Imprimir acórdão
Processo n.º 463/03
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Abrantes, em que figuram como recorrente o Ministério Público e como recorrida A., o Tribunal decidiu
“recusar por inconstitucionalidade, a aplicação do artº 23 n.º 4 do C. Expropriações, na redacção da L 168/99 de 18/9, por considerar que esta norma legal viola os princípios constitucionais da igualdade, na sua vertente externa e da justa indemnização (arts. 13º e 62º n.º 2 da C.R.P.)”, fundamentando tal recusa nos seguintes termos:
“[...]
- quanto ao pedido da dedução, à indemnização, da diferença fixada na decisão arbitral das quantias efectivamente pagas, a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos, o ,Tribunal entende que a norma do artº 23° n° 4 C. Expropriações é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade, na sua vertente externa e da justa indemnização - arts. 13° e 62° n° 2 da C.R.P. (neste sentido, Pedro Elias da Costa, Guia das Expropriações por utilidade pública, 2003, p. 257 e Melo Ferreira, Código das Expropriações anotado, 2ª ed., págs. 114 e 115), razão pela qual se recusa a aplicar «in casu» esta norma legal. Com efeito, a referida norma legal acaba por reduzir , em termos práticos, a indemnização impondo aos expropriados um sacrifício que não é imposto a todos aqueles que transmitem onerosamente bens imóveis e, para além disso, obsta a que o montante indemnizatório corresponda ao valor real e corrente do bem. [...]”
2. O Ministério Público, “nos termos do disposto no art. 70º/n.º 1/a) da Lei
28/82 de 15 de Novembro, com as redacções das Leis 143/85 de 26/11, 85/89, de
7/9, 88/95 de 1/9 e 13-A/98 de 26/2”, interpôs recurso obrigatório desta decisão para o Tribunal Constitucional.
3. Notificadas as partes para alegações, concluiu assim o Ministério Público:
“1 - A norma constante do artigo 23°, n.º 4, do Código das Expropriações de
1999, ao prever a compensação entre o montante da indemnização devida ao expropriado e resultante da avaliação efectuada em tal processo e o direito da Fazenda Pública à correcção e revisão oficiosa da liquidação da contribuição autárquica, resultante da actualização dos valores matriciais - e devida no período temporal em que não ocorreu ainda caducidade do direito à liquidação - não viola os princípios da não retroactividade da lei fiscal e da confiança e segurança jurídicas.
2 - Na verdade - e face ao regime instituído nos artigos 20° e 21 ° do Código da Contribuição Autárquica - a liquidação desta com base nos valores constantes de matrizes não actualizadas reveste natureza provisória até ao momento da caducidade do direito à liquidação e revisão oficiosa, podendo ser corrigida pela Administração fiscal sempre que uma superveniente avaliação dos bens revele um valor patrimonial superior ao que constava da matriz.
3 - E inexistindo, deste modo, qualquer expectativa minimamente fundada do contribuinte na estabilidade dos valores liquidados com base na matriz, sendo os mesmos oficiosamente revisíveis sempre que uma avaliação ulterior dos bens mostre que os valores patrimoniais não estavam actualizados.
4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. A recorrida, por seu turno, nada disse.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. A decisão recorrida considerou inconstitucional e, consequentemente, não aplicou a norma constante do artigo 23°, n.º 4, do Código das Expropriações de
1999, nos termos da qual “ao montante indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previsto no C.E. deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos.”.
Este Tribunal decidiu, entretanto, no Acórdão n.º 422/2004 (já disponível na página do Tribunal Constitucional na Internet, no novo endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000030.html), tirado em Plenário no processo n.º 462/03, num caso idêntico ao dos autos, em que estava em causa a mesma norma, não julgar inconstitucional a norma questionada e, consequentemente, conceder provimento ao recurso. Escudou-se, para tal, na seguinte argumentação:
“[...]“3 - A violação do princípio constitucional da igualdade decorre, na
óptica da decisão recorrida, da circunstância de o sacrifício traduzido na redução do valor indemnizatório afectar apenas os expropriados “e não todos aqueles que transmitam onerosamente bens imóveis” (João Pedro de Melo Ferreira, ob, cit. pág. 115). Trata-se aqui daquilo que usualmente se qualifica como o princípio da igualdade na relação externa da expropriação (compara expropriados com não expropriados). Não obstante a decisão em causa se referir, exclusivamente, à perspectiva externa do princípio da igualdade, adiante focaremos também a chamada vertente interna deste (comparação entre expropriados). Embora de um ponto de vista doutrinário se discuta se a expropriação por utilidade pública pode ser vista como implicando a transmissão de um bem (cfr. neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol II, 9ª ed., reimpressão, págs. 1020/1021; Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, separata do volume XXIII do suplemento do BFDUC, Coimbra 1982, pág, 77), ou constitui antes uma forma de extinção de direitos reais sobre bens imóveis, com a concomitante constituição de novos direitos na esfera jurídica do expropriante (esta é a posição de Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II vol., Lisboa 1979, págs 794/795; no mesmo sentido, José Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa 1997, págs. 18/21), o que é facto é que, em termos de princípio constitucional da igualdade, pode colocar-se em paralelo a posição de quem realiza uma transmissão onerosa de bens imóveis com a de quem é privado de um bem desta natureza através de expropriação por utilidade pública, ou seja, mediante o pagamento de uma justa indemnização. Com efeito, existindo em ambos os casos a realização de um valor decorrente da saída da esfera patrimonial de alguém de um bem imóvel, pode-se comparar, designadamente no que toca à sujeição desse valor a encargos públicos, a situação de quem transmite onerosamente com a de quem é indemnizado em virtude de expropriação (princípio da igualdade na relação externa da expropriação). A demonstração da pertinência desta comparação alcança-se ao constatar, por exemplo, que para o efeito de sujeição a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), tanto a contraprestação relativa à alienação onerosa, como o valor da indemnização por expropriação, são tratados como «incrementos patrimoniais» e tributados, na categoria G do IRS [v. artigo 1º, nº 1 e 44º, nº
1, alíneas b) e f), do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, no caso do artigo 44º, na redacção da Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro]. Este tipo de comparação é comum na jurisprudência do Tribunal Constitucional, precisamente em situações de sujeição do expropriado (do valor indemnizatório por este recebido) a encargos públicos de natureza diversa (v., por exemplo, os Acórdãos nºs. 314/95 e 86/03, respectivamente nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol. , 1995, págs. 475/489, e Diário da República – II Série, de 23-05-03, págs. 7873/7876). Aliás, como refere Alves Correia, a
“Constituição, impondo que a indemnização seja justa, exige que o legislador ordinário defina um critério de determinação do quantum indemnizatório capaz de realizar o princípio da igualdade dos expropriados entre si e destes com os não expropriados” (Propriedade de bens culturais – restrições de utilidade publica, expropriações e servidões administrativas, in Direito do Património Cultural, Lisboa 1996, pág. 407). Tem, pois, e em princípio, cabimento a comparação, particularmente para aferição do cumprimento do mandato constitucional que prescreve um tratamento legislativo igual do que é igual e diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença.
4 - O controlo judicial do comportamento do legislador, com o objectivo de determinar se este, adoptando determinada solução normativa, se conteve dentro dos parâmetros decorrentes do princípio constitucional da igualdade, expresso no artigo 13.º da CRP, pressupõe uma compreensão aprofundada dos fins visados com essa solução. Significa isto que, estando nestes casos sempre em causa um juízo de comparação entre duas realidades, só através da determinação dos objectivos visados é possível compreender se esta ou aquela solução – quando implica, à luz dessa comparação, um tratamento desigual – se configura como arbitrária, estando, em função disso, constitucionalmente vedada.
É este critério, a que poderemos chamar de controlo da arbitrariedade, que vem funcionando na nossa jurisdição constitucional, já desde a Comissão Constitucional, como mecanismo de aferição do respeito pelo princípio da igualdade [o primeiro Parecer da Comissão Constitucional, o Parecer n.º 1/76
(Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º Vol., Lisboa, 1977, págs. 5/18), lidou , desde logo, com uma «questão de desigualdade» e com o controlo dos motivos do legislador; veja-se, como exemplo recente na jurisprudência deste Tribunal, o Acórdão n.º 232/03 (Diário da República – I Série A, de 17/6/03, págs. 3514/3531)]. Este controlo dos motivos à luz do conceito de arbitrariedade, pesquisa a existência de uma «razão suficiente» para a diferenciação, sendo que, como refere Robert Alexy, “(...). Uma razão é suficiente para a permissão de um tratamento desigual se, por força dessa mesma razão, esse tratamento desigual não é arbitrário” (Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, pág. 375). Ou, como se diz no já indicado Acórdão n.º 232/03: “Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (...) e, bem assim, de um critério de razoabilidade”.
5 - Ainda como nota prévia, não deixará de se dizer, sobre a natureza da norma em causa, que está longe de ser decisivo o facto de a norma se inserir num preceito que leva a epígrafe de 'Justa indemnização' para se concluir que se trata, substancialmente, de um comando sobre o valor da indemnização; isto muito embora a incidência que ela tem no montante líquido a pagar ao expropriado como valor indemnizatório. Com efeito, a determinação do valor dos bens expropriados que, nos termos do n.º
5 do preceito, 'deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado', é feita de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e segs. do Código, tendo ainda em conta o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23º e 24º do mesmo diploma. Em bom rigor, é, pois, através desses comandos, tomando em consideração características intrínsecas do bem expropriado, que se determina o valor da
'justa indemnização'. Já não assim no caso em apreço: o valor real e corrente do bem, num mercado não especulativo, foi já apurado e é representado pelo montante de uma parcela a que se vai abater a diferença entre o montante da contribuição autárquica que se considera devida e a que foi efectivamente paga nos últimos quatro anos. Resultando, ao menos tendencialmente, da avaliação efectuada, no âmbito do processo expropriativo, o valor patrimonial do bem e sendo este o valor tributável sobre que incide a contribuição autárquica, aquela acaba por funcionar, também, como uma avaliação “ad hoc”, para efeitos fiscais. Nesta medida, a norma assume uma natureza essencialmente tributária; o processo expropriativo e o pagamento da indemnização devida representam a oportunidade para a liquidação e cobrança (adicionais) de um tributo que, incidindo sobre o valor patrimonial do imóvel expropriado, fora liquidado e cobrado, por montante inferior ao devido, o que só a avaliação no processo expropriativo acabou por revelar. E a natureza essencialmente tributária da norma em causa não é posta em causa pelo facto de se não encontrarem previstos no Código das Expropriações (que nem sequer seria o local próprio) os termos em que o montante pago “a menos” pela entidade expropriante (em virtude da redução operada pela cobrança adicional da contribuição autárquica) deva ser transferido para a autarquia a quem é devida essa contribuição, isto nos casos em que não é entidade expropriante a própria autarquia. Na verdade, o expropriante funciona aqui como uma entidade da administração tributária incumbida da liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica – ainda que na modalidade específica do abatimento ou redução do valor indemnizatório – resultando a obrigação de transferência da respectiva verba para o município do facto de a contribuição autárquica constituir, por força do artigo 1º do Código da Contribuição Autárquica, um imposto municipal. Diga-se, de resto, que estas considerações se podem considerar descabidas, no presente recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, uma vez que, sendo, no caso, expropriante uma câmara municipal, se não coloca qualquer questão de transferência de verba correspondente à redução do montante a pagar ao expropriado.
6 - Assente a natureza substancialmente tributária da norma, a questão de saber se ela obedece ao princípio da justiça e, particularmente, ao da igualdade, terá necessariamente em conta o quadro do nosso ordenamento jurídico-tributário, mesmo aceitando a linha argumentativa da decisão recorrida que conduziu ao julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 23º n.º 4 do CExp, directamente reportada à exigência constitucional plasmada no artigo 62º n.º 2 da Constituição. De todo o modo, não se deixará de abordar - e desde já - a questão do cumprimento da exigência constitucional do pagamento de uma justa indemnização, considerando como valor da indemnização o montante líquido que, por virtude daquela redução, operada ao abrigo do artigo 23º n.º 4 do CExp. é efectivamente pago ao expropriado.
7 - A justeza de um montante indemnizatório por expropriação dependerá, em termos gerais, da circunstância de esse valor “traduzir uma adequada restauração da lesão patrimonial” (palavras do Acórdão nº 381/89), o que implica – e a jurisprudência do Tribunal Constitucional também o tem afirmado (v.g., no já citado Acórdão nº 314/95) – um mínimo de correspondência a referenciais de mercado na determinação do quantum indemnizatório. É que, se é no mercado onde os actores económicos, através da oferta e da procura, fixam o valor dos bens transaccionados, não poderá ter-se por adequado um valor completamente desfasado daquilo que corresponderia, nesse mesmo mercado, ao valor de transacção do bem expropriado. Quando se fala em um mínimo de correspondência a referenciais de mercado, quer-se sublinhar um outro elemento, também invariavelmente presente na jurisprudência deste Tribunal, e que acentua que a expressão (que é usada por Alves Correia, in O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra 1989, pág 540) «valor de mercado normativamente entendido» corresponde “a um valor de mercado «normal» ou «habitual», em que não entrem em linha de conta factores especulativos ou anómalos, o que faz com que, algumas vezes, o pretium dos bens que poderia ser obtido num mercado onde jogam livremente as regras da oferta e da procura, seja, acentuada ou substancialmente diferente daquele que se obteria por recurso ao conceito normativo delineado” (citação do Acórdão nº 314/95; v. ainda Alves Correia, A Jurisprudência do Tribunal Constitucional..., cit. págs.
233/234, dos nºs. 3905 e 3906). Ou seja, o que se pretende dizer é que o valor justo, o «justo preço», não podendo ser alheio aos critérios de mercado, não tem que coincidir integralmente com eles, sendo possíveis, sem que a indemnização deixe de ser constitucionalmente adequada, “reduções (...) impostas pela especial ponderação do interesse público que a expropriação serve”, tal como “são admitidas majorações, devido à natureza dos danos provocados pelo acto expropriativo”
(Alves Correia, o Plano Urbanístico... cit.). Ora, seguindo este entendimento, pese embora não se desconhecer a existência de outras opiniões [sublinha-se, particularmente a de Alves Correia ( A Jurisprudência do Tribunal Constitucional... cit., pág. 119, do nº. 3913 e
3914), segundo a qual a norma em causa, “tem como consequência a percepção pelo expropriado de uma indemnização que se situa aquém do valor real e corrente do bem expropriado”], o Tribunal, dizíamos, não obstante essas distintas visões do problema, entende que não se pode dizer que a intervenção de um factor de redução como aquele que resultará, em situações de desactualização do valor matricial, do artigo 23º, nº 4, do CE, implique, abstractamente, ou seja, em quaisquer circunstâncias, um valor completamente alheio aos critérios do mercado. Isto, não só porque os critérios «puros» de mercado não são uma exigência constitucional, como também porque no mercado, em condições normais de funcionamento deste, também estão presentes – e intervêm decisivamente na formação do preço dos bens – valores decorrentes de múltiplos factores exteriores, caso dos encargos fiscais e «custos de transacção» diversos. Significa isto que, se nos centrarmos exclusivamente na perspectiva do direito a uma justa indemnização, a norma recusada apresenta-se, ainda, como compaginável com o texto constitucional.
8 - Chegados a esta conclusão e apreciando agora o cumprimento do princípio da igualdade, convir-se-á que, intimamente relacionada a exigência de uma indemnização correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo e possível numa utilização económica normal, com uma repartição igualitária dos encargos resultantes da expropriação, o entendimento de que a norma não infringe o princípio de uma justa indemnização dificilmente se ajusta
à tese segundo a qual a mesma norma ofende o princípio da igualdade. E a verdade é que, tendo em conta a situação de todos os outros expropriados, nas mesmas condições, não há qualquer distinção de tratamento, sujeitos, todos eles, à redução da indemnização nos termos do artigo 23º n.º 4 do CExp. Certo é, porém, que, como se viu, a decisão recorrida coloca e resolve a questão da violação do princípio da igualdade no plano da relação entre expropriados e não expropriados quando estes procedem à transmissão onerosa dos imóveis de que são proprietários. E é aqui, para a resolução da questão, que temos que nos situar no quadro do ordenamento jurídico-tributário, como se passa a fazer.
9 - O aparecimento da CA no universo fiscal português, ocorre com a chamada
«reforma fiscal dos Anos 80» (v. quanto a esta José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra 2003, pág. 464 e segs.) e concretamente com o trecho desta, situado em 1988, referente à reforma da tributação sobre o rendimento, que introduziu, além da CA, o IRS e o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC). No caso específico da CA, a sua introdução, com as características que assumiu, ficou a dever-se, como explica Manuel Porto (A Reforma Fiscal Portuguesa e a Tributação Local, in Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, vol. III, Coimbra 1984, págs. 115/160), à associação de três factores: as características do imposto antecessor, a Contribuição Predial (CP); a base de tributação estabelecida para o cálculo do IRS e IRC, então também introduzidos; a questão das receitas fiscais das autarquias locais. Com efeito – e começando pelo primeiro factor enunciado -, importa ter presente que a CP, estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 45104, de 1 de Junho de 1963, que aprovou o Código da Contribuição Predial (CCP), introduzida com a chamada
«reforma fiscal Teixeira Ribeiro», dos Anos 60, tributava o rendimento da propriedade rústica e urbana (v. artigos 1.º a 3.º do CCP). Ora – e assim entramos no segundo factor indicado -, incidindo os então (em 1988) criados IRS e IRC sobre “todo e qualquer rendimento efectivo que porventura os contribuintes auferissem, colocou-se a questão da necessária extinção da contribuição predial enquanto tal, já que a sua base, ao menos parcial (os rendimentos efectivamente percebidos), foi absorvida pelos novos impostos, passando a fazer, naturalmente, parte da base de tributação dos novos impostos sobre o rendimento” (Vasco Valdez Matias, A Contribuição Autárquica e a Reforma da Tributação do Património, Lisboa 1999, pág. 21). Paralelamente – e este é o terceiro factor –, destinando-se as receitas geradas pela CP às autarquias (o que passou a suceder desde a primeira lei das finanças locais, a Lei n.º 1/79, de 2 de Janeiro) e assumindo estes valores um peso não desprezível nas receitas fiscais do poder local (v. Manuel Porto, ob. cit., págs. 123/124 e Vasco Valdez Matias, ob. cit., págs. 22/24), sempre seria necessário criar um sucedâneo, em termos de destino das receitas, da CP, sob pena de a estabilidade financeira das autarquias exigir, daí em diante, um aumento muito substancial das transferências do Orçamento do Estado para os municípios. Este dilema resolveu-o o legislador criando a CA, um imposto de receita municipal, visando a tributação estática do património imobiliário, correspondendo o respectivo valor tributário ao valor patrimonial dos prédios e não ao rendimento que estes podem proporcionar, como sucedia com a CP (v. José Casalta Nabais, ob. cit., págs. 590/591 e J.L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra 2002, págs. 22/24). Conforme se referia no Preâmbulo do CCA, esta forma de tributação “encontra especial justificação na lógica do princípio do benefício, correspondendo o seu pagamento à contrapartida dos benefícios que os proprietários recebem com as obras e serviços que a colectividade lhes proporciona” [v. na jurisprudência deste Tribunal as referências ao princípio do benefício, relativamente à CA, nos Acórdãos n.ºs.
57/95 e 363/01, respectivamente no Diário da República – II Série, de 12/4/95, págs. 4041/4073 (pág. 4057), e de 13/10/01, págs. 17097/17100 (pág. 17099)]. Também o novo imposto que substituiu a CA, o IMI, assenta no princípio do benefício, referindo o legislador no preâmbulo do CIMI, que se mantêm
“plenamente actuais as razões que, aquando da reforma de 1988-1989, levaram à criação de um imposto sobre o valor patrimonial dos imóveis, com a receita a reverter a favor dos municípios, baseado predominantemente no princípio do benefício”. Sucede, porém, que, assentando a base de tributação da CA no valor estático dos prédios, tal qual este é expresso através das respectivas matrizes, a omissão por parte do legislador de proceder à actualização destas, conduziu a uma disfunção tributária traduzida naquilo que Saldanha Sanches descreve como “uma sobrecarga fiscal das casas mais recentes e (...) uma subtributação das mais antigas” (ob. cit., pág. 24; cfr., no mesmo sentido, José Casalta Nabais, ob. cit., pág. 179). Esta disfunção do sistema introduzido em 1989 foi, desde logo, detectada tendo sido repetidamente referida, como ilustram, entre outras possíveis, as seguintes transcrições:
“(...) Logo aí (em 1989) se viu que o principal problema (com a CA) seria, sempre, o da avaliação da matéria colectável, ou seja, o da determinação do valor dos prédios sobre que incide a contribuição. Anunciou-se um Código de Avaliações, que nunca chegou a ser aprovado e os valores de base sobre que assenta o tributo não têm hoje, como já não tinham em 1989, nenhuma relação com a realidade (...)”.
(António Carvalho Martins, Avaliações Fiscais, Coimbra 2002, pág. 101);
“(...) existe um outro (problema) que contribui para as grandes iniquidades ao nível da tributação predial, em particular no âmbito da CA. Trata-se da questão da maior importância que diz respeito à desactualização das matrizes prediais ou, dito por outras palavras, de os prédios terem valores substancialmente diversos consoante os anos de avaliação, independentemente do seu valor intrínseco.
(...) Os prédios, aquando da finalização da sua edificação, tinham de ser inscritos na matriz, apurando-se, nesse momento, qual o rendimento presumido que auferiam para efeitos de CP. Como, entretanto, não se efectuaram com regularidade avaliações gerais, sucede que o rendimento colectável inicialmente inscrito não sofreu alterações, o que determinou, sobretudo em contexto de elevada inflação, a rápida desactualização daquele rendimento. Em contrapartida, prédios mais recentes viram o rendimento colectável mais elevado ser inscrito na matriz, o que determinou que se acentuasse a diferença de rendimento entre os imóveis. Como o rendimento colectável é que serviu de base à determinação do valor tributável, este diferencial só parcialmente foi corrigido no momento da entrada em vigor da CA, já que nesse momento se efectuou uma actualização do rendimento colectável a qual se fez à razão de 2% ao ano (para os prédios rústicos) e 4% ao ano para os urbanos), com o limite máximo de 100%, tomando-se como base a última avaliação. O fenómeno, de certa forma, agravou-se a partir de 1989 quer porque a base de tributação passou a ser o valor dos imóveis o que induziu (...) um aumento da base sobre que incidia o imposto, quer porque se assistiu ao longo dos anos 80, a um aumento sensível dos preços no mercado habitacional (...). De tudo isto resultou que o diferencial de tributação entre prédios mais antigos e, consequentemente, inscritos na matriz há mais tempo e os prédios mais recentes e com valores patrimoniais mais elevados se tem vindo a acentuar
(...)”.
(Vasco Valdez Matias, ob. cit., págs. 56/57). Mais claro ainda, a este propósito, o teor do preâmbulo do recentemente publicado CIMI, onde se lê:
“Há muito tempo que se formou na sociedade portuguesa um largo consenso acerca do carácter profundamente injusto do regime actual de tributação estática do património imobiliário. Esse consenso é extensivo à identificação das causas do problema, a saber, a profunda desactualização das matrizes prediais e a inadequação do sistema de avaliações prediais. Embora o Código da Contribuição Autárquica tenha entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1989, o sistema de avaliações vigente é ainda o do velho Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Industria Agrícola de 1963, que em grande parte manteve o sistema do Código da Contribuição Predial de 1913. O sistema de avaliações até agora vigente foi criado para uma sociedade que já não existe, de economia rural e onde a riqueza imobiliária era predominantemente rústica. Por essa razão, o regime legal de avaliação da propriedade urbana é profundamente lacunar e desajustado da realidade actual. A enorme valorização nominal dos imóveis, em especial dos prédios urbanos habitacionais, comerciais e terrenos para construção, por efeito de sucessivos processos inflacionistas e da acelaração do crescimento económico do País nos
últimos 30 anos, minaram a estrutura e a coerência do actual sistema de tributação. A combinação destes factores conduziu a distorções e iniquidades, incompatíveis com um sistema fiscal justo e moderno e, sobretudo, a uma situação de sobretributação dos prédios novos ao lado de uma desajustada subtributação dos prédios antigos.”
(citação do preâmbulo do DL. Nº 287/03) Esta disfunção, reportando-nos à CA, torna-se evidente se se tiver em conta a situação da propriedade rústica comparativamente à propriedade urbana. Aquela, assente em cadastros antigos e não sistematicamente actualizados, representando
(dados de 1995) cerca de dois terços dos prédios abrangidos pela CA (11,7 milhões de prédios rústicos, contra 5,3 milhões de prédios urbanos), contribui para o “bolo” global da CA (63,5 milhões de contos em 1995) com apenas 1,5% (1 milhão de contos), contra 98,5% (62,5 milhões de contos) da propriedade urbana
(estes valores são indicados no estudo de Vasco Valdez Matias a que nos vimos referindo, v. pág. 58).
É nesta situação de profunda disfunção tributária que vamos encontrar o fundamento (a razão de ser) de uma norma com as características do artigo 23.º, n.º 4 do CE. Trata-se, disse-se já, de um mecanismo de correcção da base de cálculo da CA, em situações de desactualização das matrizes (que se sabe serem quantitativamente significativas). Partindo-se do princípio de que a determinação do valor do prédio para efeitos indemnizatórios no processo expropriativo, expressando o real valor deste, também evidenciará – quando isso ocorrer – a desactualização da base tributária, o legislador entendeu que nestes casos, ao fazer repercutir no montante indemnizatório essa desactualização, estaria de alguma forma a corrigir a disfunção resultante da disparidade de valores pagos a título de CA pelos detentores de prédios com matrizes actualizadas e por aqueles cujas matrizes se mostrem desactualizadas. Do que se deixa dito resulta, desde logo, que, visando a Contribuição Autárquica a tributação do valor patrimonial, real, dos imóveis - valor esse naturalmente sujeito à situação conjuntural da economia em geral e do mercado imobiliário em particular -, o regime instituído pelo artigo 23º n.º 4 do CE acaba por ser, em si mesmo considerado, um meio adequado para atingir aquele fim: a avaliação reporta-se ao momento actual e obedece a regras criteriosas de determinação do valor patrimonial do imóvel, com o que o valor tributável na contribuição autárquica, previsto como base da liquidação do imposto (artigo 7º n.º 1 do CCA) se acaba por ajustar, com rigor e actualidade, ao valor patrimonial do bem. O que, também desde logo suscita a interrogação sobre se será legítimo, numa necessária análise comparativa, - para efeitos de decidir se há, ou não, violação do princípio da igualdade - confrontar uma tal solução legal com o tratamento dado à situação de um não expropriado que vende o seu bem imóvel e a quem, por virtude da desactualização das matrizes prediais, da não efectivação de avaliações gerais legalmente permitidas, da não entrada em vigor do Código das Avaliações, ou, ainda, da 'prática' da administração tributária, é, supostamente, cobrada uma contribuição autárquica que resulta de uma liquidação sobre valor não correspondente (inferior) ao valor patrimonial do bem. Dizer-se, nestas circunstâncias, que a norma do artigo 23º n.º 4 do CE viola o princípio da igualdade pressupõe assim, fazer-se relevar, como padrão, o que, numa das situações em confronto, corresponde a um 'benefício' de algum modo ilegítimo, o que não pode aceitar-se. Certo é, porém, que, mesmo não se aceitando esta posição de princípio, mas sempre tendo por irrelevante, na resolução de uma questão de constitucionalidade normativa, o que a 'prática' da administração tributária possa contribuir para aquele 'benefício', existem, no nosso ordenamento jurídico, comandos legais que investem a administração tributária no poder-dever de reavaliar um imóvel quando se verifiquem circunstâncias (designadamente, o preço de venda do imóvel) que permitam suspeitar do desajustamento (para menos) do valor inscrito na respectiva matriz, relativamente ao valor patrimonial do bem, o qual serviu de base á liquidação e cobrança da contribuição autárquica. Vejamos. O artigo 7º do CCA estabelecia no seu n.º 1 que o valor dos prédios era o seu valor patrimonial, sendo este determinado nos termos do Código das Avaliações. Prevenindo, contudo, situações que ocorressem antes da entrada em vigor daquele Código (e ele nunca vigorou), o Decreto-Lei n.º 442/88, de 30 de Novembro, estabeleceu, para além da actualização automática do rendimento colectável dos prédios rústicos e urbanos (artigos 6º n.º 2 e 7º n.º 2), regras sobre o valor tributável e avaliação desses prédios. Assim, o valor tributável dos prédios urbanos e rústicos seria o que resultasse da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, com a aplicação do factor 15 (para os prédios urbanos) e 20
(para os prédios rústicos); no que concerne a avaliações, o artigo 8º n.º 1 determinava que elas seriam efectuadas segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola. Constituindo as matrizes prediais os registos de que consta o valor tributável dos prédios, importa ainda considerar que a administração fiscal procede oficiosamente à actualização das matrizes quando se verificarem novas avaliações
(artigo 14º n.º 3 do CCA). De importância decisiva para a resolução da questão que nos ocupa é, no entanto, o que se dispõe no artigo 20º n.º 1 alínea a) e 21º do CCA. Por força destes preceitos, a administração fiscal procede oficiosamente à revisão das liquidações em resultado de nova avaliação, efectuando uma liquidação referente ao período da omissão; esta liquidação, correctiva, só poderá, porém, fazer-se nos prazos e termos previstos nos artigos 45º e 46º da LGT, ou seja com observância do prazo geral de caducidade do respectivo direito
(4 anos). Ora, nos termos do artigo 263º alínea b) do CCP, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 764/75, de 31 de Dezembro, os serviços de fiscalização devem organizar e apresentar na repartição de finanças competente um verbete em relação, entre outros, aos prédios de que 'os mesmos serviços suspeitem ser o rendimento inscrito inferior ao que deva corresponder-lhes', devendo os chefes das repartições de finanças obter o maior número possível de esclarecimentos,
'para exacta averiguação do rendimento dos prédios rústicos e urbanos' (artigo
264º, corpo). De entre esses elementos são expressamente referidos os 'processos de expropriação' e os 'termos de declaração para pagamento de sisa' (n.ºs 4 e 6 do artigo 264º). Em presença dos elementos obtidos e dos referidos verbetes, os chefes de repartição de finanças organizam anualmente proposta de avaliação dos prédios cujos rendimentos inscritos na matriz ' se suspeite serem inferiores aos que devam corresponder-lhes' (artigo 265º, corpo, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 764/75, de 31 de Dezembro). Tal proposta será enviada ao respectivo director de finanças para efeitos do disposto no artigo 129º, ou seja, para autorização das avaliações. Deste complexo normativo, aplicável, como se viu, enquanto as avaliações, para efeitos da contribuição autárquica, se processam nos termos do CCP - naturalmente com as adaptações inerentes ao facto de, no caso da contribuição predial, se tributar um rendimento e não o valor patrimonial do bem imóvel - resulta, assim, que a administração fiscal dispõe de poderes (que não podem deixar de ser poderes-deveres) de reavaliação de cada prédio, quando se suspeite que o respectivo valor tributável é inferior ao valor real, inserindo-se nesses
'elementos de suspeita' o valor da transmissão onerosa do bem, cujo conhecimento
é obtido através da declaração feita para efeitos de sisa. Reavaliado o bem e obtido um valor superior ao que serviu de base à liquidação e cobrança do imposto, deve proceder-se a uma liquidação e cobrança adicionais reportadas aos anos em que não caducou ainda o respectivo direito nos termos do artigo 45º e 46º da LGT.
É evidente que se não verifica aqui a 'automaticidade' da liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica a que se procede nos termos do artigo 23º n.º 4 do CE. Mas isto deve-se à diferença de circunstâncias envolventes dos casos em presença, o que, substancialmente, não põe em causa a igualdade de tratamento. Enquanto no processo expropriativo se procedeu já a uma avaliação do prédio expropriado, no caso da transmissão onerosa, a avaliação tem necessariamente que se seguir à transmissão, funcionando o preço declarado como suspeita de sub-avaliação fiscal do prédio, que faz desencadear o processo de reavaliação de onde derivará a revisão oficiosa da liquidação, nos termos do citado artigo 20º n.º 1 alínea a) do CCA.. Por outro lado, da transmissão onerosa de bens por um determinado preço não resulta, necessariamente, que o valor patrimonial real e justo do bem, tributável em contribuição autárquica, corresponda a esse preço (pense-se no caso de se tratar de um preço especulativo), o que sempre demandará uma reavaliação. Do exposto resulta, pois, que o tratamento dado pelo legislador às situações em confronto, no que concerne à liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica, é substancialmente idêntico, sem infracção ao princípio da igualdade, na relação externa da expropriação, nem, também por esta via, da exigência constitucional do pagamento de justa indemnização. Em suma: a norma do artigo 23º n.º 4 do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, não viola o disposto nos artigos 13º e 62º n.º 2 da Constituição.”
Esta decisão do Plenário é integralmente transponível para os presentes autos. Assim, em aplicação da doutrina constante daquele acórdão do Plenário, há que decidir em conformidade.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 23°, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999; b) conceder provimento ao recurso e, consequentemente, determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 29 de Setembro de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Rui Manuel Moura Ramos