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Processo n.º 906/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e mulher recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art.º 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 16 de Outubro de 2003, que decidiu indeferir a reclamação deduzida contra o despacho do relator, nesse Tribunal, que julgou findo o recurso interposto de acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra por inadmissibilidade do mesmo.
2 – O acórdão recorrido abonou-se na seguinte fundamentação:
«1. Estamos perante recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em recurso de apelação de decisão da
1ª instância, que fixou o montante da indemnização a pagar pela expropriante aos expropriados, após incidente de liquidação que decorre no próprio processo expropriativo. A Relação admitiu o recurso, mas este Tribunal não está vinculado à decisão de admissão (artigo 687º, n.º 4, do C. P. Civil). Sobre a questão e, conforme foi exarado no despacho do Relator, há que respeitar a doutrina uniformizadora do Acórdão nº 10/97 de 30/05/95 – in D.R. – nº 112/97, I-A série, de 15/05/97 do seguinte teor:
“O código das expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida.” Tal doutrina tem de ser respeitada pelos Tribunais, e, o facto de o acórdão recorrido dizer respeito a decisão proferida em fase de liquidação, após o trânsito em julgado da sentença, que fixou a indemnização, em nada altera a sua aplicabilidade.
2. Na verdade, se a sentença que fixa a indemnização, em processo expropriativo, não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, seria um contra-senso admitir esse recurso, quando em fase de liquidação dessa sentença, se fixasse o valor definitivo dessa indemnização. E não se diga, conforme defendem os recorrentes, que a interpretação que o acórdão uniformizador dá aos artigos 46º e 64º nº 2 do C. das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9/11 é inconstitucional, por contrariar o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, as normas dos artigos 37º, 51º nº 1 e 64º nº 2, do citado Código das Expropriações, conjugadamente (na interpretação do assento do STJ de 30/5/95, segundo a qual, o Código das Expropriações de 1991 consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que tenha por objecto decisão sobre a fixação da indemnização devida) não foram julgadas inconstitucionais pelo próprio Tribunal Constitucional pelos Acórdãos nºs
259/97, 465/97 e 490/97.
É claro que os reclamantes só por lapso referiram o artigo 46º do C. das Expropriações, porquanto queiram referir-se ao artigo 37º do mesmo código.
3. Por outro lado, não se vê, como é que se pode defender a inconstitucionalidade do artigo 687º nº 4 do C. P. Civil, quando permite que o Tribunal Superior não fique vinculado à decisão de admissão de recurso por Tribunal Inferior. Na verdade, tal disposição em nada ofende os direitos da defesa dos recorrentes, conforme preceitua o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, e, o que seria incongruente era o Tribunal Superior ter de conhecer de recurso admitido por Tribunal Inferior, apesar de não ser admissível, nos temos da lei.
4. Em consequência de exposto e dos fundamentos invocados na decisão reclamada, o recurso não pode ser admitido, sendo de manter tal decisão.»
3 - No requerimento de interposição do recurso os recorrentes alegam pretender a
“declaração da inconstitucionalidade do arco normativo art.ºs 37º/64º do Código das Expropriações (ao tempo vigente), na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal recorrido, de não permitir o recurso de última instância, neste processo que é de execução com liquidação prévia e não de expropriação, contrariando o princípio aflorado no art.º 20º, n.º 1, da CRP”
4 – Nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, os recorrentes concluíram pelo seguinte modo:
«A. Neste processo de liquidação prévia executiva, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu o acerto da indemnização relegada para execução de sentença, diminuindo a metragem da zona non aedificandi (contudo já fixada, com trânsito, na sentença de primeira instância). B. Na verdade, a entidade expropriante recorrente não tinha posto este problema, sendo que todos os argumentos diferentes deste que utilizou no recurso foram rebatidos pelo acórdão: julgou portanto fora do objecto do recurso, dando solução a problema sobre o qual as partes se não pronunciaram antes. C. Com este fundamento de contrariedade à lei, os recorrentes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi recebido por aplicação do disposto nos arts. 37º e 64º C. Expropriações (aplicável à data da DUP), segundo o acórdão uniformizador de jurisprudência de 31 de Maio de
1991. D. Contudo, o direito ao recurso, ou à reapreciação por outra instância, não existindo motivo de celeridade relevante, nomeadamente ancorado no valor da causa (tal como é o caso) é garantia fundamental equânime, i.é, reconhecida em concreto para todos os cidadãos que litiguem nas condições descritas. E. Assim, a aplicação daquelas normas ao caso concreto, e no entendimento que lhes foi dado pelo STJ, no acórdão de rejeição do recurso, torna-as inconstitucionais, por violação justamente do princípio que acaba de ser enunciado. F. Contrariam, com efeito, os arts. 13º/1 e 20º/1 CRP, ao estabelecerem uma irrecorribilidade desproporcional, no processo de liquidação prévia executiva referente a uma sentença de expropriações, perante a surpresa para a parte em que se traduziu o acórdão da Relação de Coimbra. G. É esta inconstitucionalidade que se pede e deve ser declarada.»
5 – Por despacho do relator no Tribunal Constitucional foi suscitada a questão prévia do não conhecimento do recurso.
6 – Os recorrentes responderam pugnando pelo conhecimento do recurso.
B – Fundamentação
7 – Da questão prévia suscitada
No despacho do relator que suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso entendeu-se que os recorrentes pretendiam sindicar “não só o modo como as instâncias definiram o direito (infraconstitucional) relativo
à relação jurídica expropriativa e ao processo judicial de expropriação
(processo de expropriação litigiosa) e o aplicaram às circunstâncias concretas do caso, como, também, a conformidade com os parâmetros constitucionais de uma dimensão jurídica que não constituiu fundamento normativo da decisão” e que tal não cabia no recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade delineado na nossa Lei Fundamental.
Uma tal conclusão foi induzida pelo facto de os recorrentes controverterem no recurso o juízo de facto e de direito feito pelo acórdão da Relação cujo recurso não foi conhecido no STJ, alegando que o mesmo “diminuiu a metragem da zona non aedificandi”, partindo depois desse pressuposto refutado por tal decisão para sustentar que a Relação conheceu de questão que não lhe fora posta.
Tendo em conta o alegado na resposta à questão prévia, reconhece-se que aquela asserção dos recorrentes corresponde a uma antecipação sua do que entendem que o tribunal de recurso – o STJ, no caso de vencimento da questão de constitucionalidade - deve apreciar e que, sendo assim, tal arrazoado tem a natureza de um simples obiter dictum das suas alegações.
Ponderou-se, ainda, nesse despacho, que a dimensão normativa dos art.ºs 37º e 64º do Código das Expropriações de 1991, cuja inconstitucionalidade os recorrentes pretendem ver apreciada, não corresponderia à efectiva ratio decidendi da decisão recorrida. Considera-se agora, perante a resposta dada ao parecer do relator, que a dimensão normativa que os recorrentes pretendem sindicar constitucionalmente, por violação da garantia ao recurso judicial ínsita no direito de acesso aos tribunais consagrada no art.º 20º, n.º1, da CRP, é a interpretação do “arco normativo dos art.ºs 37º/64º do Código das Expropriações de 1991” segundo a qual não é admissível recurso para o STJ, no tipo de processos como aquele em que foi proferida a decisão recorrida, constituindo a asserção de que “esse processo é de execução com liquidação prévia e não de expropriação”, várias vezes repetida por si (requerimento de interposição de recurso e alegações), um mero argumento no sentido da solução pela qual se batem e não um elemento integrante do conteúdo normativo sindicando susceptível de ser contrastado com o critério normativo assumido pelo acórdão recorrido como fundamento da não admissibilidade do recurso.
Deste modo passa a conhecer-se do objecto do recurso.
8 – A questão decidenda é, assim, a de saber se a acepção normativa extraída por interpretação dos art.ºs 37º e 64º do Código das Expropriações de 1991 segundo a qual não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que conheceu de recurso de sentença de tribunal de 1ª instância que procedeu à liquidação de indemnização cuja fixação foi relegada para execução de sentença por sentença anterior proferida em processo de expropriação por utilidade pública viola a garantia do direito ao recurso ínsita no direito de acesso aos tribunais consagrada no art.º 20º, n.º 1, e o princípio da igualdade reconhecido no art.º
13º, n.º 1, ambas as disposições da CRP.
Como se colhe do relatado, o acórdão recorrido respondeu negativamente à questão posta com base em três argumentos: por um lado, porque se está em tal caso
“perante um recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em recurso de apelação de decisão da 1ª instância que fixou o montante da indemnização a pagar pela expropriante aos expropriados, após incidente de liquidação que decorre no próprio processo”; depois, porque “se a sentença que fixa a indemnização, em processo expropriativo, não admite [de acordo com a doutrina uniformizadora do Acórdão n.º 10/97, publicado no Diário da República I Série-A, n.º 112/97, de 15/05/1997 que segue] recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, seria um contra-senso admitir esse recurso, quando em fase de liquidação dessa sentença se fixasse o valor definitivo dessa indemnização” e, finalmente, porque “as normas dos artigos 37º, 51º, n.º 1, e 64º, n.º 2, do citado Código das Expropriações, conjugadamente (na interpretação do Assento de 30/5/1995 - refere-se ao Acórdão do STJ acima identificado- , segundo a qual o Código das Expropriações de 1991 consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação da indemnização devida) não foram julgadas inconstitucionais pelo próprio Tribunal Constitucional pelos Acórdãos n.ºs 259/97, 465/97 e 490/97”.
Contra estes argumentos, os recorrentes esgrimem, essencialmente, que “o
(denominado) incidente de liquidação é materialmente, um novo procedimento de tipo declaratório” e que, sendo assim, devem ser admitidos, nele, os graus de recurso previstos em relação ao “processo comum nos casos de liquidação de sentença feita em preliminares executivos”, ou dito de outro modo, os recursos previstos no caso de liquidação efectuada em processo comum de execução, sob pena de sair violado o princípio da igualdade no uso da garantia de acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito ao recurso. Segundo explicitam, os recorrentes “não põem em causa a norma que, em geral, determina a inadmissibilidade do recurso e alcance do processo expropriativo, em que o recurso para o Tribunal da Relação já faz intervir uma terceira instância, depois do Tribunal Arbitral e do Tribunal de Comarca”. O mesmo é dizer que os recorrentes aceitam o juízo de não inconstitucionalidade tirado nos Acórdãos n.ºs 259/97 (publicado no Diário da República II Série, de 30 de Junho de 1997, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., p. 681), 465/97 (disponível, tal como os demais, em www.tribunalconstitucional.pt) e 490/97 (publicado no Diário da República II Série, de 18 de Outubro de 1997, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37º vol., p. 479) , referidos pela decisão recorrida.
Como quer que se qualifique o primeiro argumento invocado pelo acórdão recorrido
- de constituir um incidente de liquidação que ocorre no próprio processo expropriativo o processo em que se fixa mediante liquidação efectuada em execução de sentença anterior transitada em julgado o montante da indemnização a pagar pela expropriante aos expropriados - , se como correspondendo a uma definição do direito ordinário aplicado que haja de ser aceite pelo Tribunal Constitucional como um dado normativo a confrontar com os parâmetros constitucionais, se apenas como constituindo uma razão jurídica referente à melhor compreensão do direito ordinário colocada em confronto com a tese diferente dos recorrentes, sempre se terá de concluir pela falta de razão dos mesmos recorrentes.
Para quem aceite que o processo de liquidação da indemnização devida por expropriação por utilidade pública efectuada em execução de sentença antes proferida em processo de expropriação é um processo meramente incidental do processo anterior onde foi prolatada a sentença exequenda, tendo a decisão de fixação da indemnização devida nele proferida a mesma natureza – e ocupando o mesmo lugar jurídico – da decisão de fixação dessa indemnização que ocorre no primitivo processo expropriativo, não poderá deixar de concluir pela conformidade constitucional da norma sindicada. Na verdade, valem, em tal caso, por inteiro, por completamente transponíveis, as razões que aduziram, entre outros, os Acórdãos n.ºs 259/97, 465/97 e 490/97.
À mesma solução chegará, como se demonstrará, quem, como pensam os recorrentes, qualifique esse processo como correspondendo a um processo de execução de sentença em cujo decurso se efectua a liquidação da indemnização devida por expropriação por utilidade pública. O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o sentido da garantia do acesso aos tribunais na sua dimensão do acesso aos diferentes graus de jurisdição, hoje condensada no n.º 1 do art.º 20º da CRP.
Sobre a matéria, e tendo por pano de fundo o estabelecimento de diferentes graus de jurisdição em função de diferentes alçadas (ideia que subjaz ao raciocínio dos recorrentes), assim discreteou, em termos que vieram a ser revisitados pela jurisprudência posterior do Tribunal (cfr. entre outros, os já citados), o Acórdão n.º 287/90, publicado no Diário da República II Série, de
20/2/91 e ATC, 17º vol., p. 159, dando conta de vária jurisprudência anterior:
“A garantia da via judiciária traduz-se, prima facie, no «direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante» (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., 1º vol., 1984, p.187). Contudo deve incluir-se ainda na garantia da via judiciária a protecção contra actos jurisdicionais, que assume «lugar autónomo e relevo especial» neste sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., ibidem). Isto é, o direito de acção incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais, o qual, obviamente, só é exercível mediante o recurso para
(outros) tribunais. Por outro lado, a favor da tese de que o direito de recurso (de actos jurisdicionais) tem dignidade constitucional milita também a explícita previsão da existência de tribunais de primeira instância e de tribunais de recurso [cf. a alínea b) do n.º 1 do artigo 212º da Constituição; assim se pronuncia Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, 1982, p.126, concluindo que
«[...] o legislador ordinário não pode suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos.»] Daqui não se pode inferir todavia a existência de um ilimitado direito de recurso extensivo a todas as matérias, o que implicaria a inconstitucionalidade do próprio estabelecimento de alçadas. Na esteira da jurisprudência da Comissão Constitucional, este Tribunal tem entendido que tal direito não é um direito absoluto - irrestringível (cf. os Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, Diário da República, 2ª série, de 1 de Abril de 1987 e 20 de Agosto de 1988 e Parecer n.º
9/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19, pp.29 e segs.) -, com ressalva da matéria penal, atendendo ao que dispõe o n.º 1 do artigo 32º da Constituição
(ver os Acórdãos n.ºs 202/86 e 8/87, Diário da República, 2ª série, de 26 de Agosto de 1986, e Diário da República, 1ª série, de 9 de Fevereiro de 1987). O que se pode retirar, inequivocamente, das disposições conjugadas dos artigos
20º e 212º da Constituição, em matérias diversas da penal, é que existe um genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode ser traçado, pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude. Ao legislador ordinário estará vedado exclusivamente, abolir o sistema de recursos in toto ou afectá-lo substancialmente (assim, Armindo Ribeiro Mendes, op. cit., ibid.; exemplo de «afectação substancial» do sistema é dado por Fernão F. Thomaz e Colaço Canário, que prefiguram uma elevação da alçada dos tribunais de comarca para 10 000 contos, considerando-a ilegítima, «O objecto do recurso em processo civil», Revista da Ordem dos Advogados, 42, 1982, pp. 366 e segs.; mais expressiva do que a ideia de «afectação substancial» nos parece, todavia, a de
«redução intolerável ou arbitrária» do direito de recurso, a desenvolver ulteriormente, à luz do princípio do Estado de direito democrático).
[...]
[Deste modo] não haverá uma garantia de duplo grau de jurisdição, entendida como absoluta, ressalvando o particular regime do processo penal. Deve, porém, reconhecer-se a existência do direito a um duplo grau de jurisdição, que se não distingue materialmente, do assinalado direito de recurso. Com efeito, aquela expressão limita-se a focar uma outra vertente da mesma realidade : o direito
(subjectivo) de recorrer visa assegurar aos particulares a possibilidade de impugnarem actos jurisdicionais e ainda tornar mais provável em relação às matérias com maior dignidade, a emissão da decisão justa, dada a existência de mais do que uma instância. Só um conceptualismo estrénuo distinguiria o «direito de recurso» do «direito a um duplo grau de jurisdição» : trata-se de um único direito e a primeira expressão é suficientemente compreensiva para o identificar.
[...] O que se conclui nesta matéria - com abstracção do particular regime aplicável ao processo penal - é que o direito de recurso é restringível pelo legislador ordinário, ao qual apenas estará vedada a abolição completa ou afectação substancial (entendida como redução intolerável ou arbitrária) do direito de recurso. Dizendo o mesmo, por forma mais adaptável à concreta pretensão da recorrente, refere-se no Acórdão n.º 275/94 (ainda inédito) :
'... a Constituição não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição e muito menos, a um terceiro grau, muito embora não se possa suprimir em bloco a existência desses três graus ...'(sublinhado nosso).».
E no Acórdão n.º 182/98, publicado no Diário da República II Série, de 11 de Maio de 1998, afrontando a questão das limitações à faculdade de recorrer em função de mecanismos processuais (no caso, também alçadas) escreveu-se:
«Com efeito, a questão das limitações à faculdade de recorrer em função de mecanismos processuais, como sejam as alçadas, tem sido equacionada por este Tribunal em diversas ocasiões (cf., entre outros, Acórdão n.º 287/90, D.R., II Série, de 20 de Fevereiro de 1991 e, como obras de referência mais recentes, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1994, p. 99 e ss. e Carlos Lopes do Rego, 'Acesso ao Direito e aos Tribunais', Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 80 e ss.), entendendo-se que a garantia da via judiciária se traduz no direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão judicialmente relevante (cf. Acórdão citado e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 161 e ss.) e no direito de defesa contra actos jurisdicionais, mediante o recurso para outros tribunais. Sendo certo que o direito ao recurso tem dignidade constitucional, que resulta, nomeadamente, da explícita previsão da existência de tribunais de primeira instância e de tribunais de recurso [cf. artigo 211º, n.º 1, alínea a), da Constituição], daí não se poderá inferir a existência de um ilimitado direito de recurso. O que resulta do disposto no artigo 20º da Constituição, em matérias diversas da penal, é apenas que existe um genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais com um conteúdo mínimo de eficácia relativamente à obtenção de justiça, cujo preciso conteúdo será traçado pelo legislador ordinário. Não resulta, porém, a exigência de um duplo grau de jurisdição, em termos absolutos.
À lei infraconstitucional estará vedada a abolição do sistema de recursos ou uma sua afectação substancial, que o esvazie de eficácia relativamente à realização da justiça material (consubstanciaria uma afectação substancial do sistema de recursos, por exemplo, a elevação do valor da alçada dos tribunais de comarca para 10.000 contos). Contudo, caberá ao legislador ordinário estabelecer os precisos e concretos limites do direito ao recurso, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da adequação (cf., sobre o direito ao recurso, os Acórdãos n.ºs 270/95 - inédito, 249/94 - D.R., II Série. de 27 de Agosto de 1994, 447/93 - D.R., II Série, de 23 de Abril de 1994 e
377/96 - inédito).».
Fixada a ausência de uma obrigação constitucional de estabelecimento de um terceiro grau de recurso, haverá de reconhecer-se ao legislador ordinário a possibilidade de, dentro da sua discricionariedade normativo-constitutiva, limitar, nos preceitos sob censura constitucional, o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça na situação em causa - de liquidação da indemnização por expropriação pública apenas em execução de sentença anteriormente proferida no processo expropriativo. Tal limitação poderá colher justificação não só em razões de interesse público relacionadas com o descongestionamento dos tribunais superiores, como em razões de celeridade na decisão final das causas e de paralelismo ou de igualdade com o que se passa em outras situações. A este propósito cabe acentuar que, ao contrário do que os recorrentes pretextam, o tertium comparationis ajustado ao caso não é, sob o ponto de vista substancial ou material por onde deve ser aferido o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP, o do processo comum de execução de sentença para obrigações ilíquidas onde ocorre, numa fase preliminar, a sua liquidação, mas antes o do processo de expropriação no qual é proferida logo, pela suficiência dos elementos para tanto necessários, decisão de fixação da indemnização devida pela expropriação e onde, como, já se notou, é jurisprudência firme do Tribunal a inadmissibilidade de recurso para o STJ não fere a Lei Fundamental. Na verdade, a questão de igualdade processual relativa ao exercício da faculdade de recorrer deve ser equacionada em função do direito que se pretende fazer valer em juízo, no uso da garantia de acesso aos tribunais estabelecida no art.º 20º, n.º 1, da CRP (cfr., também, art.º 2º, n.º 1, do CPC) e, no caso, esse direito
é, substancialmente, o mesmo, qual seja o direito a ser-lhe atribuída a justa indemnização pela expropriação por utilidade publica (art.º 62º, n.º 2, da CRP). Deste modo conclui-se que, mesmo considerada a questão decidenda dentro de uma qualificação do processo incidental em causa como não se enquadrando dentro do originário processo expropriativo, sempre a solução adoptada pelo legislador, e concretizada na dimensão normativa sindicada constitucionalmente, se não afigura desadequada, desproporcionada ou violadora do princípio da igualdade, não ferindo a garantia de acesso aos tribunais na sua dimensão de direito de recurso jurisdicional, quer a se (art.º 20º, n.º 1, da CRP), quer aferida conjugadamente com o princípio da igualdade (art.º 13º da CRP).
9 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante dos art.ºs 37º e 64º do Código das Expropriações de 1991 na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que conheceu de recurso de sentença de tribunal de 1ª instância que procedeu à liquidação de indemnização cuja fixação foi relegada para execução de sentença por sentença anterior proferida em processo de expropriação por utilidade pública; b) Negar provimento ao recurso; c) Condenar em custas os recorrentes, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos