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Processo n.º 807/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
A - O Relatório
1 - Nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art.
70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Julho de 2004, que lhe indeferiu o pedido de habeas corpus que apresentou, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 215º, n.º 1, 217º, 222º, n.º 2, alínea c) e
226º, n.º 6, todos do Código de Processo Penal (CPP), «quando interpretados no sentido de que, caso a acusação seja deduzida, ainda que não notificada ao peticionante, da providência de habeas corpus, e apesar de decorrido o prazo máximo de prisão preventiva previsto no n.º 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, é de indeferir por manifestamente infundada, dando a mesma lugar
à manutenção do arguido na situação de preso preventivo e à condenação do peticionante no pagamento de sete Ucs, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo
223º do supra citado diploma legal», por violação dos artigos 27º, n.º 1, 28º, n.º 4, 30º e 31º e 32º, n.º 2, in fine, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2 – No seu requerimento de interposição de recurso, o requerente alega, relativamente à falta de suscitação da inconstitucionalidade das normas objecto do recurso, o seguinte:
«No dia em que se completou o ano de prisão, sem que tivesse sido deduzida ou notificada a acusação, o aqui recorrente deu entrada de petição de Habeas Corpus, atento o disposto no artigo (quis dizer-se n.º) n.º 3 do artigo 215º e do artigo 22º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, termos em que ao abrigo do disposto no n.º 1 do mesmo artigo, deveria ser decretada a imediata restituição do arguido, aqui recorrente, à liberdade.
Não havia sido até ao momento (refere-se o recorrente ao momento de prolação do acórdão do STJ recorrido) invocada qualquer inconstitucionalidade normativa, surgindo a mesma agora em virtude de o Supremo Tribunal de Justiça ter aplicado uma norma em sentido verdadeiramente surpreendente para o aqui recorrente.
Tendo por base uma surpreendente e inesperada interpretação do Supremo Tribunal de Justiça dos artigos 215º, n.º 3, 222º, n.º 2, alínea c) e 223º, n.º
6, todos do Código de Processo Penal, é tempestiva a apresentação pelo Recorrente da invocada questão de inconstitucionalidade”.
3 – O acórdão do STJ, recorrido, é do seguinte teor:
«I - A., de nacionalidade espanhola, arguido em prisão preventiva nos autos de Inquérito n.º 3/03.3FCLGS a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lagos e aí melhor identificado, vem requerer providência de HABEAS CORPUS nos seguintes termos:
1. O arguido foi detido no passado dia 24 de Junho de 2003, ficando privado de liberdade.
2. Por despacho de 24 de Setembro de 2003, foi a referida medida de coacção mantida, o mesmo acontecendo por despacho de 18 de Dezembro do mesmo ano.
3. Por despacho datado de 12 de Fevereiro de 2004, a M.ª Juiz de Instrução consignou que o prazo máximo de duração da prisão preventiva é o prazo estabelecido no n.º 3 do art. 215° do Código de Processo Penal.
4. Por despacho de 16 de Março do corrente ano foi decidida a manutenção da prisão preventiva, o mesmo se verificando através do despacho de 15 do corrente mês e ano.
5. Ora, decorrido que está um ano, não foi ainda deduzida acusação.
6. O arguido está indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do disposto no art. 21° do Dec. Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa ao mesmo diploma, sendo o prazo máximo de duração da prisão preventiva de doze meses.
7. Tal prazo foi já ultrapassado, estando o arguido preso ilegalmente.
8. Os prazos referidos no n.º 3 do art. 215° do CPP são prazos máximos e não de referência.
9. Assim, por ultrapassado o prazo de duração máxima, a prisão preventiva extingue-se (art. 217° do CPP).
10. Verificam-se, pois, os requisitos para a procedência da presente petição, atento o disposto no n.º 3 do art. 215° e do art. 222°, n.°
2, al. c) do CPP, termos em que, ao abrigo do disposto no n.º 1 deste mesmo artigo, deverá a presente petição ser deferida e decretada a imediata restituição do arguido à liberdade. II – A Ex.ma Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão prestou a informação a que alude o artigo 223°, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:
- o requerente da providência de habeas corpus, A., encontra-se na situação de prisão preventiva, desde 24 de Junho de 2003.
- Por despacho de 11 de Fevereiro de 2004, a M.ª Juiz de Instrução considerou aplicável, nestes autos, no que concerne à duração máxima da prisão preventiva, os prazos a que alude o art. 215°, n.º 3, do CPP.
- Foi já formulada acusação contra o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no art. 21°, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma. III – Obtidos os vistos dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos, procedeu-se à audiência de julgamento dentro do prazo respectivo e com observância do formalismo legal.
Cumpre decidir. Tudo visto e ponderado, pode dar-se por assente:
1. Que o peticionante se encontra na situação de preso preventivamente desde
24 de Junho de 2003, medida de coacção aplicada por despacho judicial, na sequência da suspeita de prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art. 21°, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
2. Foi já deduzida acusação do arguido, que se mostra pronunciado pela prática, juntamente com outros arguidos, do crime de tráfico de estupefacientes acima referido. IV – Incluída no Capítulo dos 'Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais', a providência de habeas corpus tem dignidade constitucional, e dirige-se contra 'o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal' - art. 31°, n.º 1 , da CRP. Especificando o modo como tal direito deve ser exercitado, afirma-se no art.
222° do C. P. Penal (n.º 2) que a providência há-de fundar-se em ilegalidade da prisão pelo facto de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial'. O peticionante entende que a prisão preventiva se mantém para além dos prazos previstos na lei, com o argumento de que não foi deduzida acusação dentro de um ano, tal como previsto no art. 215° do CPP. Muito recentemente - Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2004, publicado no DR n.º 79, Série I-A, de 2 de Abril – este Supremo Tribunal de Justiça decidiu que 'Quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no n.º 1 do art. 54° do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a elevação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva nos termos do n.º 3 do art. 215° do Código de Processo Penal decorre directamente do disposto no n.º 3 daquele art. 54°, sem necessidade de verificação e declaração judicial da excepcional complexidade do procedimento'. Entendeu-se, assim, que a aplicação do disposto no art. 215° n.º 3 do C.P.P. é automática, não carecendo de despacho judicial a declarar de especial complexidade os processos por ele abrangidos. Mesmo assim, no caso sub judice, tal complexidade foi declarada pela M.ª Juiz de Instrução, sob promoção do Ministério Público, conforme se vê do despacho de fls. 22 da presente petição, junta por fotocópia, datado de 11 de Fevereiro de
2004. Como se sabe e resulta da lei, a doutrina dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência é para seguir, enquanto se mantiverem as razões que levaram à uniformização efectuada. De momento, não se nos afigura que tenha havido alteração das circunstâncias e das razões que levaram este Supremo Tribunal a tomar a posição referida no dito Acórdão Uniformizador. Daí que, sendo automática a aplicação do disposto no art. 215°, n.º 3 do CPP relativamente aos crimes a que se reporta o n.º 1 do art. 54° do Dec. Lei n.º
15/93, entre os quais se inclui o crime por tráfico de estupefacientes, em obediência ao dito acórdão, se entenda que não está ultrapassado o prazo de prisão preventiva em que o peticionante se encontra, razão pela qual o pedido de habeas corpus tem de ser indeferido.
Razões que possam existir para uma eventual alteração da medida de coacção aplicada no tribunal a quo ao peticionante, não cabem dentro da providência de habeas corpus, cujas finalidades se deixaram supra expostas. Não há violação de qualquer normativo constitucional que obrigue a proceder à libertação imediata do arguido peticionante, pelo que a petição de habeas corpus ora requerida é manifestamente infundada. V - Em conformidade com o anteriormente exposto, acordam os Juizes Conselheiros da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado por A., por manifesta falta de fundamento legal. Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) Ucs. Condena-se, ainda, o peticionante no pagamento de 7 (sete) UCs por a petição de habeas corpus ser manifestamente infundada - art. 223°, n.º 6, do CPP.».
4 – O recurso de constitucionalidade foi admitido pelo tribunal a quo. O despacho que o admitiu não vincula, porém, o Tribunal Constitucional, como decorre do estipulado no n.º 3 do art. 76º, da LTC. E por a situação se enquadrar na hipótese delineada na primeira parte do n.º 1 do art. 78º-A da LTC passa a decidir-se.
5 – O recorrente recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Estabelecem os artigos 280º, n.º 1, al. b), da CRP, e 70º, n.º 1, al. b), da LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, constituem pressupostos específicos do recurso interposto ao abrigo destes preceitos que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie tenha constituído a ratio decidendi da decisão ou seja, que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido, e que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada em tempo e de modo funcionalmente adequado para que o tribunal recorrido pudesse conhecer dela. A exigência daquele requisito encontra a sua razão de ser na própria natureza da função jurisdicional (aqui constitucional), dado que lhe cumpre apenas conhecer e decidir de controvérsias concretas e não de situações apenas académicas: se a norma cuja validade constitucional se questiona não serviu de fundamento à decisão, nunca a pronúncia sobre a sua eventual inconstitucionalidade poderia ter quaisquer reflexos jurídicos sobre a decisão, permanecendo-lhe estranha. Já relativamente ao ónus de suscitação, a questão tem que vem com o sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade das normas que a nossa Lei Fundamental adoptou, de controlo difuso por via do recurso. Como nota Cardoso da Costa (A jurisdição constitucional em Portugal, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss.), «quanto ao controlo concreto – ao controlo incidental da constitucionalidade (…), no decurso de um processo judicial, de uma norma nele aplicável – não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores (…), segundo o qual todos os tribunais podem e devem, não só verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo, como recusar a aplicação das que considerarem inconstitucionais
(…). Este allgemeinen richterlichen Prüfungs - und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente permanece fiel ao princípio, tradicional e característico do direito constitucional português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…). Quando, porém, se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é ainda necessário que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…). Compreende-se, na verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum (depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero expediente processual dilatório)». Torna-se, pois, necessário que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. A suscitação durante o processo tem sido entendida, de forma reiterada pelo Tribunal, como sendo a efectuada em momento funcionalmente adequado, ou seja, em que o tribunal recorrido pudesse dela conhecer por não estar esgotado o seu poder jurisdicional. É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora da via de recurso. É por isso que se entende que não constituem já momentos processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter pronunciado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., pp.
663; n.º 374/00, publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de
2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de
2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito). Desvio a tal regra encontra-se apenas naquelas hipóteses ditas de excepcionais em que o recorrente é confrontado com a utilização insólita e imprevisível, por parte da decisão, da norma, ou seja, naqueles casos em que seria desrazoável e inadequado exigir do interessado um prévio juízo de prognose relativo a tal aplicação em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando antecipadamente assim a questão de inconstitucionalidade (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 489/94, publicado no Diário da República II Série, de 16 de Dezembro de 1994, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pp. 415; n.º
310/00, publicado no Diário da República II Série, 17 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp.853 e n.º 120/02, publicado no Diário da República II Série, de 15 de Maio de 2002, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52º vol., pp. 575).
6 – Ora, no caso em apreço, nem um nem outro dos referidos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade se verifica. Senão vejamos. Ao contrário do que o recorrente afirma, no seu requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (sendo de notar que é por tal requerimento que se determina o objecto do respectivo recurso por ser nele que se formula o pedido de apreciação de constitucionalidade), o acórdão recorrido, do STJ, não interpretou as normas cuja constitucionalidade o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie no sentido de a providência de habeas corpus ser de indeferir no caso, situação ou hipótese de a acusação ser deduzida quando está já decorrido o prazo máximo de prisão preventiva previsto no n.º 3 do art.
215º do CPP (aplicável ao caso concreto, de doze meses). Ao contrário, o acórdão recorrido interpretou e aplicou os artigos 222º, n.º 2, alínea c) e 215º, n.º 3, do CPP no sentido de a prisão preventiva se extinguir quando, desde o seu início, tiverem decorrido doze meses sem que tenha sido deduzida acusação e de ser de indeferir por manifesta falta de fundamento legal o pedido de habeas corpus numa situação em que é de aplicar esse prazo de doze meses, quer em virtude de o mesmo ter sido considerado aplicável no procedimento concreto por despacho de 11 de Fevereiro de 2004 da Juíza de Instrução, quer em virtude de a sua aplicação dever ter-se como efeito automático, ou seja, sem necessidade de verificação e declaração judicial da excepcional complexidade do procedimento, em procedimento que se reporte a um dos crimes referidos no n.º 1 do art. 54º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, conforme doutrina, que é de seguir por não ter havido alteração das circunstâncias e das razões que levaram o STJ a decidir assim, firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2004, publicado no Diário da República I Série-A, de 2 de Abril, e em que entre o momento do início da prisão preventiva e o da dedução da acusação esse prazo de doze meses ainda não tenha decorrido. Tal sentido com que foram interpretados e aplicados esses preceitos emerge claramente do discurso do acórdão recorrido, que acima se deixou transcrito na íntegra, maxime do facto de não assumir qualquer restrição de sentido relativamente ao texto do art. 215º, n.º 3, do CPP, e de estar-se numa situação em que, a quando do momento da dedução da acusação, ainda não tinha decorrido o prazo de doze meses aí referido. Embora o acórdão recorrido se tenha ficado pela afirmação de que esse prazo de doze meses ainda não estava ultrapassado, é por demais evidente que a essa conclusão subjaz a consideração de que, na situação apreciada, o peticionante se encontrava na situação de preso preventivamente desde 24 de Junho de 2003 e que a acusação fora deduzida em 6 de Maio de 2004. Anote-se, aliás, que a advogada do recorrente foi notificada por carta registada datada de 22 de Junho de 2004 de tal acusação (acusação essa que foi traduzida para castelhano (fls. 786 a 798 do correspondente processo) e que por carta da mesma data foi pedida ao estabelecimento prisional em que o recorrente se encontra a sua notificação da mesma acusação, havendo aquela mandatária judicial do recorrente de ter-se por notificada precisamente na data em que apresentou o pedido de habeas corpus, ou seja, em 25 de Junho de 2004, face ao disposto no art. 113º, n.º 2, do CPP. Por outro lado, não corresponde, como se vê, minimamente à verdade processual evidenciada nos autos a afirmação feita pelo recorrente no seu requerimento de interposição de recurso – mas não alegada na petição para o STJ de habeas corpus - de que, à data da apresentação do pedido de habeas corpus, ainda não havia sido deduzida a acusação. Falece, pois, o referido pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, da interpretação e aplicação como ratio decidendi do indeferimento do pedido de habeas corpus dos identificados preceitos do CPP no sentido com que o recorrente precisou no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
7 – Mas independentemente de tal razão, sempre será de concluir pela não dispensa do recorrente do ónus de suscitação durante o processo, na acepção com que tal pressuposto se deixou recortado acima, da questão de inconstitucionalidade da norma identificada pelo recorrente extraída dos preceitos legais por si igualmente indicados. Na verdade, não pode considerar-se desrazoável e inadequado exigir-se do recorrente um juízo prévio de prognose relativo à aplicação feita pelo acórdão recorrido do referido sentido dos mencionados artigos do CPP, em termos de poder antecipar a determinação e aplicação de tal sentido e de suscitar a sua inconstitucionalidade. Tal dever de antecipação, no caso concreto, há-de entender-se como postulada pelos mais elementares deveres de prudência e de saber técnicos que são de exigir de quem exerce por profissão a actividade da advocacia. E é assim porque, como se viu, o acórdão recorrido se arrimou a uma interpretação e aplicação do disposto no n.º 3 do art. 215.º do CPP puramente literal e à aplicação do prazo de doze meses nele estabelecido, quer por virtude de o disposto em tal preceito ter sido considerado aplicável no procedimento concreto por despacho de 11 de Fevereiro de 2004 da Juíza de Instrução, quer por virtude de a sua aplicação dever ter-se como efeito automático, ou seja, sem necessidade de verificação e declaração judicial da excepcional complexidade do procedimento, em procedimento que se reporte a um dos crimes referidos no n.º 1 do art. 54º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, conforme doutrina, que é de seguir por não ter havido alteração das circunstâncias e das razões que levaram o STJ a decidir assim, firmada no acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2004, publicado no Diário da República I Série-A, de 2 de Abril. Tanto o sentido literal do referido preceito [n.º 3 do artigo 215º do CPP e alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo para o qual aquele remete] como a interpretação no sentido de a sua aplicação ser automática nas hipóteses de procedimentos reportados a um dos crimes referidos no n.º 1 do art. 54º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro que o acórdão recorrido entendeu dever seguir eram completamente previsíveis, uma por corresponder ao sentido imediatamente apreensível do texto legal e a outra por haver sido adoptada pelo identificado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ publicado em Diário da República I Série-A, cerca de três meses antes. Considera-se assim que o recorrente não satisfez o ónus de atempada suscitação, no processo, da questão de constitucionalidade e que não pode dele haver-se por dispensado.
8 – Como é evidente, o pedido de julgamento da inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 223º do CPP, relativo à condenação em custas, feito pelo recorrente, surge como efeito meramente consequente do pedido de julgamento de inconstitucionalidade das restantes normas concernentes aos pressupostos legais do habeas corpus. Não se conhecendo do pedido de inconstitucionalidade das normas impugnadas constitucionalmente relativas a tais requisitos prejudicado fica o conhecimento daquele».
2 - Inconformado, o recorrente veio, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, reclamar para a conferência, sintetizando a sua argumentação nas seguintes conclusões:
«1-O aqui reclamante foi preso preventivamente dia 24 de Junho de
2003
2-Dia 24 de Junho de 2004, o aqui reclamante mantinha-se preso preventiva mente
3-Decorridos doze meses o aqui Reclamante e a sua mandatária judicial não haviam sido notificados da acusação.
4-Via fax, enviado no passado dia 24 de Junho do corrente ano o aqui reclamante deu entrada de petição de habeas corpus. Fundamentou-se a referida petição na alínea c), do nº.2, do artigo 222° do Código de Processo Penal
5-0 aqui Reclamante foi notificado da douta acusação no dia 29 de Junho. O oficio n.º 457804 deu entrada no Estabelecimento Prisional de Faro no dia 28 do mesmo mês e ano, conforme documento de fls. 957, assinado pelo Director do Estabelecimento Prisional Regional de Faro, que deu entrada nos Serviços do Ministério Público de Lagos no passado dia 8 de Julho de 2004, conforme documento um que ora se junta.
6- A mandatária judicial do aqui Reclamante foi notificada por carta que foi expedida pelos correios de Lagos, no dia 25 de Junho de 2004 e foi entregue no dia 28 do mesmo mês e ano. A advogada do aqui reclamante recebeu dia 28 de Junho de 2004, carta registada que se junta como documento número dois. Corresponde a mesma ao registo RS466859379PT. Como prova do alegado junto se remete, para análise de Vªs. Exªs. informação recolhida do site oficial dos correios de Portugal – www. Ctt.pt – (Documento número três).
7-Via fax, a 6 de Julho do corrente ano a mandatária do aqui reclamante envia requerimento dirigido ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça, onde renova o teor da petição apresentada e onde indica as datas em que foram efectuadas as notificações da acusação (Documento número cinco ).
8-A petição de habeas corpus deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Lagos decorridos doze meses de prisão preventiva sem que tivesse sido notificada a acusação tanto ao reclamante como à sua advogada.
9-Por acórdão datado de 7 de Junho do corrente ano, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça vejo indeferir a pretensão do aqui reclamante, por manifesta falta de fundamento, condenando-o em taxa de justiça que se fixou em cinco UC’s e ainda no pagamento de sete UC’s por a petição de habeas corpus ser manifestamente infundada.
10- Via fax, enviado a 19 de Junho do corrente ano, o aqui Reclamante interpõe recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, com vista à fiscalização concreta das seguintes normas: Artigo 215°, nº.1; Artigo 217°; Artigo 222°, nº.,
2, alínea c), Artigo 223°, nº. 6, todos do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que caso a acusação seja deduzida, ainda que não notificada ao peticionante, da providência de habeas corpus, e apesar de decorrido o prazo máximo de prisão preventiva previsto no nº.3 do artigo 215° do Código de Processo Penal, é de indeferir por manifestamente infundada, dando a mesma lugar à manutenção do arguido na situação de preso preventivo e à condenação do peticionante no pagamento de sete Ucs, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 223° do supra citado diploma legal.
11- Por decisão sumária proferida pelo Exmº. Senhor Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional decidiu-se no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
12- A decisão sumária proferida, salvo melhor e mais douto entendimento, parte de três pressupostos errados: A) A 22 de Junho de 2004 foi pedida a notificação do ora Reclamante. B) A 22 de Junho foi notificada a mandatária do aqui reclamante, por carta registada, devendo a mesma considerar-se notificada no dia
25 do mesmo mês e ano. C) A mandatária do reclamante de entrada da petição de habeas corpus precisamente na data em que foi notificada da acusação.
13- Os factos que correspondem à verdade são: A) Foi pedida a notificação do Reclamante no dia 28 de Junho de 2004, tendo a mesma sido efectuada no dia 29 de Junho de 2004. B) Foi expedida através dos correios de Lagos a 25 de Junho de 2004, carta registada com aviso de recepção, tendo a mandatária do aqui reclamante recebido a carta dia 28 de Junho de 2004. C) O pedido de habeas corpus foi enviado, via fax, no passado dia 24 de Junho de 2004.
14- Pelas razões expostas, que correspondem à verdade dos factos efectivamente ocorridos não podia ao aqui Reclamante exigir-se um juízo prévio de prognose relativo à aplicação feita pelo acórdão recorrido dos artigos 215º, nº. 3, 217º,
222º, nº. 2, alínea c) e 226º, nº. 6, todos do Código de Processo Penal.
15- Tais normas constantes dos artigos 215º, nº. 3, 217º, 222º, nº. 2, alínea c) e 226º, nº. 6, todos do Código de Processo Penal, assim interpretadas são inconstitucionais por derrogação dos artigos 27º, nº. 1, 28º, nº. 4, 30º e 31º e
32º, nº. 2 in fine, todos da Constituição da República Portuguesa.
16- As normas aplicadas no sentido da interpretação que lhes foi dada pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça esbarram com a dignidade constitucional que foi conferida à providência de habeas corpus e violam o Direito à Liberdade e o princípio da natureza temporária, limitada e definida da prisão preventiva.
17- Não havia sido até ao momento invocada qualquer inconstitucionalidade normativa, surgindo a mesma agora em virtude de o Supremo Tribunal de Justiça ter aplicado uma norma em sentido verdadeiramente surpreendente para o aqui Recorrente.
18- Tendo por base uma surpreendente e inesperada interpretação do Supremo Tribunal de Justiça dos artigos 215º, nº. 3, 217º, 222º, nº. 2, alínea c) e
226º, nº. 6, todos do Código de Processo Penal, é tempestiva a apresentação pelo Recorrente da invocada questão de inconstitucionalidade.
19- Em face dos elementos colocados à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça em sede de petição de habeas corpus, únicos elementos de que o aqui recorrente dispunha, em virtude de na fase do inquérito quer o recorrente quer a sua mandatária não terem acesso ao processo, deveria o Supremo Tribunal de Justiça ter deferido a pretensão do reclamante, declarando-se a procedência da petição de habeas corpus e consequentemente ter decretado a imediata libertação do arguido, aqui recorrente.
20- Com a presente interpretação foram violadas no entender do aqui reclamante normas e princípios com dignidade constitucional: Violação do Direito à Liberdade, previsto no artigo 27º, nº. 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, violação do disposto no artigo 28º, nº. 4 do mesmo diploma legal, violação do estipulado no nº. 1 do artigo 30º do supra citado diploma legal, violação do disposto no artigo 31º também da Constituição da República Portuguesa.
(...)».
3 - O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, pronunciou-se pela confirmação da decisão reclamada em face da manifesta improcedência da presente reclamação, afirmando que:
“(...)
2.º Na verdade, o arguido-recorrente não suscitou, durante o processo, podendo tê-lo feito, a questão de inconstitucionalidade a que vem reportado o recurso.
3.º A acusação deduzida contra o arguido foi notificada, por via postal, à respectiva defensora em 22/6/04, presumindo-se, deste modo, realizada em 25/6/04
(cf. fls. 85) – e não sendo obviamente a presente reclamação o meio e local adequado para ilidir a presunção de tempestivo recebimento da carta contendo a notificação.
4.º De qualquer modo – e independentemente deste aspecto – é inquestionável que no dia 7/7/04 – data de realização da audiência de julgamento da dita providência
(cf. fls. 105) – aquela defensora – que teve naturalmente plena oportunidade para estar presente e aí produzir alegações – bem sabia que, antes de terminado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, já havia sido deduzida a peça acusatória.
5.º Podendo e devendo – se considerava inconstitucionalmente insuficiente a ponderação, como baliza temporal relevante, da data da dedução da acusação – ter suscitado, nas referidas alegações, a questão da constitucionalidade de tal interpretação normativa, fazendo-o consignar na acta de fls. 105.
(...)”.
B - Fundamentação
4 – A decisão reclamada esteou-se em três razões autómomas, todas determinantes do não conhecimento do objecto do recurso: a não aplicação como ratio decidendi da decisão recorridas das normas cuja fiscalização de inconstitucionalidade foi requerida a este Tribunal; a não suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o Tribunal a quo e a prejudicialidade do conhecimento da questão de inconstitucionalidade relativa à norma aplicada quanto à condenação do recorrente nas custas do processo. Ora, o reclamante, em rigor, apenas contesta a consideração feita na decisão sumária relativa ao não cumprimento do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal a quo. Afirma para tal que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) aplicou a “norma em sentido verdadeiramente surpreendente”, “tendo por base uma (...) inesperada interpretação (...) dos artigos 215º, n.º 3, 222º, n.º 2, alínea c) e 223º, n.º
6, todos do Código de Processo Penal”, isto porque, no seu entendimento, “em face dos elementos colocados à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça em sede de petição de habeas corpus, únicos elementos de que o aqui recorrente dispunha, em virtude de na fase do inquérito quer o recorrente quer a sua mandatária não terem acesso, deveria o Supremo Tribunal de Justiça ter deferido a pretensão da reclamante, declarando a procedência de habeas corpus e consequentemente ter decretado a imediata libertação do arguido (...)”. A conclusão a que se chegou na decisão sumária não fica prejudicada por tal argumentação. Na verdade, como bem nota o Ministério Público neste Tribunal, o reclamante já tinha inteiro conhecimento da acusação, por a mesma lhe haver sido notificada, quer pessoalmente, quer à sua mandatária, aquando da realização do julgamento no STJ, bem podendo esta nas alegações produzidas em tal momento, fosse através de articulado escrito, fosse mediante pedido registado em acta, suscitar a questão, posto que, como resulta dos autos, e o próprio reclamante reafirma, a acusação foi-lhe notificada em momento anterior ao desse julgamento que ocorreu em 7 de Julho de 2004, pelo que dispôs assim de oportunidade processualmente adequada para levantar o problema de constitucionalidade.
É, pois, de manter o juízo efectuado pela decisão sumária relativamente ao não cumprimento do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade.
Como se começou por afirmar, tal fundamento não foi o único em que se louvou a decisão de não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade. A decisão reclamada considerou ainda que falecia, igualmente, o pressuposto de aplicação da(s) norma(s) sindicadas como ratio decidendi da decisão proferida pelo Tribunal a quo. O reclamante não refuta, em qualquer dimensão, a bondade desse juízo, porquanto, no que tange com a argumentação aí desenvolvida, apenas sustenta ter a decisão reclamada partido do errado pressuposto de a mandatária do arguido se presumir notificada no dia 25 de Junho de 2004, quando, no seu juízo, apenas o foi no dia
28 de Junho de 2004 (e o arguido no dia 29 de Junho de 2004). Note-se, todavia, que além de não esta não ser a sede adequada à ilisão da presunção de que a notificação não ocorreu na data afirmada, tal asseveração, como emerge do próprio texto da decisão sumária, corresponde a um simples obter dictum expendido a propósito da não aplicação, como ratio decidendi, da norma sindicanda. E, quanto a tal argumentação, o reclamante nada disse, sendo também de manter o juízo de improcedência deste pressuposto processual, continuando também por esta via vedado o conhecimento do recurso interposto. Por fim, no que se reporta ao não conhecimento da questão emergente do n.º 6 do artigo 223.º do Código de Processo Penal, verifica-se também que o reclamante não controverte a bondade do fundamento considerado na decisão reclamada para não tomar conhecimento do recurso, qual seja o de haver considerado prejudicado o pedido de inconstitucionalidade de tal norma por força do não conhecimento do pedido de inconstitucionalidade das demais dimensões normativas invocadas, por falta dos referidos requisitos processuais. De qualquer modo e independentemente da correcção de tal juízo de prejudicialidade, também em relação a essa dimensão normativa se verifica não proceder o pressuposto da suscitação atempada do problema de constitucionalidade, pelas razões acima expendidas.
C – Decisão
5 - Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante com 20 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 11 de Agosto de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos