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Processo n.º 318/08
 
 3.ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
  
 Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
 1.Relatório
 
  
 
  
 Na presente acção declarativa para efectivação de responsabilidade civil 
 emergente de acidente de viação, que A. intentou contra a Companhia de Seguros 
 B., S. A., o Fundo de Garantia Automóvel e C., pretendeu o autor impugnar 
 perante o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a decisão do Supremo Tribunal de 
 Justiça, que, negando a revista, confirmou o julgado na 1ª e 2ª instâncias no 
 sentido da improcedência da acção.
 
  
 Por decisão sumária proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da 
 Lei do Tribunal Constitucional, o relator não tomou conhecimento do recurso, com 
 base na seguinte fundamentação:
 
  
 Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto 
 processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação 
 normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal 
 Constitucional aprecie.
 O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade 
 constitucional da norma do artigo 487º, n.º 1, do Código Civil, interpretada no 
 sentido de que mesmo no caso de acidentes de viação em que um dos condutores se 
 encontre sob influência do álcool competirá ao lesado provar a culpa desse 
 condutor como autor da lesão e bem assim provar o nexo de causalidade entre 
 aquela influência, o acidente e as suas consequências.
 Ora, do texto da decisão recorrida resulta claramente que a referida 
 interpretação da norma do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil não foi 
 aplicada, pois o tribunal recorrido entendeu estar “indemonstrado que a condução 
 do R. era efectuada sob a influência do álcool” o que o levou a considerar 
 prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas relativas à inversão 
 do ónus da prova, à presunção de culpa e à suscitada inconstitucionalidade da 
 interpretação do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil.
 Não tendo sido aplicada, na decisão recorrida, a interpretação cuja conformidade 
 constitucional o recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional, não 
 pode conhecer-se do objecto do recurso, por falta de preenchimento de um dos 
 seus pressupostos processuais.
 
  
 Inconformado, o autor deduziu reclamação para a conferência nos seguintes 
 termos: 
 
  
 
 1. A decisão da qual se reclama, tomada ao abrigo do disposto no art° 78°-A, n° 
 
 1, da Lei do Tribunal Constitucional teve por base o facto de não ter sido 
 aplicada, na decisão recorrida, a interpretação cuja conformidade constitucional 
 foi submetida à apreciação do Tribunal. 
 
 2. O reclamante/recorrente não contesta esta realidade. 
 
 3. Contudo, entende que, mesmo assim, o Tribunal Constitucional deve conhecer do 
 recurso. 
 
 4. Na verdade, o que sucedeu foi que as instâncias e o STJ não deram o devido 
 relevo ao facto, provado nos autos, de que o réu C. ‘tinha ingerido álcool antes 
 do acidente, cheirando o seu hálito a ele depois do mesmo acidente”. 
 
 5 Porque as disposições legais ao caso aplicáveis, referentes à repartição do 
 
 ónus da prova, fazem impender sobre o autor a demonstração do concreto grau de 
 alcoolémia do réu C. e da sua influência no acidente, bem como do nexo causal 
 entre este grau de alcoolémia e as consequências do sinistro, a acção acabou por 
 naufragar, tendo aquele réu sido absolvido dos pedidos. 
 
 6. Ora, se o sistema jurídico português contivesse norma pela qual se presumisse 
 que os condutores de acidente de viação que tivessem ingerido álcool antes do 
 acidente por esse álcool estavam influenciados na altura do mesmo, fazendo 
 recair sobre eles o ónus da prova de que o acidente e as suas consequências se 
 não deveram a esse facto, o autor não teria sido confrontado com a necessidade 
 de fazer a chamada “prova diabólica”, tanto mais que está também demonstrado nos 
 autos, documentalmente, que o réu C. não colaborou no exame de despistagem de 
 
 álcool no sangue a que foi submetido, tendo impedido, por essa forma, a 
 determinação do grau de alcoolémia que possuía. 
 
 7. Estamos, consequentemente, em presença, por um lado de normas jurídicas que 
 fazem impender sobre as vítimas de acidentes de viação a prova de que o condutor 
 estava influenciado pelo álcool e que possuía um grau de alcoolémia superior ao 
 permitido legalmente, sendo ele o culpado do acidente e das suas consequências, 
 e por outro lado de normas jurídicas que não retiram, em termos de justiça 
 material, as devidas consequências do facto de um dos condutores ter ingerido 
 
 álcool antes do acidente, mormente fazendo recair sobre ele, através de 
 presunções e da inversão do ónus da prova, a necessidade de demonstração da 
 inexistência de culpa da sua parte. 
 
 8. As normas jurídicas, que fazem parte do sistema jurídico civilístico 
 português, inerentes à responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, 
 são, por isso, imprestáveis para uma solução justa e equilibrada, sendo que a 
 inexistência de normas que prevejam a presunção de culpa do condutor que ingeriu 
 
 álcool antes do acidente, seja qual for o grau de alcoolémia que demonstre, e 
 que sobre ele façam impender a prova do concreto grau de alcoolémia que possuía 
 e da inexistência de culpa da sua parte, é atentatória das mais elementares 
 regras da justiça material. 
 
 9 Por isso o autor vai intentar contra o Estado Português acção com vista a 
 condenação deste em indemnização, esta derivada da sua responsabilidade na 
 omissão de fazer aprovar e integrar no ordenamento jurídico normas que evitem 
 aquela injustiça material, a qual, no caso dos autos, levou à absolvição do réu 
 C. quanto aos pedidos formulados pelo autor e obstou a que este visse vencedora 
 a sua pretensão de ser indemnizado pelos prejuízos derivados do acidente de 
 viação já melhor referenciado no presente processo.
 
 10. Ora, presume-se que nessa acção, que o autor vai intentar contra o Estado, 
 até por dever de oficio de quem o representa, no caso o Ministério Público, o 
 Estado venha defender-se alegando, entre o mais, que mesmo que o sistema 
 jurídico estivesse provido de normas que contemplassem a presunção de culpa do 
 condutor que tivesse ingerido álcool antes do acidente e a necessidade de prova 
 a produzir por este quanto ao grau de alcoolémia de que era portador, sempre o 
 autor, no caso concreto, na esteira do que decidiu a Relação, na interpretação 
 que ela fez do art° 487°, n° 1, do Código Civil, teria que demonstrar o nexo 
 causal entre aquele grau de alcoolémia e a produção dos efeitos que ao acidente 
 respeitam, designadamente em termos dos danos sofridos 
 
 11. Estaremos então em presença de questão jurídica de constitucionalidade 
 idêntica àquela que o autor submeteu ao Tribunal Constitucional. 
 
 12. Pensa o autor, por isso, que não faz sentido que esta questão não seja agora 
 apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, pois para além do interesse 
 jurídico da mesma em termos gerais, existe um interesse concreto do autor em que 
 ela seja decidida nos presentes autos, o que até em termos de economia 
 processual se impõe, sem prejuízo de se reconhecer que não existe no ordenamento 
 jurídico-constitucional português o chamado recurso de amparo para o Tribunal 
 Constitucional. 
 
 13. Todavia, deixar a apreciação e conhecimento da questão trazida peio autor ao 
 Tribunal Constitucional para eventual apreciação posterior no processo 
 correspondente à acção que este vai intentar contra o Estado será, na prática, 
 relegar para mais tarde o conhecimento de problemática que pode desde já ser 
 conhecida, considerando que os presentes autos contêm todos os elementos 
 indispensáveis a esse conhecimento 
 
 14 O autor tem, desta forma, não só uma legitima expectativa quanto à apreciação 
 e decisão sobre a questão que colocou ao Tribunal Constitucional, como o direito 
 de ver esta questão dilucidada desde já e nestes autos, sob pena de se fazer 
 prorrogar no tempo decisão judicial cujo não conhecimento violará os seus 
 direitos e interesses substantivos e processuais.
 
 15. Acresce que o conhecimento da questão de inconstitucionalidade submetida 
 pelo autor ao Tribunal Constitucional tem todo o interesse para o ordenamento 
 jurídico, nomeadamente em termos de certeza do direito aplicável, atendendo a 
 que se trata de problemática juridicamente controvertida 
 Termos em que deverá revogar-se a decisão sumária proferida pelo Exmo. Relator, 
 ordenando-se o prosseguimento dos termos do recurso 
 
  
 
  
 
 2. Fundamentação
 
  
 
  
 O ora reclamante interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto 
 na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo 
 qual o recorrente pretendia ver apreciada a inconstitucionalidade material da 
 norma do artigo 487º, n.º 1, do Código Civil, interpretada no sentido de que nos 
 acidentes de viação em que um dos condutores se encontre sobre influência do 
 
 álcool compete ao lesado provar a culpa desse condutor como autor da lesão, bem 
 como do nexo de causalidade entre aquela influência, o acidente e as suas 
 consequências.
 
  
 Pela decisão sumária ora reclamada, o relator entendeu ser de não tomar 
 conhecimento do recurso, por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos 
 processuais, por considerar que não tinha sido aplicada, na decisão recorrida, a 
 interpretação cuja conformidade constitucional era submetida à apreciação do 
 Tribunal Constitucional.
 
  
 Na reclamação, o interessado não contesta essa realidade e não põe em causa, por 
 isso, o fundamento da decisão. Entende, no entanto, que apesar disso, o Tribunal 
 devia apreciar a questão de constitucionalidade que lhe foi colocada por ser do 
 interesse para o ordenamento jurídico, nomeadamente em termos de certeza do 
 direito aplicável, e porque é também do interesse concreto do autor, visto que 
 irá intentar contra o Estado Português acção de condenação em responsabilidade 
 civil por omissão legislativa onde se poderá colocar a mesma questão de 
 constitucionalidade.
 
  
 Ora, a competência dos tribunais é de ordem pública e só pode ser exercida 
 dentro do quadro legalmente definido, sendo também por essa razão que esse é um 
 pressuposto processual cujo conhecimento precede o de qualquer outra questão.
 
  
 O Tribunal Constitucional não pode, por conseguinte, pelo simples uso de um 
 poder discricionário fundado na conveniência do recorrente em que a questão seja 
 já analisada, postergar os pressupostos próprios do recurso de 
 constitucionalidade e exercer uma competência de que não dispõe, qual seja a de 
 corrigir a decisão recorrida fora das situações em que a questão de 
 constitucionalidade tenha funcionado como ratio decidendi.
 
  
 A reclamação não tem, portanto, qualquer cabimento.
 
  
 
  
 
 3. Decisão
 
  
 Termos em que se decide indeferir a reclamação e manter a decisão reclamada.
 
  
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
 
 
 Lisboa, 23 de Julho de 2008
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão