artigo 434º do CPC, por ter recusado a apreciação do recurso nos termos da ‘revista ampliada’ por remissão do referido preceito para o artigo 410º, n.º 2, do CPP, tomando os vícios que resultam da decisão recorrida como se de impugnação de matéria de facto se tratasse. Finalmente violou o artigo 401º, n.º 1, alínea b) por ter entendido que a Assistente não poderia recorrer desacompanhada do Ministério Público, porquanto
é manifesto que a lei reconhece a ambos os sujeitos a legitimidade para interpor recurso e ser patente que a Assistente não pretende apenas recorrer da medida da pena (o que fez só residualmente). A valer a interpretação consagrada no Acórdão recorrido o Assistente nunca terá, na verdade, legitimidade para recorrer, não obstante o preceituado no artigo
401º, n.º 1, alínea b), do CPP.
6. Tal interpretação viola a Lei Fundamental, porque coarcta e limita, de forma ilegal e constitucionalmente inadmissível, o direito do ofendido (no caso a Assistente e também o Demandante Cível) de intervir no processo, concretamente, do direito ao recurso, nos termos dos artigos 32º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o artigo 401º, n.º 1, alínea b) e c), e
432º, alínea b), do Código de Processo Penal, sobretudo considerando que não há norma processual que vede o recurso do Assistente para o Supremo Tribunal de Justiça e o instituto da legítima defesa conformar ‘matéria de direito’.
7. A interpretação acolhida no acórdão recorrido viola portanto os normativos constantes dos artigos 13º, 18º, 20º, 32º, n.º 7, e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o regime preceituado na lei processual penal, designadamente nos mencionados artigos 401º, n.º 1, alíneas b) e c) e 434º do Código de Processo Penal.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do presente recurso, pelas razões que a seguir se apontam. Com efeito, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de exemplo, os Acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário e que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os Acórdãos nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
4. Ora, como os próprios recorrentes afirmam, as questões de constitucionalidade que pretendem submeter à apreciação deste Tribunal foram invocadas na por eles designada “Reclamação para Conferência”. Simplesmente, tal “Reclamação para a Conferência”, qualificada pelo Supremo Tribunal de Justiça de “intervenção anómala e baseada em motivação directamente contra legem”, não era, por essa mesma razão, apta a colocar aquele tribunal na situação de estar obrigado a conhecer das aludidas questões.
Para além disso, dizem ainda os recorrentes que as inconstitucionalidades por eles invocadas já haviam sido prevenidas “aquando da apresentação da resposta ao parecer emitido pela Digna Procuradora-Geral Adjunta, junto do Supremo Tribunal de Justiça”. Simplesmente, como se retira do teor de tal resposta, não é aí invocada qualquer questão de constitucionalidade normativa, limitando-se os recorrentes a afirmar que “a interpretação acolhida no parecer” mencionado se encontra “ferida de inconstitucionalidade, por violação dos mais elementares direitos da igualdade e da defesa, em que se corporiza o direito ao recurso, plasmados nos artigos 13º e 32º da Lei Fundamental, inconstitucionalidade essa que desde já se invoca para todos os efeitos legais”, sem se esclarecer minimamente a que concretas normas, entre aquelas que são citadas no parecer ou na resposta em causa, se referiria tal interpretação.
Não foi, portanto, suscitada “durante o processo” a inconstitucionalidade de nenhuma das normas contidas nos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso; e, não ocorrendo razão alguma para que os recorrentes se considerem dispensados do ónus correspondente, não estão preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer do recurso.
5. Acresce ainda que os recorrentes afirmam no seu requerimento de interposição de recurso, em síntese, que “a interpretação acolhida no acórdão recorrido viola portanto os normativos constantes dos artigos 13º, 18º, 20º,
32º, n.º 7, e 204º todos da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o regime preceituado na lei processual penal, designadamente nos mencionados artigos 401º, n.º 1, alíneas b) e c) e 434º do Código de Processo Penal”. Não definem, como se verifica da leitura do mesmo, nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, antes acusam a decisão de que recorrem de inconstitucionalidade e de ilegalidade, tomando como parâmetros normas da Constituição e do Código de Processo Penal.
Ora, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, como atrás se disse, destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, e não das próprias decisões.
6. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Assim, decide-se não tomar conhecer do objecto do recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. por cada recorrente, independentemente do apoio judiciário que houver sido concedido.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária. Notificado para responder, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido do indeferimento da reclamação, por manifesta falta de pressupostos de admissibilidade do recurso.
3. Os ora reclamantes sustentam, em primeiro lugar, não ser exacto que não tenham suscitado a questão que pretendem ver apreciada “durante o processo”, concretizando que o fizeram na já referida reposta ao parecer apresentado pelo Ministério Público.
Não indicam, todavia, nenhuma norma cuja constitucionalidade tenha sido questionada nesta resposta. Assim, nada há a acrescentar ao que o tribunal disse sobre este ponto na decisão reclamada. Apenas se repete que o sentido deste pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade é o de obter uma decisão do tribunal a quo, o que implica que a questão seja suscitada de forma a que este tenha a obrigação de a julgar (artigo 72º, n.º 2, da Lei nº
28/82, apontado na decisão reclamada).
4. Em segundo lugar, consideram que não é exacto que não tenham colocado ao Tribunal Constitucional questões de inconstitucionalidade normativa, apenas acusando a decisão recorrida de ser, ela mesma, inconstitucional. E apontam, para o efeito, em especial, os n.ºs 5 e 6 do requerimento de interposição de recurso (transcritos na decisão reclamada).
Ora da leitura desses pontos resulta claramente o que se afirma na decisão reclamada, isto é, que os reclamantes em parte alguma do requerimento de interposição de recurso apontam a inconstitucionalidade a uma qualquer interpretação de uma qualquer norma legal. Note-se, aliás, que nenhuma demonstração em contrário se faz na reclamação, onde se volta a repetir que a
“interpretação normativa acolhida no acórdão dos arts. 401º, n.º 1, als. b) e c) e 432º, al. b) do Código de Processo Penal (...) viola de forma flagrante o disposto” nos preceitos constitucionais que cita.
Nada há também aqui que acrescentar à decisão reclamada.
5. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs. por cada reclamante, independentemente do apoio judiciário que tenha sido concedido.
Lisboa, 14 de Outubro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Rui Manuel Moura Ramos