Imprimir acórdão
Processo n.º 419/99
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Pelo Acórdão n.º 14/2004, foi indeferida a reclamação deduzida pelo recorrente A. contra o despacho do relator, de 31 de Outubro de
2003, que, constatando que o mesmo não constituíra advogado no prazo de 10 dias para tanto fixado (despacho de 1 de Outubro de 2003), julgou findo o presente recurso, nos termos do artigo 33.º do Código de Processo Civil (CPC).
Em 6 de Fevereiro de 2004, deu entrada na Secretaria deste Tribunal, remetido por telecópia, requerimento de arguição de nulidade do referido Acórdão n.º 14/2004 e pedido de reenvio de questão pré-judicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (fls. 108 e 109), acompanhado de requerimento (fls. 107) em que solicitava o reconhecimento de justo impedimento de apresentação tempestiva daquele requerimento, aduzindo que desde o dia 2 de Fevereiro de 2004 se encontrava “vitimado por um acesso de gota (crise aguda), doença de que padece cronicamente” e que “só hoje pôde deslocar-se ao serviço médico de urgência do Centro de Saúde local – conforma demonstra através do anexo Doc. 1 –, para observação e renovação da medicação”. Porém, contrariamente ao anunciado, o recorrente não anexou a esse requerimento qualquer documento, nomeadamente o documento que demonstraria a alegada situação de doença.
Em 13 de Fevereiro de 2004 deram entrada no Tribunal Constitucional os originais dos referidos requerimentos, acompanhados de um documento, consistente num recibo, emitido pelo Centro de Saúde de Viana do Castelo, datado de 5 de Fevereiro de 2004, que refere ter sido recebida de A. a importância de € 2,70 por uma “consulta urgente”.
Por despacho de 19 de Fevereiro de 2004, o relator não deu por verificado o justo impedimento alegado a fls. 107, “dado que, mesmo que o facto aí referido pudesse integrar aquela figura, o recorrente não ofereceu logo a respectiva prova”, e, consequentemente, não admitiu a prática, fora do prazo, do acto consubstanciado na junção do requerimento de fls. 108 e 109.
Em 11 de Março de 2004, o recorrente veio requerer que lhe fossem especificados os fundamentos daquele despacho, dado que o requerente tinha “perfeita consciência de que, junto com o seu requerimento antecedente, fez seguir a prova do incidente processual aí então alegado, a qual designou como Doc. 1”.
Sobre este requerimento recaiu o despacho do relator, de
21 de Abril de 2004, do seguinte teor:
“Não vem imputada ao despacho de fls. 118 qualquer obscuridade ou ambiguidade que cumpra aclarar.
O que nele se afirmou foi que o requerimento de fls. 107, remetido por telecópia, em que se invocava justo impedimento, não apresentava logo a prova do facto que integraria esse impedimento.
Não oferece logo a respectiva prova a parte que não a envia com o requerimento em que invoca o justo impedimento, remetido por telecópia, mas só o faz, 7 dias depois, com o envio do original desse requerimento.”
É contra este despacho que o recorrente deduziu, ao abrigo do n.º 2 do artigo 78.º-B da Lei do Tribunal Constitucional, reclamação para a conferência, com a seguinte fundamentação:
“1. No douto despacho de fls. 118, segundo a respectiva aclaração constante do não menos douto despacho datado do dia 21 do mês transacto, recém-notificado ao principal (se não o único) interessado, entende-se em tirada decisória que não cumpre a lei – concretamente, o preceito do n.º 2, ab initio, do artigo 146.º do Código de Processo Civil – que manda «oferec(er) logo a respectiva prova» (sic; sublinhado do recorrente) a parte processual «que não a envia com o requerimento em que invoca o justo impedimento, remetido por telecópia, mas só o faz, 7 dias depois, com o envio do original desse requerimento» (sic; sublinhado no despacho citado). Ora,
2. em bom rigor exegético, esta singular tese jurisprudencial carece em absoluto de base de sustentação – não tem, salvo todo o devido respeito, lógica jurídica absolutamente nenhuma! –, como facilmente se demonstrará através duma expedita operação de reductio ad absurdum. Na verdade,
3. como é que – observatio prima – um sujeito processual poderá efectivamente «enviar logo com o requerimento remetido por telecópia» a prova documental do justo impedimento nessa peça invocado ... se o documento a oferecer consistir (cf. artigo 362.º do Código Civil), v. g., numa ficha em cartão ou cartolina, numa folha de papel grafada no formato A3, num livro, numa película fotográfica, num «CD», numa fita magnética, numa audiocassete, num
«DVD», numa disquete informática?! É evidente que não pode, que tal envio concomitante é, em todas as configurações referidas, fisicamente impossível. Por conseguinte,
4. forçoso será concluir – sob pena de precipitar-se no caso, necessariamente, uma interpretação revogatória da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo Civil, projecto jurisprudencial esse obviamente inadmissível, porque materialmente inconstitucional – que o advérbio de tempo vertido na locução «oferecerá logo a respectiva prova», ínsita no preceito do artigo 146.º antecitado, não significa, no caso de teletransmissão inicial para o tribunal (seja através de telecópia, seja igualmente através de correio electrónico: as vicissitudes procedimentais apontadas são as mesmas, o que neste contexto parifica as previsões das três últimas alíneas: c), d) e e) do n.º 1 do supracitado artigo 150.º) dos actos processuais de parte praticados por escrito, que a prova documental em causa tenha que ser imediatamente oferecida com o telefaxe (ou o e-mail) que a menciona. Tal segmento normativo não pode, obviamente, acusar esse sentido literal. Aliás,
5. se fosse aquela a exegese correcta da locução legislativa sindicada – observatio secunda –, ter-se-ia de concluir, forçosamente – em virtude do disposto, conjugadamente, na citada alínea e) do n.º 1 e no n.º 3 do mesmo artigo 150.º, donde literalmente não resulta a possibilidade de envio diferido, «não logo», dos documentos que devam acompanhar a peça processual pré-teletransmitida! –, que também os elementos documentários apresentados junto com todo e qualquer articulado ou requerimento de parte objecto de teletransmissão prévia para o tribunal da causa deveriam seguir (se possível: ut retro) «logo» pela mesma via. E, no entanto, que não é tal entendimento aceite nesse Tribunal Constitucional, desde logo, demonstra-o plenamente o facto, por exemplo, de o requerimento de «suspensão da instância» que o mesmo recorrente apresentou, em 4 de Dezembro de 2003, no Proc. n.º 579/03 da 3.ª Secção ter sido liminarmente deferido (conforme o requerente acaba de tomar conhecimento, pelo teor duma insólita promoção do Agente do Ministério Público, datada de 30 de Março de 2004, no Proc. n.º 1424/02 do Supremo Tribunal Administrativo), muito embora haja aquele requerimento sido inicialmente transmitido por telecópia ... sem que tivesse seguido logo o «Doc. A» nesse escrito dito «anexo» (decisão de deferimento transitada que ademais tem implícito o suprimento jurisdicional da inconstitucionalidade por omissão, parcial, do preceito do n.º 3 do artigo 150.º do Código em questão, cuja fattispecie deverá igualmente contemplar os «meios previstos na alínea c) do n.º 1»). Por consequência,
6. sendo – apodicticamente – outro o alcance do advérbio «logo» no contexto legal em referência, impor-se-á objectivamente no caso se descubra qual acolá a sua precisa significação lógico-jurídica (partindo do pressuposto, com esteio na melhor doutrina: apud Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 5.ª edição, vol. I, Coimbra, 1961, p. 111 e n.p.p.(1), de que o preceito do n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 28/92, de
27 de Fevereiro, tacitamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 182/2000, de 10 de Agosto, através do texto que introduziu no n.º 3 daquele artigo 150.º, não foi repristinado, por falta de norma tal expressando, pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro). O que, por sinal, tampouco será dificultoso: basta conhecer-se o lugar paralelo, na economia da nossa lei processual civil, em cujo contexto a locução em análise positivamente desponta. E esse é, notoriamente, o do regime – de «oferecimento imediato» – das provas no quadro dos incidentes da instância, consagrado no artigo 302.º do Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de Dezembro de 1961, preceito originalmente estatuindo que «deve a parte oferecer logo o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova» (normando do recorrente); só que, um legislador de serviço algo mais iluminado, tratando da Reforma de 1995, ter-se-á apercebido da incongruência existente entre aquele comando legal (artigo entretanto renumerado em 303.º e, subdividido, tomado o segundo da secção pertinente, com a epígrafe originária «Oferecimento imediato das provas» criteriosamente alterada para «Indicação das provas e oposição») e o do então n.º 3 do artigo 380.º do mesmo compêndio legislativo (relativo a matéria do incidente da «liquidação» actualmente integrada no n.º 2 do mesmo artigo), determinando que «as provas são oferecidas e produzidas, sendo possível, com as da restante matéria da acção e da defesa» (sic; e já não «imediatamente»), eliminou aquele controverso advérbio de tempo “logo” do texto legal de base onde surgira, o qual
(presentemente ínsito no n.º 1 do artigo 303.º) passou a registar, apenas, que
«devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova», ou seja: já não, generalizadamente, logo, tendo-se todavia mantido tal advérbio no preceito relativo ao incidente do «justo impedimento» controvertido por encontrar-se este ali inserto, sistematicamente, noutro sector. Com efeito,
7. é o próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que explica a manutenência – e traduz o sentido – daquele termo adverbial, através da declaração, «em sede de incidentes da instância», de que com a reforma empreendida «amplia-se a tramitação tipo plasmada nos artigos
302.º a 304.º do Código de Processo Civil» (o que, patentemente, inclui a
«indicação das provas») «ao processamento de todo e qualquer incidente, que não apenas aos incidentes da instância nominados, tipificados e regulados pela lei de processo, no capítulo em questão». Portanto,
8. a inferência lógica que em definitivo se impõe na matéria é, indubitavelmente, a de que a letra do n.º 2 do artigo 146.º do Código de Processo Civil, exarando que «a parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova», quer pura e simplesmente dizer que tal incidente será logo instruído (com a apresentação do original da petição e provas respectivas, a suscitar eventual contestação e pertinentes contraprovas) para ser imediatamente julgado, ou seja: decidido previamente ao julgamento da acção ou questão principal ou do recurso em causa,
9. sendo assim – demonstradamente – ilícita a dedução, contudo acolhida no despacho reclamado, de que tal texto significaria a imediação – mais do que do oferecimento, da própria produção – da prova in casu indicada em termos de prévia teletransmissão obrigatória desta.
10. Em conclusão: na medida em que sufraga esta dedução ilógica, absolutamente inválida, o despacho sob reclamação infringe flagrantemente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais constitucionalmente consagrada: deve ser, consequentemente, revogado, com todos os legais efeitos.”
O recorrido não apresentou resposta a esta reclamação.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O argumento que o recorrente utiliza para sustentar a admissibilidade de a prova do justo impedimento ser remetida ao tribunal em momento ulterior à alegação, por telecópia, da ocorrência de situação desse tipo, ligado à eventualidade de tal prova ser fisicamente insusceptível de envio por telecópia, é manifestamente descabido no presente caso, em que a “prova” de que o recorrente dispunha (recibo do pagamento de uma consulta no Centro de Saúde de Viana do Castelo) era um documento em suporte de papel, de formato inferior a A4 (cf. fls. 111), que podia – e devia – ser remetido por telecópia juntamente com o requerimento em que era feita tal alegação.
A interpretação da regra do n.º 2 do artigo 146.º do CPC, acolhida no despacho ora reclamado, de que o oferecimento da prova do justo impedimento deve acompanhar a respectiva alegação é a pacificamente seguida pela jurisprudência e a que corresponde ao sentido literal do preceito e à sua finalidade de permitir uma célere decisão judicial do incidente, de tramitação simplificada. Significativamente, o n.º 3 do artigo 150.º do CPC, na redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, limitou a possibilidade de envio posterior (no prazo de cinco dias) dos documentos que devem acompanhar peças processuais aos casos em que estas peças são enviadas através de correio electrónico ou de outro meio de transmissão electrónica de dados, previstos nas alíneas d) e e) do precedente n.º 1, e já não aos casos, previstos na alínea c) deste n.º 1, de envio através de telecópia, que foi o meio de comunicação utilizado pelo ora reclamante.
Assim sendo, não merece censura o despacho reclamado.
Aliás, a “prova” extemporaneamente apresentada, consistente num recibo de uma consulta urgente, em 5 de Fevereiro de 2004, no Centro de Saúde de Viana do Castelo, é claramente insuficiente para que se dê como provado quer a espécie de doença que o recorrente afirma ter registado, quer a sua duração, quer o seu carácter incapacitante, em termos de se poder concluir pela verificação de um obstáculo à prática atempada do acto em causa
(arguição de nulidade de acórdão), acto esse que, de resto, devia ser subscrito por mandatário forense.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 23 de Junho de 2004 Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos