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Processo n.º 206/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
  
 Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
 1. Relatório
 
 
 
  
 Pelo juiz da 8.ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa foi proferido despacho, a 
 fls. 478 e 479, com o seguinte teor: 
 
  
 O Ministério Público deduziu acusação contra A. imputando-lhe a prática de um 
 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 296.º, 297.º, n.º 1, alínea a e 
 f), e um crime de burla, p. e p. pelo art. 313.º, n.º 1, todos do Código Penal 
 de 1982, em vigor na altura da prática dos factos.
 Os factos por que o arguido foi acusado foram praticados entre 1990 e 1992, 
 quando ainda vigorava, portanto, a versão original do Código Penal (de 1982).
 Nenhum despacho foi notificado ao arguido, sendo que este foi declarado 
 contumaz.
 No entanto, face ao regime estabelecido no momento da prática dos factos (Código 
 Penal de 1982), e de acordo com os fundamentos expressos no Acórdão do Tribunal 
 Constitucional n.º 110/2007 proferido no processo n.º 788/2006, publicado no DR 
 II Série, n.º 56, de 20 de Março de 2007, não é de aceitar que tal declaração de 
 contumácia tenha como efeito a suspensão do prazo de prescrição do procedimento 
 criminal, considerando que a suspensão dos ulteriores termos do processo 
 determinada no art. 336.º do Código de Processo Penal não pode equivaler a uma 
 suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal sem violação do 
 princípio da legalidade ínsito no disposto no art. 29.º, n.ºs 1 e 3, da 
 Constituição da República Portuguesa.
 Ou seja, de acordo com o regime jurídico em vigor na altura da prática dos 
 factos, não se verificou qualquer causa de suspensão ou interrupção do prazo de 
 prescrição do procedimento criminal, designadamente por via da declaração de 
 contumácia.
 Ora o disposto no art. 2.º, n.º 4, do Código Penal (em qualquer das suas 
 versões) estabelece que quando as disposições penais vigentes no momento da 
 prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, 
 
 é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao 
 agente.   
 Não pode verificar-se a aplicação de partes mais favoráveis dos diplomas; estes 
 são aplicados na sua globalidade, em respeito da citada norma, em qualquer das 
 suas versões, verificando-se as consequências da sua aplicação.
 De acordo com o disposto nos arts. 297.º, n.º 1, e 313.º, n.º 1, do Código Penal 
 de 1982, a moldura abstracta da pena correspondente aos factos praticados pelo 
 arguido varia quanto à primeira incriminação entre 1 e 10 anos de prisão e 
 quanto à segunda incriminação entre 30 dias e 3 anos de prisão.
 Segundo o mesmo Código à primeira incriminação (furto qualificado) correspondia, 
 portanto, no máximo, um prazo de prescrição do procedimento criminal de 10 anos, 
 pois o limite máximo da pena abstractamente aplicável a este crime não 
 ultrapassa os 10 anos de prisão (art. 117.º, n.º 1, b), do Código Penal) e à 
 incriminação por burla correspondia um prazo de prescrição do procedimento 
 criminal de 5 anos (art. 117.º, n.º 1, c), do Código Penal).
 Desde 1992 até à presente data já decorreram mais de 10 anos sem que se 
 verificasse qualquer causa de interrupção ou de suspensão do prazo de prescrição 
 do procedimento criminal.
 Resultando a prescrição quanto aos crimes por que o arguido está acusado pela 
 aplicação da lei vigente na data da prática dos factos é essa a lei que se 
 mostra concretamente mais favorável ao arguido, pelo que se vai determinar a 
 extinção do procedimento criminal.
 Em face do exposto, declaro extinto o procedimento criminal. 
 
 […]
 
  
 Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Supremo Tribunal de Justiça, 
 após o trânsito em julgado do mesmo, ao abrigo do artigo 446.º, n.º 1, do Código 
 de Processo Penal, formulando nas alegações respectivas as seguintes conclusões 
 
 (fls. 495 e seguintes):
 
  
 
 […]    
 
 1.        Ao arguido A.foi imputada a prática de um crime de furto qualificado e 
 de um crime de burla p. e p. pelos art.ºs 296º, 297º n.º 1, als. a), e f), e 
 
 313º, n.º 1, todos do Código Penal, por factos que terão ocorrido em 1990 e 
 
 1992;
 
 2.        Em 3 de Julho de 1997 e 4 de Junho de 2003 foi o mesmo declarado 
 contumaz;
 
 3.        Por despacho proferido em 28 de Setembro de 2007 pelo Ex.mo Juiz 
 titular da 1ª secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa, foi declarado extinto o 
 procedimento criminal pendente contra o arguido por, alegadamente, ter decorrido 
 o prazo de prescrição respectivo;
 
 4.        Entendeu o Ex.mo Juiz a quo que a contumácia oportunamente declarada 
 não tinha a virtualidade de suspender o prazo de prescrição do procedimento 
 criminal, uma vez que a redacção do Código Penal em vigor à data dos factos não 
 consagrava essa circunstância como susceptível de produzir tal efeito – cf. art. 
 
 119º do Código Penal e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal nas redacções 
 originárias;
 
 5.        Certo é, porém, que tal interpretação contraria a posição doutrinária 
 assumida pelo assento n.º 10/2000 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 
 
 19 de Outubro de 2000, sem que tenham sido adiantados elementos novos que 
 permitam pôr em crise tal jurisprudência;
 
 6.        Pelo que, independentemente da bondade dos argumentos já conhecidos e 
 para os quais remete o despacho recorrido, deverá considerar-se que a mencionada 
 declaração de contumácia terá suspendido o prazo de prescrição do procedimento 
 criminal;
 
 7.        E, assim, em conformidade com o que ficou exposto, deverá a decisão 
 recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento 
 dos demais trâmites adequados à localização e julgamento do arguido.
 
 […]
 
  
 Por despacho de 17 de Janeiro de 2008, não foi admitido o recurso interposto 
 pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 446.º, n.º 1, do Código de Processo 
 Penal (fls. 506 e 507), com o seguinte fundamento:
 
  
 
 […]
 O Ministério Público interpôs recurso do despacho de fls. 478 e 479 após o 
 trânsito em julgado do mesmo, ao abrigo do disposto no art. 446.º, n.º 1, do 
 Código de Processo Penal na actual versão.
 No entanto, não é possível aceitar a legítima vigência de tal disposição legal 
 introduzida pela reforma operada pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto.
 Na realidade, tal como vem sido defendido nesta Secção (em vários processos) até 
 mesmo face à possibilidade de reabertura da audiência (em eventual favor do 
 arguido, nos termos do disposto no art. 371.º-A do Código de Processo Penal), na 
 linha do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 644/98, o trânsito em julgado 
 constitui um valor com protecção constitucional, como se retira da conjugação do 
 disposto nos arts. 2º, 111º, n.º 1, 205º, n.º 2, e 283.º, n.º 2, da 
 Constituição.
 Não se vislumbra aqui o interesse com dignidade constitucional que permite 
 afastar tal protecção em desfavor do arguido nos casos estabelecidos no art. 
 
 446.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal, pelo que nem sequer são 
 enumerados e desenvolvidos neste despacho os efeitos indesejáveis da violação do 
 trânsito em julgado que, subitamente (aparecem também outros recursos 
 extraordinários que violam o caso julgado) proliferam no nosso ordenamento 
 jurídico.
 Note-se que, ao contrário do recurso no interesse da unidade do direito – 
 previsto no art. 447.º do Código de Processo Penal –, a decisão a proferir 
 produz efeitos no processo cuja decisão já transitou em julgado.
 Já existiu a possibilidade de recurso ordinário (ou para o Tribunal 
 Constitucional) que não foi utilizada ou resultou improcedente, pelo que não se 
 compreende por que razão pode ser interposto um recurso extraordinário 30 dias 
 depois do trânsito em julgado da decisão recorrida, ainda que em prejuízo do 
 arguido.
 Por conseguinte, recuso a aplicação do disposto no art. 446.º, n.º 1, do Código 
 de Processo Penal, na sua redacção actual, na medida em que permite a 
 interposição de recurso de decisão já transitada em julgado por violação do 
 princípio constitucional de respeito pelo caso julgado, ínsito nos arts. 2.º, 
 
 111.º, n.º 1, e 205.º, n.º 2, e 282.º, n.º 3, da Constituição da República 
 Portuguesa e, consequentemente, não admito o recurso interposto pelo Ministério 
 Público a fls. 495.
 
 […]
 
  
 Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao 
 abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional 
 
 (fls. 510).
 
  
 O recurso de constitucionalidade foi admitido, por despacho de fls. 511.
 
  
 Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações (a fls. 516 
 a 522), nas quais formula as seguintes conclusões:
 
  
 
 […]
 
 1.     Atenta a função instrumental reconhecida ao recurso de 
 constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só deve conhecer das questões de 
 constitucionalidade normativa quando a decisão a proferir possa influir 
 utilmente no julgamento de questão de mérito discutido no processo.
 
 2.     Esta reporta-se à prescrição do procedimento criminal que foi decidida no 
 processo em termos coincidentes à que resulta do Acórdão nº 183/2008 do Plenário 
 do Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, e que já não poderá 
 sofrer alteração.
 
 3.     Não deverá, assim, conhecer-se do objecto do recurso.
 
 4.     A entender-se, diferentemente, não deverá ser confirmado o juízo 
 formulado na decisão recorrida, que recusou a aplicação da norma do artigo 446º, 
 nº 1, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade.
 
 […]
 
  
 Não foram apresentadas contra-alegações. 
 
  
 
  
 
 2. Fundamentação
 
  
 A jurisprudência constitucional vem reafirmando que o recurso de 
 constitucionalidade desempenha uma função instrumental, o que implica que só 
 podem ser conhecidas as questões de constitucionalidade quando o seu julgamento 
 puder influir na decisão da questão de fundo.
 
  
 Como, a este propósito, se disse, por exemplo, no Acórdão do Tribunal 
 Constitucional n.º 1170/96, de 20 de Novembro (www.tribunalconstituciolal.pt), 
 aí se citando outra jurisprudência do Tribunal Constitucional:
 
  
 
 […] só se justifica que se proceda ao julgamento de uma questão de 
 constitucionalidade se tal for útil para a apreciação de fundo, de modo a que 
 nesta influa decisivamente.
 Constitui jurisprudência constante do Tribunal Constitucional que o julgamento 
 da questão de constitucionalidade desempenha, sempre, uma função instrumental, 
 apenas se justificando que a ele se proceda se tiver utilidade para a decisão da 
 questão de fundo, como salientou, inter alia, o acórdão nº 454/91, publicado no 
 Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 - Suplemento - 
 concretizando, a seguir, que 'o sentido do julgamento da questão de 
 constitucionalidade há-de ser susceptível de influir na decisão destoutra 
 questão, pois, de contrário, estar-se-ia a decidir uma pura questão académica'.
 O que significa, como, por sua vez, se ponderou no acórdão nº 608/95 (no Diário 
 citado, II Série, de 19 de Março de 1996) que, sendo a decisão de 
 constitucionalidade inócua relativamente à questão de fundo, nomeadamente porque 
 a solução dada a esta sempre se manteria fosse qual fosse o julgamento de 
 constitucionalidade, o recurso carece de efeito útil, perde carácter 
 instrumental naquele processo, e isto obsta ao seu conhecimento.
 Assim, o julgamento da questão de constitucionalidade há-de ser susceptível de 
 influir na decisão da questão de mérito, sob pena de, se assim não for, se estar 
 a decidir uma mera questão académica (cfr. acórdão nº 337/94, publicado no mesmo 
 jornal oficial, II Série, de 4 de Novembro de 1994).
 
  
 No caso, o tribunal a quo declarou extinto o procedimento criminal por entender 
 que, face ao regime estabelecido no momento da prática dos factos (Código Penal 
 de 1982) e de acordo com os fundamentos expressos no Acórdão do Tribunal 
 Constitucional n.º 110/2007, não é de aceitar que a declaração de contumácia 
 tenha como efeito a suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, 
 considerando que a suspensão dos ulteriores termos do processo determinada no 
 art. 336.º do Código de Processo Penal não pode equivaler a uma suspensão do 
 prazo de prescrição do procedimento criminal sem violação do princípio da 
 legalidade ínsito no disposto no art. 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da 
 República Portuguesa.
 
  
 Contrariou, assim, a interpretação de que «no domínio da vigência do Código 
 Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia 
 constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal» constante 
 do Assento n.º 10/2000 (publicado no Diário da República, I Série, de 10 de 
 Novembro de 2000, pág. 6319).
 
  
 Ora, o entendimento preconizado pelo tribunal a quo, no despacho que declarou 
 extinto o procedimento criminal, veio a ser reafirmado pelo Tribunal 
 Constitucional o qual, pelo acórdão n.º 183/2008, de 12 de Março de 2008, tirado 
 em Plenário, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, por 
 violação do artigo 29º, n.º s 1 e 3, da Constituição da República, a norma 
 extraída das disposições conjugadas do artigo 119º, n.º 1, alínea a), do Código 
 Penal, e do artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção 
 originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento 
 criminal se suspende com a declaração de contumácia.
 
  
 Assim sendo, nenhuma utilidade tem a apreciação da questão de 
 constitucionalidade colocada pelo recorrente – a constitucionalidade do disposto 
 no n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Penal, na sua actual redacção, na 
 medida em que permite a interposição de recurso de decisão já transitada em 
 julgado –, pois que, fosse qual fosse a decisão do Tribunal Constitucional sobre 
 essa questão, sempre se manteria a decisão de extinguir o procedimento criminal, 
 em virtude da aplicação da referida declaração de inconstitucionalidade com 
 força obrigatória geral.
 
  
 Na verdade, ainda que o Tribunal Constitucional concedesse provimento ao 
 presente recurso de constitucionalidade, com a consequente admissão do recurso 
 interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do n.º 1 do artigo 
 
 446.º do Código de Processo Penal, este Supremo Tribunal teria que confirmar a 
 decisão recorrida, por força do juízo de inconstitucionalidade, com força 
 obrigatória geral, constante do mencionado acórdão n.º 183/2008 e do n.º 1 do 
 artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa.
 
  
 Não pode, assim, conhecer-se do objecto do presente recurso de 
 constitucionalidade, por ser inútil tal apreciação.
 
  
 
  
 
 3. Decisão
 
  
 
  
 Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam, na 3.ª Secção do Tribunal 
 Constitucional, em não conhecer do objecto do recurso.
 
  
 Sem custas.  
 
  
 Lisboa, 24 de Julho de 2008
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Gil Galvão