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Processo nº 558/08
 
 1ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes
 
 
 Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I. Relatório
 
 1. Nos presentes autos, vindos do 1º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, em que 
 são recorrentes o Ministério Público e o Município de Lisboa e é recorrida A., 
 S.A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea 
 a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Juízo de 17 de Abril de 2008.
 
  
 
 2. O tribunal recorrido decidiu não aplicar, porque ferido de 
 inconstitucionalidade orgânica, o artigo 95º, nº 3, do Decreto-Lei nº 555/99, de 
 
 16 de Dezembro; declarar o Tribunal incompetente – em razão da matéria – para 
 conhecer da providência requerida pelo Município de Lisboa; e, em consequência, 
 absolver a requerida, A., S.A., da instância.
 
 É a seguinte a fundamentação da decisão:
 
  
 
 «De harmonia com o preceituado no artigo 95.°/l do Decreto-Lei n.° 555/99, de 16 
 de Dezembro, os funcionários municipais incumbidos da fiscalização de obras 
 podem realizar inspecções aos locais sujeitos a fiscalização. Nos termos do n.° 
 
 2 da citada norma, tal não dispensa a obtenção de prévio mandado judicial para a 
 entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento. «O mandado 
 previsto no número anterior é concedido pelo juiz da comarca respectiva a pedido 
 do presidente da câmara municipal e segue os termos do procedimento cautelar 
 comum». ---
 A pretensão do Requerente deste procedimento cautelar consubstancia-se na 
 emissão de mandado judicial, para permitir que a Câmara Municipal de Lisboa 
 exerça as suas atribuições de fiscalização de obras, uma vez que esta alega que 
 
 – para tal – existe a necessidade de entrar no prédio dos autos, que é 
 propriedade privada. ---
 A actividade camarária referida, inserida na regulação do urbanismo, integra-se 
 na ordenação geral da vida colectiva, com vista a assegurar um nível aceitável 
 de qualidade de vida no território, mesmo que sem meios de coerção. Estes 
 poderes são poderes administrativos das autarquias locais, ao abrigo dos quais 
 estas praticam actos administrativos – actos jurídicos unilaterais, para 
 produzir efeitos jurídicos numa situação individual, no caso concreto (acórdão 
 n.° 579/95 do Tribunal Constitucional, citado no acórdão n.° 229/2007, do 
 Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, II, n.° 99, de 23 de 
 Maio de 2007). ---
 São da competência dos Tribunais judiciais apenas as matérias que a lei não 
 atribua a outra ordem jurisdicional (artigo 66.° do Código de Processo Civil e 
 artigo 18.°/1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). ---
 Da análise da lei de autorização legislativa – Lei n.° 110/99, de 3 de Agosto – 
 resulta que é concedida ao Governo, pelo Parlamento, autorização para prever, em 
 matéria de garantias dos particulares, a possibilidade de recurso a intimação 
 judicial para a prática de acto legalmente devido [artigo 2.°, alínea t)]; e 
 ainda para cometer competências em razão da matéria e do território aos 
 tribunais judiciais para conhecer das acções, bem como disciplinar a sua 
 tramitação, em que se requeira autorização judicial para a promoção directa da 
 execução das obras de urbanização, nos casos em que as mesmas não sejam 
 realizadas pelos loteadores, nem pelas câmaras municipais [alínea x)]. ---
 Na alínea x) não vem contemplada a hipótese dos autos, uma vez que vem 
 contemplada a atribuição de competência para conhecer de acções, e ainda porque 
 se refere directamente a promoção da execução das obras de urbanização, quando 
 estas não sejam executadas pelos loteadores, nem pelas autarquias. ---
 Na situação da citada alínea t) são referidas as garantias dos particulares, e 
 outorga-se ao Governo competência para prever a possibilidade de recurso a 
 intimação judicial para a prática de acto legalmente devido. Ainda que a 
 situação em apreço possa ser assimilada à do n.° 3 do artigo 95.° do Decreto-Lei 
 n.° 555/99, de 16 de Dezembro, a garantia a que se refere a autorização 
 legislativa está plasmada no n.° 2 do artigo 95.° citado – a necessidade de 
 mandado judicial –, sendo certo que o conteúdo do n.° 3, embora reportado à 
 garantia dos particulares, exorbita este domínio, porque confere a competência 
 material para concessão do referido mandado. ---
 A hipótese aqui configurada não pode ser olhada como uma situação do Direito 
 privado, tendo que ver com a prossecução do interesse público e a eventual 
 necessidade do sacrifício de determinados interesses particulares, em nome do 
 bem comum. As competências a que se refere o n.° 1 do artigo 95.° citado são, 
 assim, claro exercício de poderes públicos (função administrativa integrante do 
 poder autárquico). ---
 Verificado este pressuposto, e sendo os actos em questão actos de gestão 
 pública, concluir-se-á com algum grau de certeza que o salto lógico dado pelo 
 n.° 3 do artigo 95.° do diploma citado não está contemplado pela autorização 
 legislativa, sendo a solução encontrada nessa norma divergente da que resulta 
 dos critérios gerais (da contraposição gestão privada – gestão pública), o que 
 intensifica a necessidade de autorização expressa para legislar. ---
 Diz o requerente que não se discute neste acto a legalidade do acto 
 administrativo, mas apenas o meio de efectivação da fiscalização das «obras 
 ilegais». Entendemos que tem razão, neste aspecto, mas haverá que ponderar as 
 consequências práticas e jurídicas da posição do requerente. ---
 Assim, remetendo o n.° 3 do artigo 95.° do diploma em apreço para o procedimento 
 cautelar comum, os Tribunais judiciais seriam também os competentes para a acção 
 
 (definitiva), nos termos do artigo 383.°/1 do Código de Processo Civil, que aqui 
 só poderia ser vista como o recurso contencioso da decisão administrativa final. 
 Ora esta «acção definitiva» pertenceria claramente à jurisdição administrativa, 
 nunca aos Tribunais comuns. ---
 Consabidamente, a reserva de lei integra a competência material dos Tribunais. A 
 norma do n.° 3 do artigo 95.° do Decreto-Lei n.° 555/99, de 16 de Dezembro, é 
 organicamente inconstitucional, por estar inserida num decreto-lei editado pelo 
 Governo, ao abrigo da alínea a) do n.° 1 do artigo 201.º da Constituição, sem a 
 autorização legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 1 
 
 68.°/1, alínea q), da Constituição. ---
 A consequência adjectiva da incompetência em razão da matéria, nos termos do n.° 
 
 1 do artigo 105.° do Código de Processo Civil, e ultrapassada a fase liminar, é 
 a absolvição da instância do demandado».
 
  
 
 3. Notificado para alegar, o Ministério Público concluiu nestes termos:
 
 «1º
 A matéria da organização e competência dos tribunais situa-se no âmbito da 
 competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que só é 
 possível dispor inovatoriamente sobre tal tema quando o Governo se haja munido 
 da indispensável autorização legislativa, cujo sentido e extensão o habilitem a 
 legislar específica e directamente sobre o tema da competência dos tribunais.
 
 2º
 A norma constante do artigo 95º, nº 3, do Decreto-Lei nº 555/99, de 16/12, ao 
 atribuir competência ao foro cível para a decisão jurisdicional que legitime os 
 serviços inspectivos da autarquia a entrarem coercivamente nos edifícios ou 
 fracções onde decorram obras presumivelmente ilegais, com vista à preparação do 
 acto administrativo que, no exercício das funções autárquicas no âmbito do 
 urbanismo, reponha a legalidade violada – não encontrando suporte bastante na 
 respectiva autorização legislativa – padece de inconstitucionalidade 
 orgânico-formal.
 
 3º
 Tal vício não pode considerar-se sanado ou precludido pela simples circunstância 
 de um diploma legal – ulteriormente editado sobre a matéria do regime de 
 urbanização e edificação, com a forma de lei – ter procedido à republicação do 
 texto do Decreto-Lei nº 559/99, com as posteriores alterações, não tendo estas 
 qualquer conexão com o problema de competência material solucionado pela norma 
 desaplicada
 
 4º
 Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado 
 pela decisão recorrida».
 
  
 
 4. Notificado para alegar, o Município de Lisboa concluiu da forma seguinte:
 
 «I – O Recorrente peticionou a emissão de mandado judicial para entrada no 
 imóvel dos autos, com o propósito de fiscalizar as obras em curso sem licença 
 municipal, ao abrigo das disposições conjugadas dos n°s 2 e 3 do art° 95° do 
 R.J.U.E. e dos art°s 381° e seguintes do C.P.C.;
 II – Nos termos conjugados no disposto nos art°s 211º n°1 e 212° n° 3 da C.R.P., 
 os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e 
 exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, 
 sendo da competência dos Tribunais Administrativos o julgamento de acções e 
 recursos que tenham por objecto a apreciação dos litígios emergentes de relações 
 jurídicas administrativas e fiscais; 
 III – A situação em apreço não se subsume no âmbito da competência dos Tribunais 
 Administrativos e Fiscais, pelo que se conclui pela competência residual dos 
 tribunais comuns;
 IV – São competentes para conhecer dos pedidos de emissão de mandado judicial os 
 tribunais judiciais, nos termos dos art°s 62°, 64° e 65° da L.F.O.T.J. – Ac. do 
 Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2006;
 V – Não se discute nos presentes autos a legalidade ou oportunidade da acção 
 fiscalizadora que a lei comete às autarquias mas tão só o meio para a efectivar, 
 que no caso dos autos corresponde à autorização judicial peticionada no 
 requerimento inicial; 
 VI - O art° 95º, n° 3, do R.J.U.E. não padece de inconstitucionalidade orgânica 
 por não interferir com o sistema de repartição das competências dos Tribunais, 
 antes constitui mais um exemplo do princípio constitucional da Reserva do Juiz;
 Ainda que assim se não entenda,
 VII – O art° 95, n° 3, do D.L. n° 555/99, de 16 de Dezembro, que a reforma 
 levada a cabo pelo D.L. n° 177/2001, de 04 de Junho deixou inalterada, consta 
 actualmente do novo R.J.U.E., em vigor pela redacção introduzida pela Lei n° 
 
 60/2007, de 04 de Setembro;
 VIII – A referida norma, ora reproduzida pela Lei n° 60/2007, é, mutatis 
 mutandis, a mesma que vigorou desde 1999, permanecendo igualmente inalterados a 
 letra, o espírito e a sua inserção sistemática;
 IX – O legislador parlamentar fez sua a norma posta em crise, ao reproduzi-la 
 nos precisos termos em que já vigorava no ordenamento jurídico, ocorrendo por 
 essa via uma sanação da eventual inconstitucionalidade orgânica de que pudesse 
 padecer; 
 X – A douta sentença incorreu numa interpretação errónea ao emitir um juízo de 
 desvalor constitucional sobre a norma constante do art° 95º, n° 3, do R.J.U.E., 
 o qual, foi maxime sanado por força da Lei 60/2007, de 04 de Setembro».
 
  
 
 5. Notificada, a recorrida contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade 
 orgânica da norma questionada.
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 
 1. A decisão recorrida recusou a aplicação do artigo 95º, nº 3, do Decreto-Lei 
 nº 555/99, de 16 de Dezembro – Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – com 
 fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168º, nº 1, 
 alínea q), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
 O artigo 95º tem a seguinte redacção:
 
  
 
 «Artigo 95º
 Inspecções
 
 1 – Os funcionários municipais responsáveis pela fiscalização de obras ou as 
 empresas privadas a que se refere o nº 5 do artigo anterior podem realizar 
 inspecções aos locais onde se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização 
 nos termos do presente diploma, sem dependência de prévia notificação.
 
 2 – O disposto no número anterior não dispensa a obtenção de prévio mandado 
 judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.
 
 3 – O mandado previsto no número anterior é concedido pelo juiz da comarca 
 respectiva a pedido do presidente da câmara municipal e segue os termos do 
 procedimento cautelar comum» (itálico aditado).
 
  
 A decisão recorrida recusou a aplicação do nº 3 deste artigo, enquanto atribui 
 competência ao juiz da comarca para conceder mandado para a entrada em domicílio 
 de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades 
 sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais, por falta de 
 autorização legislativa da Assembleia da República. Segundo a mesma decisão, o 
 nº 3 do artigo 95º “não está contemplado” nas alíneas t) e x) do artigo 2º da 
 Lei nº 110/99, de 3 de Agosto, lei ao abrigo da qual foi editado o diploma onde 
 se insere a norma que é objecto do presente recurso. 
 Com relevo para a decisão importa transcrever da Lei nº 110/99 o seguinte:
 
  
 
 «Artigo 1º
 Objecto
 
 É concedida ao Governo autorização para legislar em matéria da competência dos 
 
 órgãos das autarquias locais e dos tribunais, de definição e regime dos bens do 
 domínio público e do regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social no 
 
 âmbito do regime jurídico das operações de loteamento, das obras de urbanização, 
 das obras particulares e da utilização de edifícios, bem como a estabelecer um 
 adequado regime sancionatório.
 
  
 Artigo 2º
 Sentido e extensão
 A legislação a estabelecer pelo Governo nos termos do artigo anterior terá os 
 seguintes sentido e extensão:
 
 (…)
 t) Prever, em matéria de garantias dos particulares, a possibilidade de recurso 
 a intimação judicial para a prática de acto legalmente devido;
 
 (…)
 x) Cometer competências em razão da matéria e do território aos tribunais 
 judiciais para conhecer das acções, bem como disciplinar a sua tramitação, em 
 que se requeira autorização judicial para a promoção directa da execução das 
 obras de urbanização, nos casos em que as mesmas não sejam realizadas nem pelos 
 loteadores, nem pelas câmaras municipais;
 
 (…)».
 
  
 A questão de constitucionalidade que importa apreciar e decidir é então a de 
 saber se o Governo, ao editar o nº 3 do artigo 95º do Regime Jurídico da 
 Urbanização e Edificação, atribuindo ao juiz da comarca competência para 
 conceder mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu 
 consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por 
 parte de funcionários municipais, invadiu a reserva relativa de competência 
 legislativa da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea p), da CRP, na 
 numeração vigente à data da emissão do diploma que contém aquele regime).
 
  
 
 2. De acordo com o então estabelecido na alínea p) do nº 1 do artigo 165º da 
 CRP, cuja redacção se manteve desde a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de 
 Setembro, era da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre 
 a competência dos tribunais, salvo autorização ao Governo. O Tribunal 
 Constitucional tem vindo a entender, de forma reiterada, que esta reserva de 
 competência legislativa da Assembleia da República abrange toda a matéria 
 relativa à competência dos tribunais, o que inclui, nomeadamente, a definição 
 das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a daquelas cujo 
 conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais (cf., entre outros, 
 Acórdãos nºs 36/87, publicado no Diário da República, I Série, de 4 de Março de 
 
 1987, 476/98, 211/2007 e 218/2007, disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt). 
 Por conseguinte, a norma em apreciação, na medida em que atribui ao juiz da 
 comarca competência para a concessão de mandado para entrada em domicílio onde 
 se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização municipal, só podia constar, 
 em princípio, de lei ou de decreto-lei autorizado.
 
  
 
 3. A norma que é objecto do presente recurso insere-se num diploma – o 
 Decreto-Lei nº 555/99 – editado ao abrigo da Lei nº 110/99, de 3 de Agosto, que 
 autorizou o Governo a legislar, no âmbito do desenvolvimento da Lei de Bases do 
 Ordenamento do Território e do Urbanismo, em matéria de atribuições das 
 autarquias locais no que respeita ao regime de licenciamento municipal de 
 loteamentos urbanos e obras de urbanização e de obras particulares. 
 Foi concedida autorização ao Governo para legislar em matéria da competência dos 
 tribunais (artigo 1º). Ponto é que o sentido e a extensão da autorização (artigo 
 
 2º) comportem a norma cuja apreciação foi requerida.
 Percorridas as alíneas do artigo 2º da Lei, é de concluir que nenhuma delas 
 constituía credencial parlamentar bastante para o Governo editar norma que 
 atribuísse ao juiz da comarca competência para a concessão de mandado para 
 entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se 
 desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários 
 municipais. Como bem nota o Ministério Público, as únicas normas da Lei nº 
 
 110/99 que se referem à adopção de medidas legislativas em matéria da 
 competência dos tribunais – as mesmas que são destacadas na decisão recorrida – 
 
 “são absolutamente estranhas à questão dirimida pelo nº 3 do artigo 95º do 
 Decreto-Lei nº 555/99, por se reportarem a causas perfeitamente distintas do 
 procedimento cautelar a que os autos se referem; assim, a alínea x) do nº 2 
 reporta-se à acção visando a promoção de obras de urbanização, não devidamente 
 executadas; e a alínea f) do mesmo preceito legal refere-se à intimação judicial 
 para a prática de acto legalmente devido, na óptica da efectivação das garantias 
 dos particulares no confronto com a Administração, ou seja em que a 
 Administração figura como requerida pretendendo o particular a prática por esta 
 de acto legalmente devido”.
 O Governo dispôs, pois, em matéria de reserva relativa de competência 
 legislativa da Assembleia da República sem a necessária autorização parlamentar, 
 o que dita, em princípio, um vício de inconstitucionalidade orgânica (artigo 
 
 165º, nº 1, alínea p), da CRP).
 
  
 
 4. Em princípio, porque é entendimento reiterado deste Tribunal que “para que se 
 afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção 
 normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só 
 poderia intervir com credencial parlamentar bastante. Com efeito, o facto de o 
 Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da 
 reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si 
 só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de 
 inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não 
 criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a 
 reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores 
 emanados do órgão de soberania competente” (Acórdão nº 211/2007, onde se conclui 
 que a norma em apreciação não era inovadora. No mesmo sentido, cf. Acórdãos nºs 
 
 579/95 e 229/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, que concluíram 
 pelo carácter inovador das normas cuja constitucionalidade era questionada, por 
 referência ao “sistema geral de repartição de competências vigente”, resultante 
 de normas de direito ordinário – do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, e do 
 artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 
 respectivamente).
 Importa, por isso, averiguar se a norma que é objecto de apreciação criou ou não 
 um ordenamento diverso do então vigente. Se se trata ou não de norma inovadora 
 em matéria de competência dos tribunais.
 
  
 
 5. Anteriormente à entrada em vigor do nº 3 do artigo 95º do Decreto-Lei nº 
 
 555/99 não havia qualquer preceito de direito ordinário que atribuísse a 
 determinada jurisdição competência para conceder mandado para entrada em 
 domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam 
 actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais. 
 Nomeadamente não constava do Decreto-Lei nº 445/95, de 20 Novembro, revogado por 
 aquele diploma, qualquer norma com este teor.
 Estando em causa o exercício de função administrativa integrante do poder das 
 autarquias locais, na ausência de previsão legal expressa e face ao disposto no 
 artigo 212º, nº 3, da CRP tal competência cabia aos tribunais administrativos 
 
 (no sentido desta conclusão, Vieira de Andrade, A justiça administrativa 
 
 (Lições), Almedina, 2007, p. 103 e ss., Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição 
 Portuguesa Anotada, Tomo III, anotação ao artigo 212º, ponto IV).
 Com relevo para esta conclusão, lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 
 
 218/2007 que:
 
  
 
 «(…) a par da possibilidade de o legislador ordinário atribuir pontualmente a 
 tribunais não administrativos o conhecimento de litígios emergentes de 
 relações jurídicas administrativas, desde que tais “desvios” se mostrem 
 providos de fundamento material razoável e desde que, pelo seu número ou 
 importância, não esvaziem do seu âmago essencial a competência dos tribunais 
 administrativos [entendimento este que tem sido adoptado pelo Tribunal 
 Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.ºs 746/96, 965/96, 347/97, 253/98 
 e 458/99], resulta da revisão constitucional de 1989 que a jurisdição 
 administrativa passou a ser a jurisdição “comum” para o conhecimento de 
 litígios emergentes de relações jurídicas administrativas: assim, enquanto 
 anteriormente, nos casos em que não resultava expressamente da lei qual a 
 jurisdição competente para decidir determinada causa, se entendia que eram 
 competentes os “tribunais judiciais”, depois da revisão constitucional de 1989, 
 não existindo norma legal a definir concretamente qual a jurisdição 
 competente, há que indagar qual a natureza da relação jurídica de que emerge o 
 litígio e, se se concluir que possui natureza administrativa, então impõe-se 
 o reconhecimento de que competente é a jurisdição administrativa, como 
 jurisdição “comum” para a apreciação dos litígios emergentes de relações 
 jurídicas administrativas.
 Reiterando a formulação de José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça 
 Administrativa, 8.ª edição, Coimbra, 2006, p. 114), o artigo 212.º, n.º 3, da 
 CRP serve ainda para delimitar o sentido da parte final do n.º 1 do artigo 211.º 
 da CRP (“os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e 
 criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens 
 judiciais”), continuado no artigo 66.º do Código de Processo Civil (“São da 
 competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra 
 ordem jurisdicional”), que atribui aos tribunais judiciais uma competência 
 jurisdicional residual, de modo que uma questão de natureza administrativa passa 
 a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja expressamente 
 atribuída a nenhuma jurisdição. É esta também a posição de Sérvulo Correia 
 
 (Direito do Contencioso Administrativo, I vol., Lisboa, 2005, p. 586), que (…) 
 sublinha que “a Constituição atribui ao juiz administrativo o papel de juiz 
 comum ou ordinário da justiça administrativa, cabendo‑lhe, sem necessidade de 
 atribuição específica, a competência para julgar os litígios emergentes das 
 relações jurídicas administrativas”».
 
  
 Em suma, a Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho “constitucionalizou uma 
 jurisdição administrativa autónoma, tornando os tribunais administrativos e 
 fiscais os tribunais comuns para o julgamento de litígios emergentes de relações 
 jurídicas administrativas e fiscais” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 
 
 522/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). 
 Assim sendo, os tribunais judiciais deixaram de exercer jurisdição em matéria de 
 relações jurídicas administrativas, quando não haja norma que atribua 
 competência a determinada jurisdição. Com efeito, anteriormente à Revisão 
 constitucional de 1989, na falta de norma, valia a regra da competência residual 
 dos tribunais judiciais, constante do artigo 66º do Código de Processo Civil e 
 do artigo 14º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro – Lei Orgânica dos Tribunais 
 Judiciais –, com a consequência de não ser afinal inovadora norma que atribuísse 
 competência aos tribunais da ordem dos tribunais judiciais (cf. Acórdão do 
 Tribunal Constitucional nº 90/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, 
 que não julgou organicamente inconstitucional o artigo 18º, nº 5, do Decreto-Lei 
 nº 96/87, de 4 de Março). 
 Por outro lado, quando o legislador ordinário “pretenda estabelecer um desvio à 
 ordem constitucional típica, terá de ser obviamente o órgão competente para 
 legislar sobre competência dos tribunais, isto é, em regra, a Assembleia da 
 República, salvo autorização ao Governo – artigo 165º, nº 1, alínea p), da 
 Constituição”, sob pena de inconstitucionalidade orgânica (Vieira de Andrade, 
 ob. cit., p. 103, nota 158. No mesmo sentido, também Jorge Miranda/Rui Medeiros, 
 ob. cit., anotação ao artigo 212º, ponto IV). 
 
  
 
 6. Face ao exposto, há que concluir que a norma que é objecto do presente 
 recurso é inovadora, na medida em que criou um desvio à ordem constitucional de 
 distribuição de competências judiciais. É, por isso, organicamente 
 inconstitucional, uma vez que o Governo dispôs em matéria de competência dos 
 tribunais sem a necessária autorização parlamentar (artigo 165º, nº 1, alínea 
 p), da CRP).
 
  
 
 7. Esta conclusão em nada é abalada com a publicação de diplomas que, 
 entretanto, alteraram o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação: Lei nº 
 
 13/2000, de 20 de Julho, Lei nº 30-A/2000, de 20 de Dezembro, Decreto-Lei nº 
 
 177/2001, de 4 de Junho, Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, Lei nº 4-A/2003, de 
 
 19 de Fevereiro, e Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro.
 O artigo 95º, nº 3, do Decreto-Lei nº 555/99 não foi objecto de qualquer 
 alteração ou reprodução por via de lei ou de decreto-lei autorizado, nem 
 tão-pouco de qualquer proposta ou projecto de alteração que tivesse sido 
 rejeitado em sede parlamentar (os trabalhos preparatórios daqueles diplomas 
 estão disponíveis em www.parlamento.pt), pelo que a norma em apreciação não foi 
 assumida pela Assembleia da República.
 Por outro lado, a circunstância de o Decreto-Lei nº 555/99 ter sido republicado 
 em anexo à Lei nº 60/2007 (cf. artigo 4º desta lei), não significa, 
 diferentemente do sustentado pelo recorrente Município de Lisboa, que “o 
 legislador parlamentar fez sua a norma posta em crise”. Neste sentido depõe a 
 
 “natureza instrumental e não inovadora da republicação”, que apenas visa 
 garantir, de forma fácil e segura, o conhecimento do direito em vigor (cf. David 
 Duarte/Sousa Pinheiro/Lopes Romão/Tiago Duarte, Legística – Perspectivas sobre a 
 concepção e redacção de actos normativos, Almedina, 2002, p. 196 e ss., e Blanco 
 de Morais, Manual de Legística. Critérios Científicos e Técnicos para Legislar 
 Melhor, Verbo, 2007, p. 557 e s.); bem como a própria Lei nº 74/98, de 11 de 
 Novembro – Lei da publicação, identificação e formulário dos diplomas 
 
 (republicada, em anexo, pela Lei nº 42/2007, de 24 de Agosto) –, quando, no 
 artigo 6º, especifica os casos de republicação integral dos diplomas, em anexo.
 
  
 Resta, assim, concluir pela inconstitucionalidade orgânica do nº 3 do artigo 95º 
 do Decreto-Lei nº 555/99, enquanto atribui competência ao juiz da comarca para 
 conceder mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu 
 consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por 
 parte de funcionários municipais, por violação do disposto na alínea p) do nº 1 
 do artigo 165º da CRP.
 
  
 III. Decisão
 Em face do exposto, decide-se:
 a) Julgar inconstitucional o artigo 95º, nº 3, do Decreto‑Lei nº 555/99, de 16 
 de Dezembro, enquanto atribui competência ao juiz da comarca para conceder 
 mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no 
 qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de 
 funcionários municipais, por violação do disposto na alínea p) do nº 1 do artigo 
 
 165º da Constituição da República Portuguesa; e, consequentemente,
 b) Negar provimento aos recursos, confirmando a decisão recorrida no que diz 
 respeito ao juízo de inconstitucionalidade.
 Lisboa, 24 de Março de 2009
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Gil Galvão
 José Borges Soeiro
 Rui Manuel Moura Ramos