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Processo n.º 638/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e B., que litigam contra C. numa acção emergente de contrato de arrendamento, viram indeferido, por acórdão de 23 de Junho de 2004, Acórdão n.º 450/04, a reclamação que deduziram, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da Lei n.º 28/82 (LTC), do despacho de 6 de Maio de 2004, do relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça, que não lhes admitiu recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 15 de Abril de 2004 mediante o qual aquele Supremo Tribunal indeferiu o pedido de reforma e arguição de nulidades do seu anterior acórdão de 22 de Janeiro de 2004.
Vem agora as reclamantes pedir o seguinte ( em forma subsidiária):
“A- deve ser anulado todo o processado desde a interposição do recurso no STJ para o Tribunal Constitucional e, consequentemente o acórdão ora reclamado, por preterição/omissão de formalidade prescrita na lei, nos sobreditos termos e, por nulidade do acórdão nos termos do n.º 3 do art.º 3.º do CPC, devendo o processo ser mandado baixar para o STJ, para cumprimento do disposto no n.º 5 do art.º
75.º-A da LTC, com as devidas consequências legais; B- Caso, assim, não se entenda, o que por mera hipótese se coloca, deve o douto acórdão ser reformado no sentido de o relator convidar as recorrentes a indicar as normas cuja constitucionalidade queiram ver apreciadas; C- Se ainda assim não se entender, deve o acórdão ser reformado, e em consequência ser apreciada a reclamação do despacho de indeferimento do recurso interposto no STJ para o TC D- E por último deve a decisão quanto à taxa de justiça ser reformada nos sobreditos termos.”
A parte contrária pronunciou-se no sentido da rejeição, por manifesta falta de fundamento, de todos os pedidos agora formuladas pelas sociedades reclamantes.
2. Omissão de formalidade prescrita / Anulação de todo o processado subsequente
2.1. A primeira pretensão das requerentes é a de anulação de todo o processado desde a interposição do recurso (incluindo, portanto, o acórdão recorrido), com fundamento em que o relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça omitiu a prolação de despacho a convidar ao suprimento da imperfeição do requerimento de interposição do recurso que veio a ser decisiva para o indeferimento da reclamação, como lhe era imposto pelo n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC. Acrescentam que esta omissão constitui nulidade nos termos dos artigos
201.º, 205,º e 206.º, n.º 3 do CPC ex vi do artigo 69.º da LTC, que estão em tempo de arguir perante o Tribunal Constitucional, uma vez que só agora, ao serem notificados do acórdão deste, verificaram que, no requerimento de interposição do recurso, não tinham feito indicação de um dos elementos exigidos pelo artigo 75.º-A do CPC.
Esta pretensão exorbita dos poderes do Tribunal Constitucional.
Com efeito, por esta via, o Tribunal estaria a verificar a existência de uma nulidade processual anterior ao despacho reclamado. Objecto principal e directo da pronúncia do Tribunal seria a verificação dessa nulidade da marcha processual decorrente de omissão imputada a despacho do relator do processo no STJ; a nulidade do seu acórdão de 23 de Junho de 2004 seria meramente consequencial (artigo 201.º do CPC). Ora, embora alguns poderes lhe caibam para sanação de irregularidades de tramitação ou deficiências de instrução do processo de reclamação – em extensão que à economia do caso não importa precisar –, é seguro que não incumbe a este Tribunal apreciar e sancionar qua tale nulidades ocorridas na fase processual que antecede a decisão reclamada. Em nenhuma disposição legal, designadamente no artigo 6.º e nos artigos 69.º e segs., maxime no artigo 77.º da LTC, se descortina a atribuição de tal competência ao Tribunal Constitucional, seja por previsão directa, seja por ser matéria necessariamente implicada, ainda que a título instrumental, na sua competência de órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa.
Assim, na reclamação a que se referem o n.º 4 do artigo 76.º e o artigo 77.º da LTC – como, de resto, na reclamação contra o indeferimento ou retenção do recurso, em geral (artigos 668.º e 669.º do CPC) – não cabe ao órgão ad quem extrair consequências de vícios formais ou de estrutura do despacho que não admita ou retenha o recurso, mas decidir definitivamente sobre a admissibilidade ou a subida deste, revogando ou mantendo o despacho impugnado. Se não pode decidir a sorte da reclamação com fundamento em nulidades da decisão reclamada, menos lhe caberá apreciar qua tale nulidades processuais para fazer reverter o processo a uma fase anterior à da instauração da reclamação.
2.2. Em segundo lugar, as requerentes arguem a nulidade do acórdão que indeferiu a reclamação por ter sido proferido com violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil. Dizem que o Tribunal indeferiu a reclamação por falta de indicação da norma alegadamente inconstitucional, o que constituiria fundamento diverso daquele que fora adoptado pela decisão reclamada, sem ouvir a reclamante.
É discutível se nulidades deste género devem ser objecto de arguição autónoma, de acordo com o regime geral das nulidades processuais, ou se podem ser feitas valer segundo o regime de arguição de nulidades da sentença, como nulidade atípica desta ou erro de julgamento de efeito (cassatório) equivalente. A dúvida releva, sobretudo, quanto ao prazo de arguição e no âmbito de eventual recurso. No caso presente, pode ultrapassar-se o problema, considerando que a opção não tem consequências práticas, visto que não interfere com qualquer aspecto relevante para apreciação da nulidade, designadamente quanto ao prazo, à tramitação ou à competência para a sua apreciação.
É sabido que a reforma de 1995-1996 do Código de Processo Civil estendeu o contraditório às questões de conhecimento oficioso, vedando a decisão de questões de direito e de facto sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvo caso de manifesta desnecessidade. Como regra, antes de decidir com base em questão de direito
(material ou processual) que não tenha sido suscitada pelas partes, deve o juiz ouvi-las, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra. Porém, a audição só é imposta se as partes não tiverem tido efectiva oportunidade de se pronunciar sobre a questão. Além de que o legislador admitiu a dispensa de audição em casos de manifesta desnecessidade.
Ora, a razão determinante da decisão de indeferimento da reclamação foi a impossibilidade de determinar a norma cuja constitucionalidade se quer ver apreciada. Impossibilidade que tanto releva do incumprimento de um requisito do requerimento de interposição de recurso (artigo 75º-A, n.º 1,da LTC) como da falência das requerentes em demonstrar as razões de procedência da reclamação, como o acórdão afirma (Cf. último parágrafo de fls. 6 e fls. 7 do acórdão reclamado). Esta exigência é indissociável da própria enunciação da questão, porque não pode predicar-se uma certa qualidade (a inconstitucionalidade) sem determinação do ente que dela é sujeito (a norma). Efectivamente, só é possível saber se se verifica o pressuposto específico do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC de prévia suscitação da questão perante o tribunal da causa se for possível identificar a norma cuja inconstitucionalidade se quer ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Não há demonstração nem decisão fundada de que determinada questão de constitucionalidade normativa foi suscitada no momento oportuno e de modo processualmente adequado sem que quem sustenta a tese ou a aprecia represente qual a norma sobre que esse juízo incide. Assim, a reclamação com fundamento de que a questão de constitucionalidade foi oportunamente suscitada tem como pressuposto lógico necessário – como integrante forçosamente implicada no processo argumentativo mínimo – que a norma infraconstitucional (na totalidade ou num segmento do preceito, com determinada interpretação ou sentido ou, até, emergente de um certo bloco legal) tenha sido identificada ou seja concomitantemente identificada.
Deste modo, não é exacto que as requerentes não tenham tido oportunidade processual de se pronunciar sobre qualquer aspecto decisivo para a solução adoptada no acórdão. Fundamento determinante da improcedência da reclamação não foi a mera omissão de um requisito formal do requerimento, mas a valoração desse incumprimento no plano das suas consequências materiais do fim ou de um dos fins intraprocessuais, a que vai ordenado, ou seja, a impossibilidade que persistiu de determinar o objecto do recurso pretendido. Ora, pela própria natureza do processo de reclamação, agindo com a diligência mínima inerente aos poderes processuais que exerceram, as recorrentes confrontaram-se com a necessidade de identificação da norma impugnada e com as consequências do incumprimento desse ónus quando se dirigiram ao Tribunal. O Tribunal limitou-se a extrair as consequências da falta de indicação da norma impugnada, naquela vertente de relevância do requisito que esteve em discussão – a verificação do pressuposto específico do recurso – de modo que não pode considerar-se violada a norma do nº3 do art. 3º do Código de Processo Civil.
3. Reforma do acórdão nos termos do n. 2 do artigo 669.º do CPC
Subsidiariamente, as requerentes pretendem a reforma do acórdão:
A - Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 669.º do CPC, com base em
“manifesto lapso na qualificação jurídica dos factos”, com fundamento em que i) o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, atendendo ao princípio da justiça material e ao princípio da igualdade, deveria ter sido interpretado no sentido de ser aplicável, não apenas na situação nele literalmente prevista, mas também nos casos em que o recurso não é admitido por motivos diversos e que não tenham que ver com a falta de indicação de algum elemento previsto no artigo
75.º-A da LTC; ii) e, mesmo que assim não fosse, por aplicação do regime legal previsto no artigo 265.º do CPC.
B - Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 69.º do CPC, porque do processo, designadamente do requerimento de reforma e arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, consta a indicação expressa das normas cuja inconstitucionalidade se pretendia ver apreciada.
Qualquer destas normas exige que se trate de erro manifesto capaz de provocar alteração da decisão. Como diz Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., p. 559:
“Na alínea a) aparece previsto o erro manifesto de julgamento de questões de direito – que pressupõe obviamente, para além do seu carácter evidente, patente e virtualmente incontrovertível, que o juiz se não haja expressamente pronunciado sobre a questão a dirimir, analisando e fundamentando a (errónea) solução jurídica que acabou por adoptar (v.g. aplicou-se norma inquestionável e expressamente revogada, por o julgador se não haver apercebido atempadamente da revogação). Na alínea b) aparece essencialmente previsto o erro manifesto na apreciação das provas, traduzido no esquecimento de um elemento que, si, implicava decisão diversa da proferida (v.g., o juiz omitiu a consideração de um documento, constante dos autos e dotado de força probatória plena, que só por si era bastante para deitar por terra a decisão proferida)”.
Ou seja, como também constitui entendimento jurisprudencial corrente, designadamente deste Tribunal (cf. p. ex. Acórdão n.º 94/2004,
www.tribunalconstitucional.pt, onde se dá conta de decisões de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça), só em situações excepcionais, em que o desacerto é ostensivo, o legislador entendeu desviar-se da regra do esgotamento dos poderes jurisdicionais do juiz quanto à matéria da causa logo que proferido o julgamento
(artigo 666.º, n.º 1, do CPC).
Ora, aquilo que os recorrentes alegam não corresponde à hipótese de qualquer destes preceitos. Ainda que as coisas fossem como as requerentes dizem, nunca o erro de julgamento seria ostensivo, evidente, revelador de simples desatenção ou desconhecimento de elementos fácticos ou jurídicos que impusessem solução diversa daquela a que se chegou. Basta comparar o esforço argumentativo das recorrentes com o teor do acórdão para ver que não se pede ao Tribunal que corrija um lapso ou um erro evidente, mas que reveja o seu entendimento sobre o princípio da auto-responsabilidade das partes no domínio da reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso (A) e reaprecie elementos processuais que já levou em consideração, embora valorando-os de modo diverso daquele que as recorrentes pretendem (B). Em qualquer dos pontos, a solução do acórdão pode ser discutível, mas não é produto de erro manifesto ou desconsideração de qualquer norma jurídica, na qualificação jurídica dos factos ou na valoração de elementos probatórios.
Tanto basta para indeferir o pedido de reforma do acórdão.
4. Reforma da decisão quanto a custas
Argumentando, para efeitos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, que o processo é de natureza e complexidade manifestamente reduzida e que os interesses em causa deveriam corresponder ao valor do processo
(€ 14 963,39), as recorrentes pedem a reforma da condenação em custas, reduzindo-se a taxa de justiça para não mais de 6 UC, que seria o valor da taxa de justiça em caso de improcedência do recurso no Supremo Tribunal de Justiça.
Não se justifica a redução pretendida, porque a taxa de justiça se mostra fixada dentro dos limites e de acordo com os critérios a que os artigos
7.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98 mandam atender.
O processo apresenta complexidade idêntica à da generalidade dos processos desta espécie e o montante fixado corresponde à prática reiterada do Tribunal em casos semelhantes. Por outro lado, o montante de 20 UC, ficando abaixo do termo médio da moldura legal (entre 5 UC e 50 UC), não se mostra manifestamente desproporcionado relativamente aos interesses materiais em disputa, uma vez que o litígio versa sobre um arrendamento comercial. Por outro lado, a comparação com a taxa de justiça devida no Supremo Tribunal de Justiça é descabida porque a lei optou por estabelecer um regime próprio de fixação das custas no Tribunal Constitucional, que diferentemente do Código das Custas Judiciais, não escolhe como base de determinação o valor da causa.
5. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a arguição de nulidade e os pedidos de reforma do acórdão de fls 85 e ss. e condenar as recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em vinte UC.
Lisboa, 19 de Novembro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício