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Processo n.º 702/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 17 de Junho de 2004, que decidira:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão da 1.ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão, e, consequentemente, negar provimento ao recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Março de 2004; e
b) Não conhecer do objecto do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13 de Outubro de 2003, por inadmissibilidade do mesmo.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Março de 2004 (fls.
1306 a 1309), que rejeitou, por inadmissível, recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13 de Outubro de 2003 (fls. 1189 a 1211), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade:
– «da interpretação e aplicação conjugada que o acórdão proferido fez dos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, alínea b), do Código de Processo Penal, no sentido de que é irrecorrível o acórdão da Relação confirmativo do acórdão da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça quando o arguido venha acusado por crime ao qual seja aplicável em abstracto pena superior a oito anos de prisão e venha a ser condenado nas instâncias por crime ao qual seja aplicável em abstracto pena igual a oito anos de prisão, por violação dos artigos 9.º, n.º 2, do Código Civil, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição»; e
– «da interpretação e da aplicação conjugada que se fez do vertido nos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, alínea b), do Código de Processo Penal e do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, nomeadamente do primeiro normativo no segmento em que afasta a recorribilidade do acórdão da Relação confirmativo do acórdão da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena aplicável ao concurso de infracções seja superior a oito anos de prisão, por violação dos artigos 9.º, n.º 2, do Código Civil, e 13.º, n.º 1, e
32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição». O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, mas, antes de os autos serem remetidos ao Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou o requerimento de fls. 1317, no qual, após referir que aquando da interposição do recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça também interpusera recurso desse mesmo acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, visando a apreciação da constitucionalidade «da interpretação e aplicação que, quer o Tribunal de Comarca quer o Tribunal da Relação fez do artigo 70.º, n.º 2, do Código Penal», mas que sobre este requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade não recaiu despacho de admissão no Tribunal da Relação de Guimarães, solicitou o envio do processo a esse Tribunal da Relação para ser proferido tal despacho, uma vez que é ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida que compete apreciar a admissão do respectivo recurso (artigo 76.º, n.º 1, da LTC).
Deferido este requerimento e remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, aí o Desembargador Relator proferiu despacho de admissão de recurso para o Tribunal Constitucional tendo por objecto o acórdão dessa Relação, de 13 de Outubro de 2003. Constata-se, porém, que, por um lado, a questão de constitucionalidade suscitada a propósito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é de considerar
«simples», por já ter sido objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, e que, por outro lado, o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães é inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu objecto, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. Quanto ao recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13 de Outubro de
2003, confirmou o acórdão das Varas de Competência Mista de Guimarães, de 7 de Maio de 2003, que condenou o ora recorrente, pela prática de cada um de cinco crimes de roubo, previstos e punidos no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão e, em cúmulo dessas penas parcelares, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.
No requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente sustentou a admissibilidade desse recurso por, a seu ver, se dever entender que quando o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP) declara irrecorríveis os «acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções», deve atender-se, não aos crimes pelos quais o arguido foi condenado (no caso: cinco crimes de roubo, previstos no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal e puníveis, cada um, com prisão de 1 a 8 anos), mas – uma vez que é a acusação (ou o despacho de pronúncia, se o houver) que fixa o objecto do processo – aos crimes pelos quais o arguido foi acusado (no caso: oito crimes de roubo qualificado na forma consumada e dois crimes de roubo qualificado na forma tentada, previstos nos artigos 210.º, n.º 2, alínea b), e 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, e puníveis, cada um, com prisão de 3 a 15 anos), logo aduzindo que «diversa aplicação e interpretação das disposições conjugadas dos artigos 432.º, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal deve ser julgada ilegal e inconstitucional por violação dos artigos 9.º, n.º 2, do Código Civil, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa».
O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, mas quer na resposta do representante do Ministério Público nesse Tribunal à motivação do recurso, quer no parecer emitido pelo representante do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça se defendeu a inadmissibilidade do recurso, com base no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, quer por se dever atender às penas aplicáveis aos crimes pelos os quais o arguido foi condenado (e não aos crimes pelos quais foi acusado ou pronunciado), quer porque, estando em causa recurso interposto pelo arguido, por força da proibição da reformatio in pejus a pena aplicável, no caso, pelo Supremo Tribunal de Justiça nunca poderá ser superior a 6 anos e 6 meses de prisão.
Em resposta ao aludido parecer, o recorrente propugnou a improcedência do entendimento sustentado, aduzindo a inconstitucionalidade dessa interpretação.
O Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 3 de Março de 2004, decidiu rejeitar o recurso. Após referir as teses defendidas pelos diversos intervenientes processuais e a anterior jurisprudência desse Supremo Tribunal e após reproduzir as normas dos artigos 432.º, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, consignou-se nesse acórdão:
“Perante a clareza dos textos legais, temos como adquirido – e é significativa a jurisprudência nesse sentido – que «pena aplicável», referida na alínea f)
(transcrita) e na anterior alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, se reporta à moldura geral abstracta da pena prevista para o crime ou crimes apreciados na
1.ª instância, e não à pena concretamente aplicada.
E isto é válido «mesmo em caso de concurso de infracções», pois o que releva para efeitos de admissão, ou não, de recurso não é a pena única, aplicável ou aplicada, em resultado do cúmulo, mas sim e apenas a pena abstractamente aplicável, a cada um dos crimes singularmente considerados.
Tendo o arguido/recorrente sido condenado por crimes, todos e cada um deles, puníveis com pena de prisão não superior a 8 anos de prisão (artigo
210.º, n.º 1, do Código Penal) e tendo o acórdão da Relação confirmado a decisão da 1.ª instância (pena única, 6 anos e 6 meses de prisão), não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por tantos serem (e subscrevemos já alguns) dispensamo-nos de citar alguns dos muitos acórdãos já proferidos pelo STJ no sentido que vem exposto.
Já bastam as citações carreadas pelo Ministério Público numa e noutra instância.
O pouco que acrescentaremos insere-se apenas no propósito de demonstrar (ou tentar demonstrar) o infundado da tese em que se baseia o recorrente.
a) A Lei Fundamental e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagram apenas como garantia de defesa, nesta área, o direito ao recurso, ou seja, um duplo grau de jurisdição que o recorrente já esgotou.
b) Não foi em vão que na exposição de motivos da Proposta da Lei n.º
157/VII, que precedeu a revisão do CPP levada a cabo pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, se estabeleceu como um dos objectivos anunciados: «c) Faz-se um uso discreto do princípio da “dupla conforme”, harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade».
Significa isto que, havendo duas decisões coincidentes ou idênticas
– uma delas proferidas pelo tribunal de recurso –, deve impedir-se mais um grau de recurso, no caso, para o STJ, quando a criminalidade julgada é de média ou pequena gravidade. Esta a ratio da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Naturalmente que a «duplo conforme» só pode reportar-se ao que foi objecto da condenação em 1.ª instância e não ao objecto do processo, como vem definido e defendido pelo recorrente.
c) É certo que a acusação fixa o objecto do processo, até por força dos princípios do acusatório e do contraditório.
Simplesmente, o objecto assim definido não permanece inalterável ad aeternum, como supõe o recorrente.
Desde logo, pode ser alterado (ainda que não substancialmente) na pronúncia se a ela houver lugar (artigos 303.º e 309.º do CPP).
Depois, alterado pode ser também no acto do julgamento, nos termos previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP e será aí (no julgamento), depois de os julgadores terem conhecido esgotantemente de toda a acusação, que fixam o objecto da condenação, se for caso de condenação.
Será a partir desta condenação que o arguido arquitectará a sua defesa em termos de acesso a um ou a dois graus de recurso, consoante a gravidade da condenação. Não há, pois, que falar em surpresas ou frustrações de expectativas.
É óbvio que nem por absurdo se admite que o arguido interpusesse recurso da decisão da 1.ª instância que o condenou por crimes menos graves do que aqueles que constavam da acusação só para defender que, a ser condenado, o seja pelos crimes constantes da acusação para que o objecto do processo se mantenha o mesmo. E é precisamente o contrário disto que ele agora, e mais uma vez, pretende ao pedir a alteração, para menos (furtos em vez de roubos), do objecto do processo.
d) Acresce ainda que não é inteiramente líquido que o objecto do processo seja constituído não só pelos factos mas também pela qualificação jurídico-penal atribuída pela acusação.
Não falta quem defenda que são apenas os factos, socialmente relevantes, que integram aquele objecto, até porque o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dada pela acusação.
Com isto, cremos ter demonstrado a sem razão do recorrente neste ponto.
Motivo por que se delibera rejeitar, por inadmissível, o recurso interposto para o STJ.”
A questão de inconstitucionalidade suscitada no presente recurso já por diversas foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que sempre concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretada – como o foi na decisão ora recorrida – no sentido de que, em caso de concurso de infracções, é relativamente às penas parcelares aplicáveis aos crimes singulares que se tem de aferir a ultrapassagem do limite máximo de 8 anos de prisão, necessário para abrir a via de recurso para o STJ contra acórdãos das Relações que confirmem decisão da 1.ª instância.
A questão foi desenvolvidamente tratada no Acórdão n.º 189/2001
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 285), no qual se expendeu:
«A questão que o recorrente suscita na sua reclamação para o Presidente do STJ
é, afinal, a da não consagração, no caso, de um terceiro grau de jurisdição, pretendendo com a interpretação normativa que considera conforme à Constituição abrir esse terceiro grau de recurso.
Porém, não tem razão.
6. – A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
Importa, todavia, averiguar em que medida a existência de um duplo grau de jurisdição poderá eventualmente decorrer de preceitos constitucionais como os que se reportam às garantias de defesa, ao direito de acesso ao direito e à tutela judiciária efectiva.
Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tratado destas matérias, estando sedimentados os seus pontos essenciais.
Assim, a jurisprudência do Tribunal tem perspectivado a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento específico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de 1997, no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, do direito ao recurso mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa.
Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (veja-se, neste sentido, o Acórdão n.º 265/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., pág. 751 e seguintes).
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32.º (O processo criminal assegura todas as garantias de defessa, incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (v. g., quer de despachos interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos n.ºs
118/90, 259/88 e 353/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15.º, pág.
397, vol. 12.º, pág. 735, e vol. 19.º, pág. 563, respectivamente, e Acórdão n.º
30/2001, sobre a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação, ainda inédito), como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ (veja-se, neste sentido, o Acórdão n.º 209/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º vol., pág.
553).
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta limitação à recorribilidadade das decisões penais condenatórias tem, assim, um fundamento razoável.
7. – No caso em apreço, como se referiu, o recorrente entende que a interpretação feita, na decisão recorrida, da alínea f) do n.º 1 do artigo
400.º do CPP viola os artigos 13.º, 20.º e 32.º da Constituição, uma vez que a lei atende apenas como patamar máximo para não admitir o recurso a condenação por crime a que seja aplicável pena não superior a 8 anos, mesmo que haja concurso de infracções.
O artigo 400.º do CPP foi alterado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, diploma que veio introduzir modificações no processo penal e deu à alínea f) a redacção que ainda mantém. De acordo com a proposta de revisão do processo penal (Proposta de Lei n.º 157/VII, Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 27, de 28 de Janeiro de 1998), as modificações introduzidas na legislação processual penal visavam obter melhorias nos objectivos de economia processual, de eficácia e de garantia, que já informavam a anterior regulamentação.
Assim, e nos termos da exposição de motivos daquela proposta de lei, introduziram-se modificações destinadas a dar mais consistência e eficácia aos meios disponíveis, de entre elas se assinalando as de maior relevo para o caso: pretendeu-se restituir ao STJ a função de tribunal que apenas conhece de direito, mas com excepções; manteve-se a tramitação unitária dos recursos, mas sem haver um único modelo de recurso; faz-se um uso discreto do princípio da
«dupla conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do STJ a casos de maior gravidade; retoma-se a ideia da diferenciação orgânica, apenas fundada no princípio de que os casos de pequena e média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, etc. (cf., sobre esta matéria, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12.ª edição, pág. 754).
A norma que vem questionada refere-se claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções, que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de acórdãos condenatórios das Relações que confirmem a decisão de primeira instância.
Significa isto que o patamar a partir do qual a decisão da Relação
é irrecorrível é o que fixa em pena não superior a 8 anos a pena aplicável a determinado crime, independentemente de, no caso, terem sido várias as infracções cometidas em concurso. Relevante, para efeitos de
(in)admissibilidade de recurso é a pena aplicável ao crime cometido e não a soma das molduras abstractas de cada um dos crimes em concurso.
Como já se referiu, mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
Ora, no caso dos autos, o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior.
Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias
– é um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado, e que corresponde aos objectivos da última reforma do processo penal.
Tem, por isso, de se concluir que a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
8. – Mas também não viola o princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva, constante do artigo 20.º, nem o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, ambos da Constituição.
De facto, o artigo 20.º estabelece que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» e ainda que «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” (n.ºs 1 e 4). Ora, no caso em apreço, a questão foi objecto de apreciação por duas instâncias, pelo que não se pode afirmar que tenha havido violação do preceito, uma vez que dele apenas resulta que o legislador terá de assegurar imperativamente e sem restrições o acesso a um grau de jurisdição.
Também quanto ao princípio da igualdade não foi violado, uma vez que a limitação estabelecida na norma questionada não se afigura como arbitrária ou desproporcionada, sendo admissível desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido, que, como se referiu, não abrangem o direito ao exame de questão já reexaminada em duas instâncias.
Por último, importa referir que a situação paralela mencionada pelo recorrente – a do critério para fixação da competência dos tribunais para julgamento – não tem que ser invocado para apreciar a limitação a um triplo grau de jurisdição, uma vez que não se trata de situações essencialmente iguais que exijam tratamento igual. No caso do artigo 14.º trata-se da distribuição da competência funcional e material entre o tribunal colectivo e o tribunal singular. No caso do artigo 400.º trata-se de uma limitação do direito de recurso cujos parâmetros e finalidades são inteiramente diferentes dos que subjazem à questão da distribuição de competência, pelo que não faz sentido invocar aqui o princípio da igualdade.
De acordo com o exposto, a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo
400.º do CPP não viola nem o artigo 13.º nem o artigo 20.º ou o artigo 32.º, todos da Constituição da República Portuguesa, não sendo assim inconstitucional.»
Este entendimento foi reiterado, quanto à norma do artigo 400.º, n.º
1, alínea f), do CPP nos Acórdãos n.ºs 336/2001, 369/2001, 435/2001, 451/2003,
495/2003 e 102/2004 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), incidindo os três últimos sobre recente interpretação dessa norma que vem sendo adoptada nalgumas decisões do STJ (mas que o acórdão ora recorrido não seguiu), no sentido de que, mesmo que o limite máximo do moldura penal em causa seja superior a 8 anos de prisão, não há recurso para o STJ se o acórdão da Relação, confirmativo da decisão da 1.ª instância, tiver condenado em pena inferior a 8 anos e o recurso for interposto apenas pelo arguido (ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa), pois nessa situação, por força da proibição da reformatio in pejus, a pena «aplicável» pelo STJ nunca poderá exceder os 8 anos de prisão.
Na sequência da referenciada orientação jurisprudencial deste Tribunal, há que julgar improcedente o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
3. Quanto ao recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães:
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa constitucional alemã). A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Ora, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, o recorrente não suscitou nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa tendo por objecto a norma do artigo 71.º, n.º
2, do Código Penal (que enuncia, ao longo de seis alíneas, as circunstâncias atendíveis pelo tribunal na determinação concreta da pena) ou de qualquer interpretação desta norma, interpretação essa que, aliás, o recorrente nunca identificou de forma clara e precisa, nem sequer no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade.
A falta de identificação de qualquer interpretação normativa reportável ao artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal implica que não se possa dar por verificado o requisito da suscitação, pelo recorrente, da questão de inconstitucionalidade «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), nem o requisito da aplicação, pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de uma interpretação normativa que se ignora qual seja, o que inviabiliza qualquer hipótese de sobre ela poder recair um eventual juízo de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional.
As críticas do recorrente à medida da pena dirigem-se directamente à decisão judicial da 1.ª instância, em si mesma considerada, indissociável das particularidades específicas do caso concreto, não podendo servir de suporte a uma questão de inconstitucionalidade normativa.
4. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão da 1.ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão, e, consequentemente, negar provimento ao recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Março de 2004; e
b) Não conhecer do objecto do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13 de Outubro de 2003, por inadmissibilidade do mesmo.”
1.2. O recorrente veio requerer, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 669.º do Código de Processo Civil, a aclaração dessa decisão sumária, visando ser informado “se é entendimento deste Tribunal que o mesmo juízo que se fez nesses acórdãos [Acórdãos n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001,
435/2001, 451/2003, 495/2003, e 102/2004] relativamente à constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal em face do vertido nos artigos 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição se deve fazer relativamente à conformidade da mesma disposição da lei adjectiva penal e dos artigos 432.º, alínea b), do Código de Processo Penal e 77.º, n.º 2, do Código Penal, em face dos artigos 2.º e 32.º, n.ºs 2 e 5, da Constituição”.
Esse pedido de aclaração foi indeferido por despacho do relator de 8 de Julho de 2004, uma vez que o recorrente não apontava, concretamente, a nenhuma passagem da decisão sumária qualquer ambiguidade ou obscuridade.
1.3. A presente reclamação para a conferência desenvolve a seguinte argumentação:
“O recorrente interpôs recurso do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Março de 2004, que rejeitou o recurso interposto pelo recorrente por inadmissibilidade, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º, 1 alínea b), da Constituição da República Portuguesa e 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, invocando a inconstitucionalidade: a) da interpretação e aplicação conjugada que o acórdão proferido fez dos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.°, alínea b), do Código de Processo Penal, no sentido de que é irrecorrível o acórdão da Relação confirmativo do acórdão da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça quando o arguido venha acusado por crime ao qual seja aplicável em abstracto pena superior a oito anos de prisão e venha a ser condenado nas instâncias por crime ao qual seja aplicável em abstracto pena igual a oito anos de prisão, por violação dos princípios da segurança e confiança jurídica e, nomeadamente, por violação dos artigos 9.°, n.º 2, do Código Civil e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição; b) da interpretação e da aplicação conjugada que se fez do vertido nos artigos
400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, alínea b), do Código de Processo Penal e no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, nomeadamente do primeiro normativo no segmento em que afasta a recorribilidade do acórdão da Relação confirmativo do acórdão da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena aplicável ao concurso de infracções seja superior a oito anos de prisão, por violação dos artigos 9.°, n.º 2, do Código Civil, 13.°, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição. Por douta decisão sumária datada de 17 de Junho de 2004 foi decidido não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão da 1.ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão e não conhecer do objecto do recurso interposto do acórdão da Relação de Guimarães, de 13 de Outubro de 2003. Na parte que à presente reclamação interessa, disse-se na douta decisão reclamada:
«Constata-se, porém, que, por um lado, a questão de constitucionalidade suscitada a propósito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é de considerar
“simples”, por já ter sido objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, e que, por outro lado, o recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães é inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu objecto, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.°-A da LTC.» E assim se decidiu porquanto a «questão foi desenvolvidamente tratada no Acórdão n.º 189/2001», que se transcreveu, e ainda nos Acórdãos n.ºs 336/01, 369/01,
435/01, 451/03, 495/03 e 102/04. Dispõe o artigo 78.°-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que «Se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada, o relator profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal». O reclamante teve, naturalmente, o cuidado de ler os doutos acórdãos citados na decisão reclamada e constatou que tais acórdãos analisaram a constitucionalidade do artigo 400.°, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal em face das normas constitucionais dos artigos 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 1,
27.º e 32.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Ora, o reclamante pretende com o recurso de constitucionalidade a análise da conformidade do citado artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal em face do vertido não só nos artigos 13.°, n.º 1, e 32.°, n.º 1, da Constituição, mas também do vertido nos n.ºs 2 e 5 do mesmo preceito e dos princípios da segurança e confiança jurídicas como emanação do princípio do Estado de Direito Democrático (cfr. artigo 2.° da Constituição) tal como resulta do requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, da resposta ao parecer do Ministério Público junto desse Tribunal e do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Assim, tendo o recorrente suscitado a inconstitucionalidade da norma do artigo
400.°, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal invocando a violação dos artigos 32.°, n.ºs 2 e 5, e 2.° da Constituição (embora quanto a este último normativo tenha apenas aludido ao princípio da confiança e segurança jurídicas e não ao normativo em si) e tendo o Tribunal Constitucional apreciado a conformidade do aludido artigo 400.°, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal apenas relativamente aos artigos 13.°, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.° e 32.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a questão não pode ser tida como
«simples». Com efeito, uma questão é «simples», nos termos do disposto no artigo 78.°-A, n.º 1, da LTC, quando já houver sido objecto de decisão anterior por parte do Tribunal Constitucional, sendo que essa simplicidade não se confunde com incontrovérsia doutrinal. No entanto, ao que sabe o recorrente, o Tribunal Constitucional nunca aquilatou da conformidade da norma citada do Código de Processo Penal com as normas dos artigos 32.°, n.ºs 2 e 5, e 2.° da Constituição da República Portuguesa.
É que a norma cuja inconstitucionalidade se argui é, de facto, a mesma, mas as razões pelas quais se argui a inconstitucionalidade são diversas. Fazendo aqui o paralelo com o instituto do caso julgado, o pedido é o mesmo, mas desde logo as partes não são as mesmas e a causa de pedir é diversa, pelo que não poderia o Sr. Conselheiro Relator proferir decisão sumária uma vez que não estavam, como não estão, preenchidos os pressupostos para a mesma ser proferida. A não ser que se entenda que a definição de «questão simples» é mais abrangente que a noção de «caso julgado», o que não se coaduna certamente com o espírito do legislador, nem com os princípios estruturantes do Estado de Direito Democrático. O que se alegou sumariamente na resposta ao parecer do Ministério Público relativamente à conexão entre o objecto do processo – princípio do acusatório
– e a admissibilidade de recurso do acórdão da Relação confirmativo do acórdão da primeira instância para o Supremo Tribunal de Justiça e se transcreveu no requerimento de aclaração é, salvo o devido respeito por opinião contrária, inovador em relação às anteriores decisões deste alto Tribunal na matéria em causa. Repare-se, aliás, que o Ilustre Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal quando se pronunciou sobre o pedido de aclaração deduzido pelo recorrente, não deixou de ponderar que o recurso era «(...) obviamente improcedente (...), mesmo na óptica do enquadramento que o ora reclamante lhe pretendeu conferir». Ora, se o recurso será ou não improcedente caberá, naturalmente, a V. Ex.as decidir. Mas, ainda que se opine – como se opinou – que o recurso merece provimento, não deixará de se constatar que o Ministério Público reconheceu que ocorria novidade
«na óptica do enquadramento que o ora reclamante lhe pretende conferir». Aliás, o reclamante teve oportunidade de citar no requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e na resposta ao parecer do Ministério Público nesse Tribunal pelo menos três acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nos quais se defendeu que para o efeito do disposto no artigo 400.°, n.º 1, alínea g), do CPP, a referência legal à pena aplicável está reportada
àquela que em abstracto é a prevista na lei para o crime imputado na acusação/pronúncia, sendo irrelevantes as penas que tenham sido efectivamente aplicadas nas instâncias. – cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Outubro de 2003, proferido no Proc. n.º 2401/03-5 e publicado in www.dgsi.pt. A questão a decidir não é «simples» como se deduz do douto parecer citado porque a «óptica do enquadramento que o ora reclamante lhe pretendeu conferir» é diferente da óptica do enquadramento que o Tribunal Constitucional teve em conta para não julgar inconstitucional a norma do Código de Processo Penal em causa. E, note-se, que essa «óptica» não é nova no sentido de apenas ter sido alegada no pedido de aclaração ou no requerimento de interposição do recurso, porquanto essa mesma questão já vem levantada desde o requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Não pode nem deve o Tribunal Constitucional, por a tal se opor a sua lei orgânica, verificar da conformidade constitucional de uma dada norma da lei ordinária em face de toda e qualquer norma constitucional, uma vez que isso implicaria que este Tribunal tivesse, em face da invocação da inconstitucionalidade de tal norma, de percorrer toda a Constituição, artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, para aquilatar da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da mesma. De facto, se fosse de acolher o entendimento de que uma vez analisada a questão da constitucionalidade de uma determinada norma da lei ordinária em face de uma outra da Constituição, o Tribunal Constitucional tivesse de proferir decisão no sentido da manutenção do seu entendimento e tendo em conta uma certa estabilidade legislativa, a breve trecho o Tribunal Constitucional não teria quaisquer processos de fiscalização concreta para decidir, uma vez que o número de normas é finito e todas já haviam sido declaradas constitucionais ou inconstitucionais por este Tribunal, ou seja, o Tribunal Constitucional passaria apenas a fazer a fiscalização preventiva da constitucionalidade – quando as normas entrassem em vigor e nos termos legais – deixando de fazer a fiscalização concreta da constitucionalidade. De qualquer das formas, a douta decisão sumária proferida é nula, uma vez que não se pronunciou sobre a questão de constitucionalidade supra citada, questão essa que deveria apreciar (cfr. o artigo 668.°, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil). Assim, o recurso deve seguir os seus ulteriores termos, sendo dada a oportunidade para o recorrente alegar o que tiver por conveniente em face do enquadramento que deu no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal. Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.as no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve a presente reclamação ser atendida e, em consequência, ser o reclamante notificado para alegar, seguindo o recurso de constitucionalidade os ulteriores termos até final.”
1.4. O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional respondeu nos seguintes termos:
“1 – Mesmo admitindo que seja tempestiva a presente reclamação, carece manifestamente de fundamento.
2 – Na verdade, para tornar uma questão de constitucionalidade como
«não simples», de modo a torná-la diferente de outras já decididas pelo Tribunal Constitucional, em anterior jurisprudência, não basta ao recorrente invocar outras normas e princípios constitucionais, que traduzem um enquadramento jurídico manifestamente inadequado.
3 – Estando em causa uma limitação do direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por parte do arguido, é evidente que o único parâmetro de aferição relevante é naturalmente o do «direito ao recurso»,
ínsito no princípio das garantias de defesa – perspectiva pela qual tal questão já foi reiteradamente avaliada e decidida pelo Tribunal Constitucional.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O recorrente impugna a qualificação como “simples” da questão relativa à inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), por terem sido por ele invocados fundamentos de inconstitucionalidade que ainda não teriam sido apreciados pelas anteriores decisões do Tribunal Constitucional que se pronunciaram sobre a questão.
A este respeito, cumpre recordar as considerações tecidas no Acórdão n.º 131/2004 (proferido em reclamação de decisão sumária na qual a reclamante também questionava a verificação dos requisitos estabelecidos no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC para a emissão de uma decisão sumária, sustentando serem dois os fundamentos possíveis de uma tal decisão – a existência de uma decisão anterior do Tribunal sobre a mesma questão ou ser a questão manifestamente infundada – e que, no caso, a decisão anterior em que se baseou a decisão sumária não terá julgado a mesma questão por os parâmetros de constitucionalidade agora indicados serem mais amplos):
“Em primeiro lugar não é exacto que o artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC só permita a decisão sumária nas situações apontadas pela recorrente.
Com efeito, o preceito da LTC, ao conferir ao relator os poderes para emitir decisão sumária por a questão ser simples, não condiciona esta qualificação ao facto de haver decisão anterior sobre a mesma questão; tal é, desde logo, contrariado pela circunstância de aquele condicionamento ser antecedido pela expressão «designadamente», o que não pode deixar de significar a possibilidade de qualificar a questão como simples por uma multiplicidade de razões, mesmo que ela não tenha sido exactamente a mesma que foi objecto de decisão anterior.
Bastará para tal qualificação que na fundamentação da decisão anterior, muito embora sobre questão não inteiramente coincidente com a dirimida em posterior recurso, se tenham formulado juízos que imponham uma determinada solução de direito neste recurso, merecendo a questão, por essa via, a qualificação de simples.”
Depois, o que o recorrente em rigor contesta é a interpretação dada pelo acórdão recorrido à noção de “pena aplicável” constante da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP. São conhecidos os divergentes sentidos que a essa expressão têm sido dados ou propostos. O recorrente vem sustentar que “pena aplicável” é a que respeita aos crimes imputados na acusação (no caso: oito crimes de roubo qualificado, na forma consumada, previstos nos artigos 210.º, n.º 2, alínea b), e 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, e puníveis com prisão de 3 a 15 anos, e dois crimes de roubo, na forma tentada, previstos nas mesmas disposições), e não aos crimes julgados provados na decisão condenatória da 1.ª instância (cinco crimes de roubo simples, previstos no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, puníveis com pena de 1 a 8 anos de prisão, e pelos quais foi condenado nas penas de 2 anos e
3 meses de prisão, por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena de 6 anos e
6 meses de prisão), confirmada pelo acórdão da Relação da qual apenas o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Não foi a preconizada pelo recorrente a interpretação acolhida pelo acórdão recorrido e o que compete ao Tribunal Constitucional é, não aquilatar da correcção dessa interpretação do direito ordinário, mas, tomando-a como um dado, apreciar se a mesma viola alguma norma ou princípio constitucionais.
Nesta perspectiva, o único vector a ter em conta, como assinala o Ministério Público, é o do direito ao recurso, a propósito do qual a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado não ser constitucionalmente imposto um terceiro grau de jurisdição, mesmo em matéria penal. Desta sedimentada orientação do Tribunal Constitucional resulta a inexorável conclusão da não inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º
1, alínea f), do CPP, seja qual for o entendimento que se dê à expressão “pena aplicável” (pena abstractamente aplicável aos crimes imputados na acusação, pena abstractamente aplicável aos singulares crimes pelos quais o arguido foi condenado, pena abstractamente aplicável ao concurso dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, pena aplicada pela Relação e insusceptível de agravação pelo Supremo Tribunal de Justiça se se tratar de recurso interposto apenas pelo arguido e/ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa).
Ora, como se registou no citado Acórdão n.º 131/2004, é de qualificar como “simples” uma questão de inconstitucionalidade sempre que da adopção da fundamentação de anteriores decisões do Tribunal Constitucional derive a imposição de uma determinada solução dessa questão, mesmo que nessas decisões não tenham sido especificamente apreciados todos os argumentos aduzidos pelo recorrente, e sobretudo quando, como no caso ocorre, a invocação de novas normas e princípios constitucionais “traduzem um enquadramento jurídico manifestamente inadequado”, como refere o Ministério Público. Na verdade, respeitando a questão de constitucionalidade ora em apreço à possibilidade de limitação dos graus de recurso em processo penal, surge como manifestamente desadequado o enquadramento da questão reportado aos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º da CRP ou ao princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica consagrado no artigo 2.º da CRP (este, aliás, nem sequer invocado no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade), com base no argumento de que o objecto do processo é definido pela acusação, argumento este, aliás, refutado pelo acórdão recorrido, que recordou a possibilidade de alteração desse objecto e salientou o absurdo que seria o arguido, “favorecido” pela condenação por menos crimes e por crimes menos graves do que os que constavam da acusação, vir defender a possibilidade de condenação pelos crimes que lhe foram imputados na acusação (e, de facto, o que o arguido pretendia defender no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça era a “degradação” dos crimes de roubo por que foi condenado em crimes de furto).
Nada impedia, pois, que a questão suscitada a propósito do recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça fosse qualificada como
“simples” e, como tal, objecto de decisão sumária no sentido da não inconstitucionalidade da norma questionada.
A parte da decisão sumária relativa ao não conhecimento do recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães não foi objecto de contestação por parte do recorrente.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Outubro de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos