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Processo n.º 791/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por sentença de 29 de Setembro de 2003 do Tribunal Judicial da Comarca de Braga foi revogada a decisão arbitral impugnada pelos expropriados A., B. e mulher C., e D. e marido E., que havia atribuído os valores de € 32 658,68 e de € 42 685,35, respectivamente, às parcelas designadas por ----- e -----, a destacar do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo
----- e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo ----------, pertença dos impugnantes, que haviam sido expropriadas para a construção da
“Variante à EN -------------”.
A referida sentença atribuiu às aludidas parcelas os valores de € 33 071,49 e de € 44 743,83, tendo recusado a aplicação da norma do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, com base na seguinte argumentação:
“Por fim, cumpre analisar a aplicação do artigo 23.°, n.º 4, da Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.
Dispõe o referido preceito, que «ao montante indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previstos no Código das Expropriações, deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos».
Sobre o âmbito de aplicação da citada norma, Alves Correia defende que a norma «só poderá aplicar-se às expropriações cuja entidade beneficiária seja um município e que tenham como objecto prédios localizados na respectiva circunscrição territorial».
Entende que sendo a contribuição autárquica um imposto de natureza local, no sentido de que constitui uma receita municipal que incide sobre o valor patrimonial dos prédios rústicos e urbanos, não faria sentido que o Estado, um instituto público ou empresa privada, enquanto beneficiários de uma expropriação, deduzissem na indemnização a pagar ao expropriado a diferença apontada (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133.º, 2000-2001, pág.
116).
Alípio Guedes, no seu estudo Valorização dos Bens Expropriados, pág.
79, e Pedro Elias da Costa, em Guia das Expropriações por Utilidade Pública, pág. 257, não estabelecem qualquer distinção no âmbito de aplicação do preceito.
Pedro Elias da Costa refere, aliás: «nem sequer se pode afirmar que
é um pagamento retroactivo da contribuição autárquica, dado que o montante deduzido não será entregue à entidade que legitimamente tem o direito de arrecadar o imposto (autarquia), beneficiando, pelo contrário, única e exclusivamente a entidade expropriante, que pode até nem estar integrada na Administração estadual» (obra citada, pág. 257).
Entendemos, com efeito, que na aplicação do preceito não cumpre proceder a qualquer distinção, pois o legislador não o fez e atenta a inserção sistemática do preceito, norma que determina os princípios orientadores para obter a justa indemnização, entendemos que tem aplicação sem distinção da natureza ou qualidade da entidade expropriante, responsável pela promoção do processo de expropriação.
Por outro lado, entendemos que ao deduzir tal valor o mesmo deve ser remetido ao município respectivo.
Desta forma, a previsão da norma abrange a indemnização atribuída aos expropriados.
Contudo, não se aplica o preceito em causa, por se considerar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização, bem como do princípio da não retroactividade em matéria fiscal, consagrados nos artigos 13.°, 62.° e 103.°, n.º 3, da CRP.
A Constituição prevê no artigo 62.°, n.º 2, que a expropriação só pode ser efectuada mediante o pagamento da justa indemnização.
A justa indemnização corresponde ao valor real e corrente de mercado.
Ao efectuar-se a dedução apontada não se atribui a justa indemnização, porque o valor da indemnização não corresponde ao valor real e corrente de mercado.
Acresce o facto de os expropriados ficarem numa situação de desigualdade injustificada perante os encargos públicos, em confronto com os proprietários de prédios urbanos ou rústicos que não suportaram qualquer expropriação.
O artigo 103.°, n.º 3, da CRP dispõe que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
O artigo 23.°, n.º 4, tem subjacente a actualização retroactiva da matéria colectável da contribuição autárquica e a liquidação e cobrança retroactivas do acréscimo do mesmo imposto, no período correspondente aos cinco anos anteriores à data da declaração de utilidade pública.
Nessa medida é inconstitucional.
Por outro lado, como emanação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.° da CRP, consagra-se, em sede fiscal, o principio da igualdade fiscal em sentido material ou substancial.
O significado deste princípio é o de que a lei deve garantir que todos os cidadãos com igual nível de rendimentos ou de património suportem idêntica carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos.
Como refere Alves Correia: «O princípio da igualdade fiscal em sentido material não apenas veda ao legislador a adopção de desigualdades de tratamento, no âmbito fiscal, que não sejam autorizadas pela Constituição ou que sejam materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou arbitrárias, como impõe que a lei garanta que todos os cidadãos com igual capacidade contributiva estejam sujeitos à mesma carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos»
(obra supra citada, pág. 118).
A norma do artigo 23.°, n.º 4, permite que pessoas em condições iguais paguem impostos desiguais.
Por esse motivo está também ferida de inconstitucionalidade.
Convém referir que a respeito desta questão seguimos de perto o estudo de Alves Correia, publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133.º, 2000-2001, pág. 116, e não conhecemos jurisprudência sobre a matéria, nomeadamente do Tribunal Constitucional.
Conclui-se, assim, que o valor da parcela expropriada à data de declaração de utilidade pública ascende a € 77 815,32 (setenta e sete mil oitocentos e quinze euros e trinta e dois cêntimos).”
É desta sentença que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC), o presente recurso, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.
Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
“1 – A norma constante do artigo 23.°, n.° 4, do Código das Expropriações de
1999, ao prever a compensação entre o montante da indemnização devida ao expropriado e resultante da avaliação efectuada em tal processo e o direito da Fazenda Pública à correcção e revisão oficiosa da liquidação da contribuição autárquica, resultante da actualização dos valores matriciais – e devida no período temporal em que não ocorreu ainda caducidade do direito à liquidação – não viola os princípios da não retroactividade da lei fiscal e da igualdade, confiança, segurança jurídica e justa indemnização.
2 – Na verdade – e face ao regime instituído nos artigos 20.° e 21.º do Código da Contribuição Autárquica – a liquidação desta com base nos valores constantes de matrizes não actualizadas reveste natureza provisória até ao momento da caducidade do direito à liquidação e revisão oficiosa, podendo ser corrigida pela Administração Fiscal sempre que uma superveniente avaliação dos bens revele um valor patrimonial superior ao que constava da matriz.
3 – E inexistindo, deste modo, qualquer expectativa minimamente fundada do contribuinte na estabilidade dos valores liquidados com base na matriz, sendo os mesmos oficiosamente revisíveis sempre que uma avaliação ulterior dos bens mostre que os valores patrimoniais não estavam actualizados.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A questão que constitui objecto do presente recurso foi recentemente apreciada pelo Acórdão n.º 422/2004, com intervenção do Plenário deste Tribunal, determinada ao abrigo do disposto no artigo 79.º-A da LTC, tendo sido decidido, embora com diversos votos de vencido, não julgar inconstitucional a norma do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações de
1999. Visando a intervenção do Plenário a prevenção (artigo 79.º-A) ou a solução
(artigo 79.º-D) de divergências jurisprudenciais, compreende-se que, apesar da inexistência de preceito expresso a atribuir-lhe carácter vinculativo, a orientação que fez vencimento passe a ser seguida pelo Tribunal, enquanto não for objecto de revisão pelo próprio Plenário.
O acolhimento dessa orientação implica não apenas o acatamento do sentido das decisões das questões de constitucionalidade expressamente tratadas pelo acórdão do Plenário, mas também o respeito pela projecção que, relativamente a questões nele não explicitamente apreciadas, há que atribuir aos juízos em que se fundaram tais decisões, pelo menos quando constituam seu pressuposto lógico necessário.
O aludido Acórdão n.º 422/2004 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 259, de 4 de Novembro de 2004, pág. 16 257), decidiu que a norma do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999 não violava nem o princípio da igualdade nem o direito a justa indemnização, consagrados nos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da CRP, que haviam sido os fundamentos invocados para recusar a aplicação dessa norma pela sentença proferida no processo em que foi prolatado aquele Acórdão.
No presente caso, para além desses fundamentos, a sentença recorrida considerou existir igualmente violação do princípio da não retroactividade em matéria fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, por “o artigo 23.º, n.º 4, [ter] subjacente a actualização retroactiva da matéria colectável da contribuição autárquica e a liquidação e cobrança retroactivas do acréscimo do mesmo imposto, no período correspondente aos cinco anos anteriores à data da declaração de utilidade pública”.
Apesar de esta questão não ter sido explicitamente tratada, de modo autónomo, no Acórdão n.º 422/2004, considerações neste tecidas a propósito da não violação dos princípios da justa indemnização e da igualdade implicam necessariamente que, no entendimento da maioria, também não se verifica violação do princípio da não retroactividade fiscal, seja na perspectiva da “retroacção das avaliações”, seja tendo em conta a não coincidência formal do prazo de caducidade do direito de liquidação de tributos, que a Lei Geral Tributária encurtou de 5 para 4 anos, e do prazo de 5 anos referido no n.º 4 do artigo 23.º do Código das Expropriações de 1999.
Lê-se, com efeito, no n.º 5 do aludido Acórdão:
“(…) no caso em apreço: o valor real e corrente do bem, num mercado não especulativo, foi já apurado e é representado pelo montante de uma parcela a que se vai abater a diferença entre o montante da contribuição autárquica que se considera devida e a que foi efectivamente paga nos últimos quatro anos.
Resultando, ao menos tendencialmente, da avaliação efectuada, no
âmbito do processo expropriativo, o valor patrimonial do bem e sendo este o valor tributável sobre que incide a contribuição autárquica, aquela acaba por funcionar, também, como uma avaliação ad hoc, para efeitos fiscais.
Nesta medida, a norma assume uma natureza essencialmente tributária; o processo expropriativo e o pagamento da indemnização devida representam a oportunidade para a liquidação e cobrança (adicionais) de um tributo que, incidindo sobre o valor patrimonial do imóvel expropriado, fora liquidado e cobrado, por montante inferior ao devido, o que só a avaliação no processo expropriativo acabou por revelar.”
E já no n.º 9, a propósito de eventual violação do princípio da igualdade, ponderou-se:
“É nesta situação de profunda disfunção tributária que vamos encontrar o fundamento (a razão de ser) de uma norma com as características do artigo 23.º, n.º 4, do CE. Trata-se, disse-se já, de um mecanismo de correcção da base de cálculo da CA, em situações de desactualização das matrizes (que se sabe serem quantitativamente significativas). Partindo-se do princípio de que a determinação do valor do prédio para efeitos indemnizatórios no processo expropriativo, expressando o real valor deste, também evidenciará – quando isso ocorrer – a desactualização da base tributária, o legislador entendeu que nestes casos, ao fazer repercutir no montante indemnizatório essa desactualização, estaria de alguma forma a corrigir a disfunção resultante da disparidade de valores pagos a título de CA pelos detentores de prédios com matrizes actualizadas e por aqueles cujas matrizes se mostrem desactualizadas.
Do que se deixa dito resulta, desde logo, que, visando a Contribuição Autárquica a tributação do valor patrimonial, real, dos imóveis – valor esse naturalmente sujeito à situação conjuntural da economia em geral e do mercado imobiliário em particular –, o regime instituído pelo artigo 23.º, n.º
4, do CE acaba por ser, em si mesmo considerado, um meio adequado para atingir aquele fim: a avaliação reporta-se ao momento actual e obedece a regras criteriosas de determinação do valor patrimonial do imóvel, com o que o valor tributável da contribuição autárquica, previsto como base da liquidação do imposto (artigo 7.º, n.º 1, do CCA), se acaba por ajustar, com rigor e actualidade, ao valor patrimonial do bem.”
E mais adiante:
“De importância decisiva para a resolução da questão que nos ocupa
é, no entanto, o que se dispõe no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), e 21.º do CCA.
Por força destes preceitos, a administração fiscal procede oficiosamente à revisão das liquidações em resultado de nova avaliação, efectuando uma liquidação referente ao período da omissão; esta liquidação, correctiva, só poderá, porém, fazer-se nos prazos e termos previstos nos artigos
45.º e 46.º da LGT, ou seja, com observância do prazo geral de caducidade do respectivo direito (4 anos).”
Destas considerações resulta que foi entendimento do Tribunal, no aludido Acórdão n.º 422/2004, o de que, servindo a avaliação do prédio no processo expropriativo como actualização do valor matricial para efeitos tributários, os objectivos de correcção das reconhecidas situações de profunda disfunção tributária justificavam constitucionalmente a respectiva
“retroacção”, desde que não fosse desrespeitado o prazo de caducidade do direito de liquidação do tributo em causa, de quatro anos. Sendo de acatar, pelas razões inicialmente expostas, quer aquele juízo implícito de não inconstitucionalidade da “retroacção” das avaliações, quer esta interpretação
“correctiva” da norma do n.º 4 do artigo 23.º do Código das Expropriações de
1999 – considerando que só pode ser deduzido, no valor dos bens expropriados, o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação, reportadas aos anos relativamente aos quais ainda não ocorrera caducidade do direito de liquidação do tributo –, também cumpre dar por não verificado o vício de inconstitucionalidade por violação da proibição de retroactividade em matéria fiscal.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Novembro de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos