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Processo n.º 751/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., este veio intentar, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, uma Acção de Reconhecimento de Direito contra o Presidente da Câmara Municipal d---
----------, pedindo que, sendo reconhecida a inconstitucionalidade do n.º 4 do art.º 21 do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro, seja declarado que o benefício constante dessa norma seja igualmente aplicável a funcionários promovidos antes de 1997 e, assim, reconhecido ao A. o direito a beneficiar desse regime e a ser posicionado em escalão imediatamente superior àquele em que foi posicionado um seu colega da Câmara.
2. Aquele Tribunal, por sentença de 4 de Maio de 2004, declarou
“inconstitucional a norma do art.º 21º n.º 4 do Dec. Lei n.º 404-A/98, de 18/12, na parte em que restringe o benefício de posicionamento no escalão imediatamente superior apenas aos funcionários promovidos em 1997, na medida em que permite que funcionários com menor antiguidade na categoria aufiram uma remuneração superior a funcionários com maior antiguidade, na mesma categoria, promovidos em data anterior a 1997” e, consequentemente, julgou procedente a acção, reconhecendo o direito do Autor a beneficiar da aplicação do n.º 4 do art.º 21º do Dec. Lei n.º 404-A/98, de 18/12, apesar do promovido antes de 1997. Escudou-se, para isso, na seguinte fundamentação:
“[...]Preceitua o art.º 21º, n.º 4 do Dec. Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro – diploma que estabelece o regime geral da estruturação de carreiras da Administração Pública (incluindo a administração local – art.º 2º, n.º 2):
“Serão igualmente posicionados no escalão imediatamente superior os funcionários que na sequência de promoção ocorrida em 1997 sejam posicionados em escalão a que corresponda índice igual ou inferior ao atribuído a outros funcionários do mesmo organismo e com a mesma categoria e escalão que não foram promovidos ou o venham a ser durante 1998”. Ora tendo em consideração que a norma transcrita limita o âmbito de aplicação exclusivamente aos funcionários que foram promovidos em 1997 e já não também a todos os outros funcionários, como o A. que foram promovidos anteriormente, concordando com a posição assumida pelo A. e o Mº.Pº. (sendo que o Réu optou por não ter feito qualquer intervenção relevante nos autos, na medida em que apenas se limitou a juntar procuração – fls. 18), entendemos que, aplicando a norma em causa como a Câmara Municipal a aplicou em relação ao A., se mostra violado o princípio da igualdade e do direito à retribuição igual para trabalho igual, consagrados nos arts. 13º e 59º, n.º 1, al. a), ambas da Constituição da República Portuguesa, sendo aquele entendido como proibindo a criação de medidas ou interpretações que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento, não fundadas ou sem qualquer motivo ou fundamentação razoável ou objectiva. Se a norma em causa visa assegurar que um funcionário de menor antiguidade na mesma categoria não possa auferir uma remuneração superior a um outro da mesma categoria, com maior antiguidade, o facto de restringir o benefício do posicionamento no escalão imediatamente superior apenas aos funcionários promovidos em 1997 e não a outros promovidos anteriormente (como é o caso do A.
– ponto 1 da matéria provada), vem permitir que funcionário com menor antiguidade, da mesma categoria (como o funcionário da CM da -----------------
[...], que é mais moderno na categoria cerca de 3 anos) possa auferir uma remuneração superior, que manifestamente, não resulta ou se funda em qualquer critério objectivo; antes, aliás, a menor antiguidade pressuporia remuneração inferior e não superior. Deste modo, na perspectiva apontada, a norma em causa viola os princípios constitucionais ínsitos nos arts.13º (princípio da igualdade) e 59º n.º 1, al. a), ambos da CRP, sendo, nessa interpretação, materialmente inconstitucionais. Assim, concluímos pela inconstitucionalidade daquela norma legal e, em consequência, pelo direito peticionado pelo A. nesta acção de reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos.[...]”
3. Veio então o Ministério Público, “nos termos das disposições conjugadas dos artºs 70º, n° 1 a), 72°, nos 1 a) e 3, 75°, n° 1, 75°-A n° 78°, n° 4, todos - da Lei n° 28/82, de 15.11, interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados, dado que:
1. Com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios Constitucionais ínsitos nos artºs 13° (princípio da igualdade) e 59°, n° 1 a), ambos da Constituição da República Portuguesa;
2. A douta sentença em apreço recusou a aplicação da norma do art.º 21º, n° 4 do D.L. n° 404-A/98, de 18.12, 'na parte em que restringe o benefício do posicionamento no escalão imediatamente superior apenas aos funcionários promovidos em 1997, na medida em que permite que funcionários com menor antiguidade na categoria aufiram uma remuneração superior a funcionários com maior antiguidade, na mesma categoria, promovidos em data anterior a 1997”.
4. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, concluindo a sua alegação da seguinte forma:
“1º - É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a interpretação normativa do artigo 21º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 404A/98, de 18 de Dezembro, na parte em que restringe o benefício de posicionamento no escalão imediatamente superior apenas aos funcionários promovidos em 1997, na medida em que permite que funcionários com menor antiguidade na categoria aufiram uma remuneração superior a com maior antiguidade na mesma categoria, promovidos em data anterior a 1997.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.”
O recorrido, por seu turno, notificado, nada disse.
Dispensados os vistos, cumpre decidir
II. - Fundamentação
5. O n.º 4 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro, estatui:
“Artigo 21º Situações especiais
[...]
4 - Serão igualmente posicionados no escalão imediatamente superior os funcionários que na sequência de promoção ocorrida em 1997 sejam posicionados em escalão a que corresponda índice igual ou inferior ao atribuído a outros funcionários do mesmo organismo e com a mesma categoria e escalão que não foram promovidos ou o venham a ser durante 1998.
[...]”
A decisão recorrida entendeu que “aplicando a norma em causa como a Câmara Municipal a aplicou em relação ao A., se mostra violado o princípio da igualdade e do direito à retribuição igual para trabalho igual, consagrados nos arts. 13º e 59º, n.º 1, al. a), ambas da Constituição da República Portuguesa”. Tal norma seria, por conseguinte, inconstitucional por violação dos citados artigos da Constituição.
6. A questão de constitucionalidade que agora vem submetida à consideração do Tribunal Constitucional é, no essencial, idêntica à que, já por diversas vezes, este teve oportunidade de julgar.
Assim, no Acórdão n.º 254/2000 (publicado no Diário da República, I Série- A, de
23 de Maio de 2000) o Tribunal declarou “inconstitucionais com força obrigatória geral, por violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59º da Constituição, enquanto corolário do princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, as normas constantes do n.º 1 do art.º 3º do Decreto-Lei n.º 204/91, de 7 de Junho, e do n.º 1 do art.º 3º do Decreto-Lei n.º 61/92, de 15 de Abril, na medida em que, limitando o seu âmbito a funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, permitem o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria”. Para assim decidir, fundamentou-se essa decisão nos Acórdãos n.ºs 180/99, 409/99, 410/99 (todos disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), concluindo:
“[...] A violação do princípio da igualdade, precipitado no de que a «trabalho igual deve corresponder salário igual», como é bom de ver, surpreendeu-a o Tribunal quando os conteúdos normativos em questão, os quais, ao limitarem o seu
âmbito aos funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, podiam, na prática, levar a que, dentro da mesma categoria, funcionários de maior antiguidade viessem a auferir remuneração inferior reportadamente a funcionários de menor antiguidade. Ora, foi justamente para o estabelecimento dessa diferenciação - diferenciação que não foi posta em crise na «resposta» do Primeiro-Ministro - que o Tribunal não divisou (nem agora divisa, em face dos argumentos utilizados nos transcritos acórdãos e que aqui se acolhem na sua integralidade) qualquer fundamento constitucionalmente relevante que pudesse justificar tal estabelecimento. Anota-se ainda que, na aludida «resposta», a respectiva panóplia argumentativa não logra, na perspectiva seguida por este Tribunal, infirmar o raciocínio conclusivo de harmonia com o qual se lobriga a existência de um interesse constitucionalmente atendível que permita sustentar a diferenciação causada pelas normas em apreciação, designadamente um interesse esteado no estatuto da função pública, o qual, de todo em todo, não assume uma qualquer especificidade de onde decorra a postergação do princípio de «para trabalho igual, salário igual».
É que, se foi escopo dessas normas a tentativa de reparação ou compensação de injustiças, não deixa de ser certo que as soluções legais delas emergentes vieram causar uma casuística dissemelhança cuja averiguação ou valoração se não vislumbra encontrar espaço num indirizzo político ainda permitido pela não disponibilidade constitucional (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 1982, 64). E, por isso, também aqui se não deixará de concluir pela enfermidade constitucional do questionado normativo. [...]”
Por seu turno, no Acórdão n.º 405/2003 (publicado no Diário da República, I Série- A, de 15 de Outubro de 2003) declarou-se, “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário do princípio constitucional da igualdade consagrado no seu artigo 13.º, das normas conjugadas dos artigos 16.º, alínea b), 85.º, n.º 1, e 86.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 564/99, de 21 de Dezembro, e do mapa III constante do anexo II ao mesmo diploma, na medida em que permitem, na carreira de técnico de diagnóstico e terapêutica, o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria”. Para tal, escudou-se o acórdão, nomeadamente, na seguinte fundamentação:
“9. A questão que se coloca no âmbito do presente processo é a de saber se, por força da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 564/99, se procedeu a um reposicionamento de técnicos de diagnóstico e terapêutica que haja implicado uma inversão relativa de posições de funcionários colocados na mesma categoria e na mesma carreira, levando a que funcionários com maior antiguidade passassem a auferir menos do que outros com menor antiguidade. O problema só se suscita, naturalmente, em relação a técnicos integrados na mesma categoria e na mesma carreira, pois apenas aí existe uma situação de paridade funcional que permitirá falar de uma eventual diferenciação de tratamento injustificada, em violação do princípio constitucional da igualdade, contido na norma constitucional do artigo
13.º, em articulação, neste caso, com a regra do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição (“para trabalho igual, salário igual”). Não é possível realizar comparações entre índices de diversas categorias e carreiras, pois as disparidades existentes nos respectivos índices decorrem da diferença de escalões (exemplo: um técnico de 2.ª classe no escalão 6 possui um índice remuneratório superior a um técnico de 1.ª classe no escalão 1) e, por isso, não só se apresentam prima facie materialmente justificadas como não constituem objecto do pedido. A norma do artigo 16.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 564/99 – à semelhança, aliás, do que já ocorria com a alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 203/90 – determina que, na promoção à categoria superior, a integração do funcionário promovido na respectiva escala indiciária se faça para o escalão a que na escala indiciária da categoria para a qual se faz a promoção corresponda o índice superior mais aproximado, se vier já auferindo remuneração igual ou superior à do escalão 1, ou para o escalão seguinte, sempre que a remuneração que caberia em caso de progressão na categoria de origem fosse superior. Por sua vez, importa notar que o artigo 85.º, ao regular a transição de regime, dispõe que os funcionários transitam “na categoria e no escalão actualmente detidos”. E, recorde-se, o artigo 86.º faz aplicar, de acordo com um programa faseado, novas escalas indiciárias nos termos do anexo II ao Decreto-Lei n.º
564/99. Colocam-se, então, problemas de disparidade entre funcionários, porquanto um funcionário promovido para uma nova categoria ao abrigo do Decreto-Lei n.º
564/99 é integrado numa escala indiciária de acordo com o artigo 16.º daquele diploma, ao passo que um funcionário que já se encontrava nessa categoria – e nela se mantém nos termos do artigo 85.º do Decreto-Lei n.º 564/99 – pode ver-se colocado num índice inferior, apesar de possuir maior antiguidade na categoria.
[...] Poder-se-ia dizer, em contrário, que o critério relevante não pode ser (ou não pode ser apenas) o da antiguidade na categoria, devendo ainda atender-se a outros factores, como a antiguidade na carreira de técnico de diagnóstico e terapêutica globalmente considerada. Desse modo, as disparidades quanto ao nível indiciário resultantes da promoção a uma categoria superior poderiam ser justificadas pela circunstância de o funcionário se encontrar num escalão mais elevado na categoria de onde é promovido. E, a não existir uma regra como a do artigo 16.º, alínea b), poderia ocorrer que um técnico fosse promovido e, apesar de passar a exercer funções para os quais se exige um maior grau de responsabilidade e desempenho, permanecer, afinal, no mesmo índice remuneratório em que se encontrava. Mas, possuindo uma determinada categoria um dado conteúdo funcional – descrito no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 564/99 – o princípio “a trabalho igual, salário igual” impõe que o tertium comparationis seja o critério da antiguidade na categoria. De resto, foi esse o critério – repete-se: o critério da antiguidade na categoria – que o Tribunal utilizou, entre outros, nos Acórdãos n.ºs 548/98 ou 254/00, concluindo pela inconstitucionalidade de normas que permitiam o recebimento de remuneração superior por funcionários que acederam mais recentemente a uma dada categoria. Aliás, o argumento agora apreciado só poderia funcionar para os casos em que os funcionários mais recentemente promovidos tivessem maior antiguidade na carreira, sendo inaplicável às restantes situações, igualmente possíveis, em que estes funcionários tivessem igual ou menor antiguidade na carreira – o que se apresenta decisivo.
10. Na sua resposta, o Primeiro-Ministro adianta que a interpretação referida no ponto anterior é manifestamente “não querida” e “não contida” nas normas impugnadas, não podendo a Administração Pública, vinculada que está a princípios constitucionais de igualdade e de justiça, proceder àquela interpretação espúria. A vinculação da Administração Pública à Constituição é indiferente para a solução do caso em apreço. Sem entrar na questão de saber se tal vinculação prevalece sobre o princípio da legalidade administrativa e permite mesmo que as autoridades recusem a aplicação de normas jurídicas com fundamento em inconstitucionalidade, o ponto decisivo é que para o controlo abstracto da constitucionalidade é inútil saber se os órgãos e agentes da Administração vêm adoptando uma prática diferente na aplicação das normas impugnadas. A questão só assumiria relevância se, porventura, dessa prática fosse possível inferir a existência de uma interpretação alternativa das normas impugnadas, essa conforme à Constituição. E parece ser esse o sentido da resposta do Primeiro-Ministro, quando refere que a interpretação conducente a situações de desigualdade é manifestamente “não querida” pelo legislador. O problema é que se não aponta uma interpretação alternativa que, correspondendo à vontade real do legislador, se mostre também conforme às normas e aos princípios constitucionais. E, de facto, não é possível descortinar nas normas em apreço um sentido que não conduza a uma disparidade de posições remuneratórias de funcionários na mesma categoria, ditada pela diferença da data em que foram promovidos nessa categoria. As coisas passar-se-iam de modo diverso se, por exemplo, o legislador tivesse adoptado cláusulas de salvaguarda ou se tivesse instituído um esquema diferente na transição dos funcionários. Simplesmente, não só essas cláusulas de salvaguarda não foram adoptadas (como tal não pode valer a norma do artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, que se limita a salvaguardar a não redução de remunerações e a não diminuição de expectativas de evolução, mas já não proíbe a ultrapassagem por funcionários com menor antiguidade), como a norma do artigo 85.º, n.º 1, ao “fechar” ou “congelar” os funcionários em trânsito na categoria e no escalão que detinham – solução que não compete ao Tribunal questionar –, impediu a realização de uma qualquer interpretação alternativa em conformidade com a Constituição.[...]”
É esta jurisprudência que, por manter inteira validade e ser integralmente aplicável ao caso, aqui se reitera.
III. - Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59º da Constituição, enquanto corolário do princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, a norma constante n.º 4 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro, na medida em que, limitando o seu
âmbito apenas a funcionários cuja promoção ocorreu em 1997, permite o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria; b) negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que respeita
à questão de constitucionalidade. Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 12 de Novembro 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício