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Processo n.º 540/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 - Nos presentes autos foi proferida, ao abrigo do disposto no art.
78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), a seguinte decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal pelas rés na respectiva acção:
«[1.] Em 14 de Março de 2000, A., melhor identificada nos autos, propôs contra B., e C., acção com processo ordinário, pedindo que seja declarado extinto por caducidade um contrato, que denomina de utilização de loja em centro comercial, que vigorava entre a autora, como empresa gestora do centro comercial em que tal loja se integrava, e a primeira ré, a quem a autora cedera a respectiva utilização mediante retribuição, pedindo a condenação da dita primeira ré a entregar-lhe a aludida loja livre e desimpedida de pessoas e bens, e a condenação de ambas as rés (sendo a segunda como fiadora da primeira), a pagarem-lhe a importância de 1.440.000$00, acrescida de juros legais, a título de indemnização pelos danos que lhe têm causado com a ocupação não titulada da loja ou a título de enriquecimento sem causa, bem como a quantia mensal de
288.000$00 relativa à mesma ocupação desde Março de 2000 até à efectiva desocupação e entrega da loja (acrescida de juros moratórios e eventual actualização de valores), e a quantia mínima de 8.000$00 por cada dia de atraso na devolução, a título de sanção pecuniária compulsória e todos os montantes indemnizatórios, acrescidos de juros, que venham a ser liquidados em execução de sentença.
[1.1.] O Juiz do Tribunal Cível do Porto – 1ª Vara – conheceu, logo no despacho saneador, do mérito da causa, tendo julgado a acção parcialmente procedente, condenando as rés no pedido (salvo quanto à quantia de 1.440.000$00 que considerou já paga à autora e aos meses de Março a Maio de 2000 por já se encontrarem depositados, e reduzindo a quantia de 288.000$00 a 287.471$00, não condenando a segunda ré na sanção pecuniária compulsória, e, por fim, condenando ambas no pagamento de despesas comuns e remuneração percentual desde Outubro de
1999 até efectiva desocupação, ao invés da condenação em montante a liquidar em execução de sentença.
[1.2.] Não se conformando com tal decisão, as rés interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 28 de Outubro de 2002, confirmou a sentença recorrida.
[1.3.] Novamente inconformadas, as rés interpuseram, para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso de revista, considerando nas suas alegações, quanto
“a [uma] violação da Constituição”, que:
«A qualificação jurídica dada aos contratos celebrados entre [a]os lojistas e os promotores dos centros comerciais, como sendo estes contratos atípicos, leva a uma solução injusta e abusiva.
O lojista recebe do promotor a loja “paredes vazias”, como é o caso em apreço, instala nela o seu estabelecimento comercial, concluindo, à sua custa, as obras necessárias para tal, fazendo a sua decoração, adquirindo o equipamento, nomeadamente mobiliário, prateleiras, máquinas, mercadorias, contratando pessoal e com fornecedores, obtendo as necessárias licenças administrativas.
O referido lojista, se celebra com o promotor do centro comercial um contrato do tipo do contrato que a 1ª ré celebrou, pelo prazo de seis anos e com um[a] retribuição mensal fixa acordada e, findo o prazo inicial do contrato tem que desfazer o estabelecimento comercial que naquele espaço instalara, sem qualquer compensação e sem que tenha a possibilidade de se manter na loja por um novo período contratual, com ou sem negociação prévia, porque o contrato celebrado, apesar de ter os elementos tipo do contrato de arrendamento, não o é, deixando o lojista, dono do estabelecimento comercial, sem espaço físico para o exercício do seu comércio, certo é que, prevalecendo esta interpretação – plasmada na sentença – violado é o princípio da confiança do cidadão, emanado do Estado de Direito democrático, na sua vertente de estado de direito consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Mas, o acórdão em revista viola ainda a Constituição porque interpreta e aplica a norma do art. 405.º do C. Civil (única disposição legal em que se baseou) no sentido de que não existem quaisquer limitações à liberdade contratual, sendo as partes livres de “fixar o conteúdo dos seus contratos, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou até de celebrar contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme decorre do disposto no artigo 405.º do Código Civil”.
(…)»
E concluíram a sua argumentação sustentando que:
“1.ª - As rés continuam a atender que no caso em apreço existem verdadeiros e justificados fundamentos para se atribuir ao presente recurso efeito meramente devolutivo, como se deixou expresso no requerimento de interposição de recurso.
2.ª - Com efeito, “… discute-se nos presentes autos se o contrato celebrado entra as partes é um contrato de arrendamento ou um contrato atípico, que tem por objecto um estabelecimento comercial, este instalado num imóvel propriedade da recorrida; atribuindo-se ao presente recurso efeito devolutivo, as recorrentes terão que entregar de imediato à recorrida o imóvel onde está instalado o seu estabelecimento comercial, livre e devoluto;
3.ª - e, como é notório, com a saída do estabelecimento comercial do local onde actualmente está instalado as recorrentes perderão, natural e inevitavelmente, clientela, insusceptível de avaliação pecuniária; por outro lado, a suspensão dos efeitos do acórdão recorrido não trará à recorrida qualquer prejuízo patrimonial uma vez que as recorrentes continuarão a pagar-lhe, como sempre o têm feito, atempadamente, as rendas do imóvel e pelo mesmo montante que a recorrida auferiria se o entregasse a outra entidade, conforme a própria recorrida o confessou nos seus articulados.
4.ª - Os centros comerciais são edifícios que integram vários estabelecimentos comerciais harmoniosamente distribuídos, autónomos entre si, com donos próprios e com ramos de comércio diversificados.
5.ª - O aglomerado, harmonioso, formado pelo conjunto das lojas de um centro comercial, apesar de potenciador de clientela, não é necessariamente um espaço privilegiado; há neles lojas bem situadas e lojas mal situadas.
6.ª - O contrato celebrado entre o proprietário (o promotor ou explorador das lojas) e um comerciante, através do qual aquele cede a este o gozo temporário de uma loja (espaço físico) de um centro comercial, com paredes vazias, em tosco, mediante o pagamento de uma retribuição convencionada, e na qual o comerciante instala uma actividade comercial, qualifica-se juridicamente, no actual ordenamento jurídico português, como um contrato típico de arrendamento, de acordo com os critérios de qualificação dos contratos em típicos e atípicos;
7.ª - critério esse a que a nossa jurisprudência adere com mais frequência, o chamado critério da essentialia: a procura no contrato da identificação dos elementos essenciais de cada espécie contratual.
8.ª - Também o critério (mais seguido pela doutrina) da causa – todo o contrato nominado possui uma função económico-social própria que se reflecte numa estrutura jurídica – nos levará à mesma qualificação do contrato em apreço; a causa da locação está na concessão do gozo temporário de uma coisa mediante retribuição (…).
9.ª - É de arrendamento para comércio o contrato celebrado entre a autora e a 1ª ré, em Julho de 1993, através do qual aquela cedeu a esta o gozo temporário (pelo prazo de seis anos) da loja (vazia) n.º ------- (situada) no piso ---- do centro comercial denominado D., na cidade de --------, mediante uma retribuição acordada, para que a 1ª ré, por sua conta e risco, nela implantasse, como implantou, um estabelecimento de venda de artigos de ---------.
10.ª - O facto de a loja cedida se integrar num centro comercial, composto por um conjunto de 60 lojas e outros espaços destinados a actividades complementares, não confere ao contrato qualquer característica que lhe retire o quid do contrato típico; se o centro comercial potencia a clientela da loja, não afasta do contrato os elementos essenciais, específicos ou típicos do arrendamento.
11.ª - A loja n.º ------- foi cedida pela autora à ré, em tosco, por um determinado lapso de tempo, tendo como fim a actividade comercial, mediante uma remuneração; a lei chama a estes contratos de arrendamento para comércio.
12.ª - O acórdão em revista, sufragando na íntegra os fundamentos da sentença recorrida, classifica o contrato celebrado entre a autora e a ré, consubstanciado no doc. de fls. 22 a 33 dos autos, como um contrato inominado ou atípico, fundamentando-se no art. 405.º do C. Civil, fez uma errada interpretação e aplicação da citada norma, porquanto,
13.ª - a liberdade negocial prevista no art. 405.º do C. Civil, permite a livre opção de escolha de qualquer tipo negocial, com as limitações impostas pela lei, ou seja com submissão às regras imperativas dos contratos tipos, sem pôr em causa a função sócio-económica assumida pelo respectivo tipo contratual.
14.ª - A prevalecer a interpretação plasmada na sentença recorrida, então a norma contida no art. 405.º do CC está ferida de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão, emanados do estado de Direito democrático na sua vertente de Estado de Direito, consagrado no art. 2.º da CRP.
15.ª A sentença recorrida violou as normas dos arts. 405.º do Código Civil, 64.º, 66.º e n.º 2 do art. 68.º do RAU.
16.ª - O acórdão em revista deve ser revogado, por errada interpretação e aplicação da norma do art. 405.º e, em sua substituição, deve ser proferido outro que julgue improcedente a acção, e na íntegra, por ser o contrato em apreço (…) um típico contrato de arrendamento para comércio, sujeito ao regime vinculístico e imperativo da renovação automática, só podendo caducar, se denunciado ou resolvido nos casos e situações especialmente previstas na lei”.
[1.4.] O Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida com base nos fundamentos que infra se transcrevem:
“(…) As questões restantes consistem, por um lado, em determinar se o contrato em causa constitui um típico contrato de arrendamento para comércio, sujeito às disposições de carácter vinculístico próprias desse contrato, ou integra um contrato atípico de instalação de lojista em centro comercial, não sujeito a tais disposições, e, por outro lado, em saber se se verifica inconstitucionalidade do art. 405.º do Cód. Civil na interpretação feita pelo acórdão recorrido.
Ora, essas questões mostram-se bem decididas no acórdão recorrido, - como, aliás, já a primeira o estava na sentença da 1ª instância, pelo mesmo acórdão confirmada -, o qual fez adequada qualificação jurídica do contrato em causa e correcta interpretação e aplicação das disposições legais respeitantes aos factos em apreço, com ele, por isso, se concordando inteiramente, quer quanto à decisão nele tomada, quer quanto aos seus fundamentos, a que se adere e para que se remete ao abrigo do disposto nos artigos 726.º e 713.º, referidos, este no seu n.º 5.
Entende-se, com efeito, que a nova realidade traduzida nos centros comerciais reveste tal complexidade que, pelas razões de forma exaustiva expostas no acórdão recorrido e na sentença da 1ª instância, se torna incompatível com o regime próprio dos contratos de arrendamento de prédios urbanos para fins comerciais apesar da existência de elementos comuns, o que determina a qualificação dos contratos de instalação de lojistas nos respectivos espaços de tais centros, não por virtude da sua localização geográfica mas por força da organização em que ficam integrados, e precisamente face à sua característica de integração empresarial, inexistente nos contratos de arrendamento, como contratos atípicos, por se tratar de relações jurídicas ainda não legalmente regulamentadas de forma específica. É isto o que vem sido entendido maioritariamente na doutrina e na jurisprudência, com destaque para os acórdãos deste Supremo Tribunal de 12/7/94 (comentado por Antunes Varela, em
“Centros Comerciais”, 1995), 24/10/96 (CJ – Acs. do STJ, ano IV, tomo III, pg.
72), e 18/3/97 (CJ – Acs. do STJ, ano V, tomo II, pg. 26), do que resulta ter de se concluir não serem aplicáveis a tais contratos as normas legais respeitantes aos contratos de arrendamento, inclusive as que consagram a renovação automática após o termo do período acordado para a sua vigência, mesmo contra a vontade do senhorio (arts. 1054.º do Cód. Civil e 68.º, n.º 2, do R.A.U.), tanto mais que, se torna necessário que a entidade que administra ou explora o centro e celebra os contratos com os lojistas tenha liberdade de pôr rapidamente termos, no fim do respectivo prazo de duração, a algum contrato cuja subsistência, nomeadamente pela conduta do respectivo lojista ou pelo género de comércio a que se dedique, possa afectar o interesse geral do todo orgânico que é o centro comercial, e portanto o interesse da sobrevivência dos demais que se integram na vasta organização que tal centro constitui.
Igualmente quanto à questão de inconstitucionalidade se concorda inteiramente com o decidido no acórdão recorrido e na sua fundamentação, pois a interpretação feita do art. 405.º do Cód. Civil em nada colide com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, na medida em que estes, no exercício da faculdade de liberdade contratual naquele dispositivo consagrada, podem livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde que se mantenham dentro dos limites da lei, ficando por via disso titulares dos direitos e sujeitos às obrigações do modelo, típico ou atípico, adoptado; e, na hipótese dos autos, as rés limitaram-se a usar dessa faculdade, optando expressamente pela celebração do contrato atípico conhecido por instalação de lojista em centro comercial (…) e não pela celebração do contrato típico de arrendamento comercial. Foi apenas esse o resultado da interpretação que o acórdão fez daquele dispositivo, atendendo à vontade das partes declarada no contrato, e aplicando-o aos factos assentes, sem que se detecte na interpretação adoptada, que nitidamente obedece ao princípio da liberdade contratual, a mínima inconstitucionalidade”.
[1.5.] Notificadas da decisão, as rés/recorrentes, interpuserem recurso para o Tribunal Constitucional, afirmando, no requerimento de interposição, que:
«- o recurso é interposto ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º, n.º 1, al. b) e
72.º, n.º 1, alínea b) ambos da Lei 28/82, de 15 de Novembro (…);
- pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade na norma do artigo 405.º do Código Civil com a interpretação com que foi aplicada nas decisões de 1ª instância, ainda assumida pelo Tribunal da Relação e seguida por este Supremo Tribunal, interpretação esta, segundo a qual, não existem quaisquer limitações à liberdade contratual, sendo as partes livres “de fixar o conteúdo dos seus contratos, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou até de celebrar contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme decorre do disposto no artigo 405.º do Código Civil”;
- Apelando aos ensinamentos do Professor Antunes Varela (Das Obrigações em Geral – 2ª Edição – pág. 215), “Tal, porém, como a liberdade de contratar, também a regra de livre fixação do conteúdo do contrato está sujeita a limitações. Pode mesmo dizer-se que, uma vez destruídos os pressupostos fundamentais em que assentava o liberalismo económico e afastada pelo intervencionismo político-económico a relutância do Estado em se intrometer nas relações do comércio privado, essas limitações se têm multiplicado de forma acentuada nas modernas legislações, principalmente naqueles contratos (como o de trabalho, o arrendamento, o seguro, os negócios bancários, os transportes, etc.) em que afloram, com mais frequência ou maior intensidade, ponderosos interesses colectivos ao lado de meros interesses particulares (…).
Entre os fins visados por semelhantes restrições destacam-se o de garantir quanto possível a justiça real (não a simples justiça formal expressa pela igualdade jurídica dos contraentes) nas relações entre as partes, acima da desigualdade económica a da diversa condição social que muitas vezes as separa, e o de preservar a integridade de certos valores essenciais à vida de relação, como sejam a moral pública, os bons costumes, a confiança recíproca dos contraentes, a segurança do comércio jurídico e a certeza do direito.
Todas estas restrições se podem considerar englobadas genericamente nas palavras introdutórias do artigo 405.º dentro dos limites da lei”.
- tal interpretação viola o princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do estado de Direito democrático na sua vertente de estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa;
- a questão de inconstitucionalidade foi suscitada quer pelas alegações de apelação dirigidas ao Tribunal da Relação do Porto quer nas alegações de revista dirigidas a este Supremo Tribunal; Nestes termos (…) requer (…) que se digne admitir o presente recurso (…) e o julgamento da interpretação da norma do artigo 405.º do Código Civil inconstitucional por violação do artigo 2.º da CRP».
[1.6.] O recurso foi admitido por despacho exarado pelo Juiz Conselheiro relator a fls. 283.
[2.] Cumpre agora decidir.
[2.1.] Refira-se desde já que, nos termos do artigo 76.º, n.º 3, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (sucessivamente alterada e doravante designada de LTC), a decisão que admite o recurso de constitucionalidade não vincula este Tribunal, pelo que, assim sendo, importa começar por apurar se estão, ou não, preenchidos os requisitos para que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento do presente recurso. Desde logo, constitui pressuposto do recurso ao abrigo do art. 70.º, n.º 1, al. b) da LTC que o tribunal a quo haja aplicado uma norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. Daí decorre, dentre outras exigências, que apenas podem ser colocadas à apreciação do Tribunal Constitucional normas que tenham efectivamente sido aplicadas como ratio decidendi do recorrido juízo decisório (cfr., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 674/99, 155/2000, 157/2000 e 232/2002, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 25 de Fevereiro de 2000, 9 de Outubro de 2000, 9 de Outubro de 2000 e 15 de Julho de 2002). Por outro lado, como tem sido reiterado pela jurisprudência constitucional, os poderes de cognição deste Tribunal, no domínio da fiscalização concreta, abarcam exclusivamente a sindicância de inconstitucionalidades normativas, não lhe competindo o conhecimento de questões de “constitucionalidade” que se refiram directamente às decisões judiciais ou aos actos judiciais propriamente ditos. Porém, nada impede que, ao invés de se suscitar a inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), sendo que, em tal hipótese, é necessário que a norma que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido, efectivamente, aplicada in casu com a interpretação que se entende inconstitucional (e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da República II Série, n.º 299, de 29 de Dezembro de 1998 e, mais recentemente, o Acórdão n.º 214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[2.2.] Transpondo tal critério para o caso dos autos, é manifesto que a disposição normativa questionada (“ a norma do artigo 405.º do Código Civil com a interpretação com que foi aplicada nas decisões de 1.ª instância, ainda assumida pelo Tribunal da Relação e seguida por este Supremo Tribunal, interpretação esta, segundo a qual, não existem quaisquer limitações à liberdade contratual, sendo as partes livres de «fixar o conteúdo dos seus contratos, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou até de celebrar contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme decorre do disposto no artigo 405.º do Código Civil» - itálico aditado”) não foi aplicada com tal sentido pela decisão recorrida. E, quanto a esse aspecto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não deixa dúvidas ao afirmar que “a interpretação feita do artigo 405.º do Cód. Civil em nada colide com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da segurança dos cidadãos, na medida em que estes, no exercício da sua liberdade contratual naquele dispositivo consagrada, podem livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde que se mantenham dentro dos limites da lei
(itálico aditado)”, donde resulta, manifestamente, que o Tribunal a quo não sufragou a interpretação questionada, antes reconheceu que, in concreto e pressupondo as limitações legais ao princípio da liberdade contratual, “as rés limitaram-se a usar dessa faculdade [de livremente optar pelos modelos contratuais que entendam], optando expressamente pela celebração de um contrato atípico conhecido por instalação de lojista em centro comercial (...) e não pela celebração de um contrato típico de arrendamento comercial”. O Supremo Tribunal de Justiça não considerou, assim, que “não existem quaisquer limitações à liberdade contratual”, tendo julgado, tão-só, que, no caso sub judice, tinha sido respeitado o princípio da liberdade contratual com as limitações ou restrições que este encerra (“restrições [que] se podem considerar englobadas genericamente nas palavras introdutórias do artigo 405.º dentro dos limites da lei”, como ensina o Professor Antunes Varela, citado pela recorrente a fls. 280).
[2.3.] Ao exposto acresce, pelas razões já invocadas e que se traduzem no facto deste Tribunal não se assumir como instância de amparo das decisões dos demais tribunais, que não cabe ao Tribunal Constitucional apurar a correcção do juízo
“subsuntivo-aplicativo” efectuado pelo juiz quanto à aplicação da norma questionada. Por isso mesmo, não pode a recorrente pretender contraditar a
“aplicação” da norma em questão tal como foi efectuada pelo tribunal a quo
(contestando o facto do tribunal, na sua decisão, haver abrangido o caso concreto, com as suas especificidades, dentro da previsão normativa do artigo
405.º). Daí que, afastado um tal controlo do mérito da decisão e considerando apenas o problema da constitucionalidade das normas que constituíram a ratio decidendi do juízo proferido, não se pode considerar que o Supremo Tribunal de Justiça haja interpretado a norma com dimensão normativa que a recorrente impugna, posto que, em rigor, o critério da sua decisão não seguiu, ao contrário do que a recorrente sustenta, no sentido de reconhecer que “não existem quaisquer limitações à liberdade contratual”. Ora, como se afirmou no já referido Acórdão n.º 197/97, o facto de a norma não ter sido aplicada com o sentido questionado “determina, só por si, a falta de um dos requisitos do recurso de constitucionalidade (a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida”, pelo que, não tendo a disposição impugnada sido aplicada pela decisão recorrida com o sentido impugnado, não estão preenchidos os pressupostos para que este Tribunal possa tomar conhecimento do recurso.
[3.] Assim, pelas razões expostas, decido não tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade».
2 - As recorrentes, inconformadas com o teor desta decisão, vêm agora, ao abrigo do disposto no artigo 78.º - A, n.º 3, da LTC, reclamar para a conferência, estribando-se na seguinte argumentação:
“(...)
1. A ora reclamante interpôs recurso para este Tribunal ao abrigo do artigo 280°, n°, alínea b) da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70°, n° 1, alínea b) e 72°, n° 1, alínea b), ambos da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela lei n° 85/89 de 7 de Setembro e pela Lei n° 13-A de 26 de Fevereiro;
2. Pretendia ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 405° do Código Civil com a interpretação aplicada nas decisões de 1ª instância, perfilhada pelo Tribunal da Relação e arrogada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3. Entendeu o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator que os pressupostos para que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento do referido recurso não se encontravam preenchidos, ou seja, que:
- o tribunal a quo tenha decidido aplicando normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo;
- que a fiscalização do Tribunal Constitucional incida sobre inconstitucionalidades normativas e não directamente sobre as decisões judiciais;
- por outro lado o Tribunal Constitucional admite a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal a quo a uma decisão aplicada no caso 'sub iudice' constituindo a ratio decidendi da sentença recorrida.
4. Salvo o devido respeito, parecem-nos estar cumpridos os pressupostos para que o Tribunal Constitucional se possa pronunciar . Senão vejamos:
- o Dec.-Lei 329-B/2000 de 22 de Dezembro, regula o arrendamento para a habitação, comércio e profissões liberais, sendo a ideia subjacente ao RAU a protecção dos interesses dos arrendatários, parte entendida como mais fraca nas relações locatícias;
- em face dos interesses que o legislador visou proteger, este retirou à livre estipulação das partes determinados aspectos do regime da relação locatícia,
- daí que a grande maioria das normas daquele diploma legal tenha um carácter imperativo, limitando nessa medida a liberdade contratual das partes;
- ou seja, confrontado com os dois princípios fundamentais do Direito Civil - o princípio da liberdade contratual e o princípio da protecção da parte contratualmente mais fraca - o legislador optou, claramente, pela limitação da autonomia da vontade.
Ora, a celebração de um contrato atípico com o conteúdo do contrato celebrado entre a A. e B. (contratos que se encontram difundidos pelas superfícies comerciais dominadas pelo grupo A.) mais não significa que defraudar o RAU e os interesses que lhe estão implícitos, relegando para o plano secundário a protecção dos interesses dos arrendatários.
A cumplicidade com esta visão contrária ao espírito do Direito do Arrendamento logra-se, unicamente, através de uma incorrecta interpretação do princípio da liberdade contratual, plasmado no art. 405° do Código Civil.
Se nos reportarmos às teorias de Larenz, verificamos que a possibilidade de os indivíduos fixarem por si próprios a disciplina jurídica dos seus interesses contrapostos é uma 'exigência indeclinável da personalidade moral do homem'. Mas, para que a ideologia do contrato não seja desvirtuada, impõe-se o respeito pelos 'princípios fundamentais da Constituição', bem como a inexistência 'entre as partes de uma relação de supremacia económica ou de carência anormal que permita a uma delas impor arbitrariamente as suas condições à outra'.
Assim sendo, para que o contrato goze de tutela jurídica é necessário que os contraentes não ignorem os valores fundamentais, nem as limitações da liberdade individual com vista ao atenuar das desigualdades substanciais entre os contraentes.
Não consideramos que estas limitações ou restrições ao princípio da liberdade contratual estejam previstas no caso sub judice, o que por si só configura uma interpretação contrária à Constituição.
5. Uma tal interpretação viola o princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio de estado de Direito democrático na sua vertente de Estado de Direito, consagrado no artigo 2° da Constituição da República Portuguesa.
6. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada quer nas alegações do recurso de apelação dirigidas ao Tribunal da Relação do Porto quer nas alegações de revista dirigidas ao Supremo Tribunal de Justiça;
7. Existindo, por tal motivo, uma notória utilidade no julgamento da interpretação da norma do art. 405° do Código Civil inconstitucional por violação do art. 2° da CRP .
Termos em que, deve a presente reclamação ser atendida e, consequentemente, ser revogado o despacho reclamado e ordenado o prosseguimento do presente recurso”.
3 - A recorrida respondeu pugnando pela manutenção da decisão reclamada.
Cumpre agora decidir.
B - Fundamentação
4 - Conclui-se na decisão reclamada que a norma do art.º 405º do Código Civil não havia sido aplicada com o sentido normativo que as recorrentes sindicam neste recurso. Entende-se agora que um tal juízo não é o que, em verdade, resulta do confronto entre o requerimento de interposição de recurso das recorrentes – que, como é sabido, fixa o objecto do seu recurso – e o acórdão recorrido, entendido este como constituindo a resposta definitiva á posição que as recorrentes sempre defenderam no processo.
Uma melhor leitura da decisão recorrida permite concluir que esta interpretou aquele preceito do Código Civil no sentido de que “os cidadãos, no exercício da liberdade contratual naquele dispositivo consagrada, podem livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde que se mantenham dentro dos limites da lei, ficando por via disso titulares dos direitos e sujeitos às obrigações do modelo típico ou atípico adoptado” e que “na hipótese dos autos as rés limitaram-se a usar dessa faculdade, optando pela celebração do contrato atípico conhecido por instalação de lojista em centro comercial e não pela celebração do contrato típico de arrendamento comercial” e que um tal quadro normativo não ofende os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos plasmados no princípio do Estado de direito democrático vertido no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa. Vale isto por dizer que o Supremo interpretou o art.º 405º do Código Civil no sentido de a liberdade de contratar nele consagrada abranger, sem ofensa dos referidos princípios constitucionais, a liberdade dos contraentes de livremente optarem, em alternativa, pelo modelo contratual atípico conhecido por contrato de instalação de lojista em centro comercial, como aconteceu na situação concreta dos autos, ou pela celebração do contrato típico de arrendamento comercial (que não ocorreu na situação concreta).
Ora, é a conformidade com os mencionados princípios constitucionais do entendimento normativo que admite esta liberdade de opção nos termos alternativos enunciados que as recorrentes contestam no recurso de fiscalização de constitucionalidade e que sempre controverteram.
Deste modo, há que concluir que as recorrentes questionam a constitucionalidade de um critério normativo tal qual o mesmo foi aplicado como critério de decisão no acórdão recorrido.
C – Decisão
5 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide deferir a reclamação, revogar a decisão reclamada e ordenar que o recurso siga os ulteriores termos.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Outubro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos