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Processo n.º 390/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres (Cons. Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., Lda. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), recurso da sentença do 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, de 24 de Outubro de 2003, que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão de 22 de Agosto de 2003 do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, que só deferira o pedido de apoio judiciário, formulado pela recorrente, nas modalidades de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo, indeferindo-o na modalidade, também peticionada, de pagamento de honorários do patrono escolhido.
A sentença interpretou as normas dos n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, no sentido de que aquele n.º
4 (“As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário quando façam a prova a que alude o n.º 1”, isto é, que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial) apenas abrange as sociedades ou pessoas colectivas que não tenham como objecto a actividade comercial, e que as sociedades comerciais somente podem beneficiar de apoio judiciário nas modalidades de dispensa, total ou parcial, ou de diferimento de pagamento de taxas de justiça e demais encargos, estando vedada a concessão de apoio judiciário, nas modalidades de nomeação de patrono ou pagamento de honorários a patrono escolhido, como resultaria do n.º 5 do citado artigo (“As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao diferimento do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço”). E mais entendeu a dita sentença que essa interpretação normativa, vedando às sociedades comerciais o acesso ao apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, não era inconstitucional, designadamente por ofensa do princípio da igualdade e do direito de acesso aos tribunais, conforme o Tribunal Constitucional já decidira no seu Acórdão n.º 167/99, face à norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção da Lei n.º 46/96, de 3 de Dezembro.
Segundo o requerimento de interposição de recurso, a recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas do artigo
7.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 30-E/2000, entendidas como excluindo as sociedades comerciais do benefício de apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, por violação dos princípios da igualdade e do acesso ao direito, consagrados nos artigos 13.º e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, concluindo:
“1 – A recorrente invocou em recurso de contencioso de decisão de indeferimento proferida pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social a inconstitucionalidade dos n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000, entendida como negando a sociedades com fins lucrativos o benefício de apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, tendo sido proferido pelo Tribunal a quo juízo de não inconstitucionalidade.
2 – A inconstitucionalidade da norma, no supra referido entendimento, funda-se em violação dos princípios do acesso ao direito e igualdade – artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
3 – Não existem razões que justifiquem tratamento diferenciado de entidades com fins lucrativos em relação àquelas com fins não lucrativos, quando as primeiras, comprovadamente, não tenham capacidade económica para suportar todos os custos de recurso a juízo.
4 – A negação do benefício de pagamento de honorários a patrono escolhido implica, para entidades que comprovadamente não tenham meios para suportar os mesmos, a negação prática de recurso a juízo.
5 – Assim sendo, decretando a inconstitucionalidade das referidas normas, no entendimento indicado, se fará Justiça!”
O recorrido Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa não contra-alegou.
Redistribuído o processo, por a posição defendida pelo primitivo Relator não lograr obter vencimento, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A questão que constitui objecto do presente recurso
– a saber: a questão da constitucionalidade da interdição de concessão de apoio judiciário, na modalidade de pagamento de honorários a patrono forense escolhido, a sociedades comerciais, mesmo que estas demonstrem não possuírem meios económicos bastantes para suportar esses encargos – já foi objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional.
Com efeito, tal questão, embora então reportada ao artigo 7.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, na redacção dada pela Lei n.º
46/96, foi inicialmente objecto de julgamentos de não inconstitucionalidade
(Acórdãos n.ºs 97/99, 98/99, 167/99, 368/99, 428/99, 90/2000 e 234/2001), mas, mais recentemente, o Acórdão n.º 106/2004 (Diário da República, II Série, n.º
71, de 24 de Março de 2004, pág. 4590), desta 2.ª Secção, veio a emitir juízo de inconstitucionalidade da citada norma, com fundamentos (adiante reproduzidos) que são inteiramente transponíveis para a norma ora em causa, na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida.
A este propósito cumpre, no entanto, começar por salientar que tal interpretação (no sentido de que o n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000 não se aplica às sociedades comerciais e que estas apenas podem beneficiar das modalidades de apoio referidas no subsequente n.º 5, entre as quais não se conta o pagamento de honorários a patrono escolhido) não é a única possível. Na verdade, comparando o teor dos n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, na redacção da Lei n.º 46/96, com os n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000, constata-se que, enquanto o n.º 5 não sofreu alteração substancial (apenas se substituiu a expressão “ou ao seu diferimento”, a seguir a “pagamento de custas”, pela expressão “ou ao diferimento do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo”), no n.º 5 regressou-se à redacção originária do Decreto-Lei n.º 387-B/87.
A redacção originária do n.º 5 do citado artigo 7.º era a seguinte:
“As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1”.
Pela Lei n.º 46/96 passou a ser a seguinte:
“As pessoas colectivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1”.
O n.º 5 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000 voltou a dispor:
“As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1”.
Consistindo esta última alteração na eliminação do inciso “de fins não lucrativos”, introduzido em 1996, afigura-se plausível ter sido intenção do legislador, ao eliminar essa restrição, fazer abranger pela norma em causa, como sempre se entendeu face à sua redacção originária, todas as pessoas colectivas e sociedades, tenham ou não fins lucrativos.
Isto mesmo é reconhecido por Salvador da Costa, apesar da discordância desse autor face ao que considera um “retrocesso” legislativo, quando afirma (O Apoio Judiciário, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 38 e 39):
“4. Prevê o n.º 4 o direito à protecção jurídica das pessoas colectivas e das sociedades, e estatui que ele abrange o apoio judiciário sob condição de produzirem a prova mencionada sob o n.º 1 deste artigo.
Há quem interprete este normativo, no confronto com o disposto no n.º 5, no sentido de que ele não abrange as sociedades comerciais e tão-só as pessoas colectivas e as sociedades não comerciais, designadamente associações, fundações e sociedades civis.
Não é isso que resulta das vertentes interpretativas literal e racional deste normativo, sendo que nesta última releva particularmente o elemento histórico.
Antes da alteração deste artigo por via da Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, a redacção deste normativo era idêntica à actual e, nessa altura, nunca foi entendido que as sociedades não tinham direito a apoio judiciário nas modalidades de patrocínio judiciário e de assistência judiciária. [O autor citado designa por “assistência judiciária” o apoio judiciário nas modalidades de dispensa ou diferimento do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo]
No projecto de que resultou a Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, constava a proibição de concessão às sociedades de apoio judiciário em qualquer das suas modalidades, mas essa solução não passou para a lei.
O que ficou de novo neste artigo foi o seu n.º 5, praticamente idêntico ao actual, e o n.º 4, expressando que as pessoas colectivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
Em consequência dessa alteração, por um lado, apenas as pessoas morais, designadamente as associações e as fundações, sem fins lucrativos, que provassem os factos integrantes da sua situação de insuficiência económica tinham direito a apoio judiciário nas modalidades de assistência judiciária e de patrocínio judiciário, e, por outro, que as sociedades só tinham direito a apoio judiciário na modalidade de assistência judiciária no quadro de um mais apertado circunstancialismo.
Com a manutenção do conteúdo do n.º 5 e a alteração do n.º 4 em termos de reposição da redacção resultante da versão inicial do Decreto-Lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro, a Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, permite a concessão às sociedades comerciais de apoio judiciário nas modalidades de patrocínio e de assistência judiciária, enunciando quanto a esta pressupostos de ordem restritiva.”
Não foi este, como se viu, o entendimento que a sentença recorrida deu à norma em causa e é a questão da constitucionalidade da interpretação normativa acolhida naquela decisão, que, independentemente da sua correcção jurídica, constitui objecto do presente recurso.
Refira-se , por último, embora sem imediata relevância para o presente recurso, que a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que alterou o regime de acesso ao direito e aos tribunais, revogando a Lei n.º 30-E/2000, de
20 de Dezembro, concede às “pessoas colectivas (...) direito a protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário”, desde que façam prova de se encontrarem em situação de insuficiência económica (artigo 7.º, n.ºs 1 e 3), devendo “a insuficiência económica das sociedades, dos comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (...) ser aferida tendo em conta, designadamente, o volume de negócios, o valor do capital e do património e o número de trabalhadores ao seu serviço e os lucros distribuídos nos três últimos exercícios findos” (artigo 8.º, n.º 4). O apoio judiciário compreende, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, cinco modalidades – a) dispensa total ou parcial de taxa de justiça e demais encargos com o processo; b) nomeação e pagamento de honorários de patrono; c) pagamento de remuneração do solicitador de execução designado; d) pagamento faseado das taxas, encargos, honorários e remuneração referidos nas três alíneas anteriores; e e) pagamento de honorários de defensor oficioso –, e, nos termos do n.º 3 desse artigo 3, só a modalidade referida na alínea d) do n.º 1 (pagamento faseado das prestações aí referidas) é que não pode ser concedida se o requerente de apoio judiciário for uma pessoa colectiva, estabelecimento individual de responsabilidade ou comerciante em nome individual e a causa for relativa ao exercício do comércio; isto é, às sociedades comerciais é reconhecido, por este novo diploma, desde que provem estar em situação de insuficiência económica, o direito a apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono (alínea b) do n.º 1 do artigo
16.º).
2.2. A inconstitucionalidade de norma com idêntico conteúdo à interpretação normativa dos n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º
30-E/2000, que constitui objecto do presente recurso (então reportada ao n.º 5 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, na redacção da Lei n.º 46/96, e aplicada em decisão judicial que recusara a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido num caso em que a acção em causa era inclusivamente alheia à actividade económica normal da sociedade requerente de apoio) foi, como já se referiu, proclamada pelo Acórdão n.º 106/2004, com base na seguinte fundamentação:
“1. A decisão recorrida – o acórdão do Tribunal Central Administrativo de 19 de Dezembro de 2000 – negou à recorrente o direito ao patrocínio judiciário com fundamento no artigo 7.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro, com a redacção da Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, dizendo que esta norma lhe veda tal forma de apoio judiciário, «ainda que demonstrem que não têm meios económicos para suportar os encargos de uma causa judicial ou que o pleito é alheio à sua actividade económica normal».
É, pois, a norma do referido artigo 7.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de
29 de Dezembro, com a redacção da Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, que importa apreciar no presente recurso.
(...)
2. Era a seguinte a redacção originária do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro:
«Artigo 7.º
1 – Têm direito a protecção jurídica, nos termos da presente lei, as pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial.
2 – Os estrangeiros e os apátridas que residam habitualmente em Portugal gozam do direito a protecção jurídica.
3 – Aos estrangeiros não residentes em Portugal é reconhecido o direito a protecção jurídica, na medida em que ele seja atribuído aos portugueses pelas leis dos respectivos Estados.
4 – As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.»
A Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, veio, porém, alterar este preceito – no que ora interessa, suprimindo do n.º 4 a referência a sociedades e acrescentando um n.º 5. Estes n.ºs 4 e 5 passaram, assim, a dispor:
«Artigo 7.º
(...)
4 – As pessoas colectivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
5 – As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento, quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço.»
Note-se, ainda, que estas normas já não estão em vigor, uma vez que a Lei n.º
30-E/2000, de 20 de Dezembro, que veio alterar o regime de acesso ao direito e aos tribunais, e atribuir aos serviços da segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário, reformulou a redacção deste artigo
7.º, reintroduzindo no seu n.º 4 o direito a apoio judiciário das sociedades. O artigo 7.º, n.ºs 4 e 5, dispõem, assim, depois deste diploma:
«Artigo 7.º
(...)
4 – As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
5 – As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, ou ao diferimento do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço.»
Não é, porém, esta a norma que está em causa no presente processo (considerando que houve um “retrocesso” com o diploma de 2000, cf. Salvador da Costa, O apoio judiciário, 4.ª edição, Coimbra, 2002, pág. 41), mas sim o artigo 7.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, com a redacção da Lei n.º 46/96, de
3 de Setembro, na interpretação segundo a qual veda a concessão de patrocínio judiciário gratuito às sociedades, ainda que provem que os seus custos são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas e que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal.
3. A questão de constitucionalidade em causa no presente recurso foi já apreciada por este Tribunal (como, aliás, se indica na decisão recorrida). Assim, foi-o, pelo menos, nos Acórdãos n.ºs 97/99, 98/99, 167/99 e 368/99
(publicados, o primeiro e o terceiro, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 10 Abril de 1999 e 7 de Fevereiro de 2000), que não julgaram inconstitucional a norma em apreço. Importa recordar, porém, que foram apostas várias declarações de voto a todos os acórdãos referidos, defendendo a tese da inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, não existindo também, até hoje, decisão do Plenário do Tribunal Constitucional sobre a norma em questão. Na declaração de voto de vencido aposta pelo ora relator ao citado Acórdão n.º
97/99, concluiu-se pela inconstitucionalidade da norma em causa, na medida em que excluía de plano a possibilidade de concessão de patrocínio judiciário gratuito a toda uma categoria de sujeitos definida em abstracto – a saber, as sociedades, os comerciantes em nome individual e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada –, ainda que provassem que os custos do pleito são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas e que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal, assim denegando a justiça por «insuficiência de meios económicos», contra o que se dispõe no artigo 20.º, n.º 1, parte final, da Constituição da República. Tal posição assentou nos seguintes fundamentos:
«(...) Contemplando o sistema de acesso ao direito e aos tribunais, distinguem-se duas vertentes, de informação jurídica e protecção jurídica, das quais a segunda reveste duas modalidades – consulta jurídica e apoio judiciário (artigo 6.º do referido Decreto-Lei n.º 387-B/87). Existem, por sua vez, duas formas de apoio judiciário: dispensa de despesas judiciais e pagamento dos serviços do advogado ou solicitador (artigo 15.º, n.º 1, do citado diploma). Os beneficiários do direito à protecção jurídica estão enumerados no referido artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, resultando, na interpretação do n.º 5, em questão, que as sociedades – civis ou comerciais –, bem como os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, não têm direito a patrocínio judiciário gratuito, mas apenas ‘à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento’, e se demonstrarem que o respectivo montante é ‘consideravelmente superior às [suas] possibilidades económicas’,
‘aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço’. Como se vê, esta limitação não só não inclui todas as pessoas colectivas como não é sequer específica de pessoas colectivas. Aplica-se, igualmente, a pessoas singulares, e, mesmo, a entes não personalizados, como são os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. Assim, a questão de constitucionalidade não se põe no confronto com o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição. A norma em questão funda-se, antes, na circunstância, comum aos seus destinatários, de estes exercerem uma actividade económica com intuitos lucrativos, sendo (conforme salienta o Ministério Público nas suas alegações, já publicadas, aliás, na Revista do Ministério Público, 1998, n.º 73, págs. 135 e seguintes) os titulares de empresas que são (pelo menos, de forma tendencial) visados pela norma. Ora, não podem negar-se certas especificidades destas entidades. Os custos de litigância serão normalmente inerentes ao próprio exercício da sua actividade, justificando-se, nas acções que resultem do ‘giro comercial’ da empresa, a exclusão da dispensa ou redução de custas ou preparos – o que se traduz no citado artigo 7.º, n.º 5, embora sempre admitindo a demonstração de que o montante das custas é consideravelmente superior às possibilidades económicas da empresa, aferidas em função dos factores descritos. Todavia, estas especificidades não bastam para fundamentar a privação, para essas entidades, em qualquer caso e sem admissão desta demonstração, do direito a patrocínio judiciário gratuito – que é o que está em causa no presente recurso.
2. Na verdade, a Constituição da República Portuguesa garantiu, no seu artigo
20.º, o acesso ao direito e aos tribunais, com proibição da denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, sendo o direito ao patrocínio judiciário verdadeiro elemento essencial daquela garantia. Na expressão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 962/96 (Diário da República, I Série-A, de 15 de Outubro de 1996), os mandados desse artigo 20.º ‘constituem mesmo a estrutura central da ordem constitucional democrática’, assegurando a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Como se salientou no Acórdão n.º 316/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Outubro de 1995), ‘torna-se claro que o assinalado asseguramento de acesso aos tribunais, a par da proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, sabido que é que, em muitos casos, para naqueles se pleitear se torna necessária a constituição de advogado, há-de implicar, nas hipóteses daquela insuficiência, que se confira o direito ao «patrocínio judiciário». Significa isto, em consequência, que, muito embora o exercício e as formas do «direito ao patrocínio judiciário» seja, pelo n.º 2 do artigo 20.º da Constituição, relegado para a lei, o que é certo é que, dada a implicação a que acima se fez referência, a lei ordinária não poderá estabelecer condicionantes ou requisitos tais que dificultem ou tornem por demais difícil o exercício daquele direito ou, ainda acentuadamente, restrinjam o respectivo conteúdo, sob pena de aqueloutro direito de acesso aos tribunais «não passar de um ‘direito fundamental formal’» (nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, pág. 163)’. (ver, ainda, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 415/94, 317/95, 339/95 e
340/95, estes últimos publicados no Diário da República, II Série, respectivamente de 1 de Agosto e de 2 de Novembro de 1995). E, além desta essencialidade, salientou-se a universalidade do reconhecimento do direito ao patrocínio judiciário no citado Acórdão n.º 339/95, segundo o qual ‘o direito de acesso aos tribunais, de que é componente essencial o patrocínio judiciário, é assegurado pela Constituição «a todos» (artigo 20.º), o que logo inculca a universalidade do respectivo reconhecimento (...)’.
3. Nestes termos, penso que a garantia de acesso aos tribunais, resultante do artigo 20.º da Constituição, resulta violada por uma norma que exclui genericamente o direito ao patrocínio judiciário gratuito para as entidades que exploram empresas com intuitos lucrativos, ainda que estas provem a sua insuficiência económica para suportar os respectivos custos, que estes são consideravelmente superiores às suas possibilidades, ou, mesmo, que o pleito é totalmente alheio à sua actividade económica normal. Não se trata, aqui, tão-só de uma restrição ao direito a patrocínio judiciário gratuito, ou de o sujeitar, nos termos da lei, a determinadas condições, mas de uma sua exclusão geral e em abstracto, que tem como resultado que, quanto às entidades em causa, a justiça possa ser ‘denegada por insuficiência de meios económicos’. Tal exclusão de plano do direito ao patrocínio judiciário gratuito não se justifica, aliás, como referi, com a especificidade das entidades com intuitos lucrativos, pois não é permitida a prova de que a acção, naquele caso concreto,
é alheia à actividade económica da empresa (podendo perfeitamente tratar-se, por exemplo, de uma vultuosa acção de indemnização, em que aquela é lesada) – ou, pelo menos (como se faz no próprio artigo 7.º, n.º 5, para as custas e preparos), a demonstração de que os custos da acção excedem consideravelmente as possibilidades económicas da pessoa em questão, avaliadas em função de factores objectivos. Não se pode sequer afirmar, em abstracto, que as sociedades, civis ou comerciais, os comerciantes em nome individual ou os titulares de estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada sempre terão meios para suportar as despesas de patrocínio judiciário disponível no ‘mercado’ da prestação de serviços jurídicos. Assim, desde logo, sabe-se, por exemplo, que, apesar da proibição da quota litis, o valor da causa não é despiciendo para a fixação dos honorários dos profissionais do foro, até por se reflectir sobre a importância do serviço prestado e sobre os resultados obtidos (artigo 65.º, n.º
1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de
16 de Março). Nem me posso dar por satisfeito com a remissão de tais entidades para ‘mecanismos de seguro e prevenção’ dos custos judiciários. Essa remissão
(a qual, aliás, não provaria apenas para as entidades em questão), bem como a exigência de, na impossibilidade de pagamento aos profissionais do foro, recorrer, ou aos próprios sócios para suprimento da insuficiência financeira, ou a um processo de recuperação de empresa ou de falência, por manifesta inviabilidade da empresa (e suposto que se verificariam sempre os pressupostos destes processos, existindo, designadamente, uma situação de insolvência), representa, a meu ver, a própria admissão da possibilidade de denegação de justiça por falta de meios para custear o patrocínio judiciário. Exigir a submissão a um processo de falência ou de recuperação da empresa (com eventual consequência da extinção), ou o recurso aos sócios para custear despesas judiciárias, significa que a pessoa colectiva (obviamente, enquanto entidade distinta dos sócios) não poderá recorrer aos tribunais por falta de meios económicos, retirando, sob este prisma, consistência ao seu direito de acesso aos tribunais. Não é, pois, de excluir que a acção em questão seja inteiramente alheia à actividade económica da sociedade, estando, todavia, sempre excluída a possibilidade de as entidades referidas no artigo 7.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º
387-B/87 obterem patrocínio judiciário gratuito. A meu ver, este resultado ofende, pois, a garantia de que a ninguém pode ser denegada justiça por insuficiência de meios económicos (artigo 20.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição). E creio que se viola do mesmo passo o princípio da igualdade, na medida em que – embora sem negar as especificidades das entidades em questão – resulta justamente desse artigo 20.º, n.º 1, 2.ª parte, que a insuficiência de meios económicos não é nunca de considerar, à luz daquele princípio, fundamento razoável para a discriminação no acesso aos tribunais, como a que resultaria, neste caso, da privação da possibilidade de obter patrocínio judiciário gratuito.
4. Nestes termos, teria negado provimento ao recurso, mantendo o julgamento de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, 2.ª parte, e 13.º da Constituição, do artigo 7.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na interpretação segundo a qual as sociedades, os comerciantes em nome individual e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, não têm direito a patrocínio judiciário gratuito, ainda que provem que os seus custos são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas
(aferidas, designadamente, em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço) e que se trata de acções estranhas à sua actividade económica.»
4. Entende-se que esta fundamentação, na medida em que se reporta ao artigo
20.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República, é procedente, não sendo, por outro lado, infirmada pelos argumentos invocados nos arestos citados, que se debruçaram sobre a questão de constitucionalidade em causa no presente recurso. Designadamente, não resulta da transcrita fundamentação qualquer dever de equiparação dos termos em que é concedido apoio judiciário a pessoas singulares e a pessoas colectivas, ou a entidades com e sem fim lucrativo – entendendo-se, antes, que ela é compatível com as diferenciações que a boa gestão dos recursos imponham –, mas apenas a impossibilidade de uma exclusão geral e em abstracto, sem possibilidade de prova de que os custos em causa são consideravelmente superiores às possibilidades económicas do concreto sujeito em questão e de que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal. Esta última delimitação contraria, também, o argumento de que poderão estar em causa custos da actividade económica normal, e de que a própria preservação das condições de concorrência impediria a concessão de tal patrocínio judiciário (argumento, este, que, aliás, e como é evidente, provaria demasiado, por também ser aplicável a outras formas de apoio judiciário). Tal exclusão de plano do direito ao patrocínio judiciário gratuito, para uma categoria de sujeitos definida em abstracto, e sem lhes possibilitar a referida prova de que os custos são consideravelmente superiores às possibilidades económicas e de que a acção é alheia à sua actividade económica normal, não pode deixar de ter como resultado que, quanto às entidades em causa, a justiça possa vir a ser «denegada por insuficiência de meios económicos» (como, aliás, não deixa de admitir-se quando se afirma que a alternativa ao pleito poderá ser a insolvência). No presente caso, é isto mesmo que está em causa, pois a recorrente impugna a norma na dimensão segundo a qual as sociedades não têm direito a patrocínio judiciário gratuito ainda «que demonstrem que não têm meios económicos para suportar os encargos de uma causa judicial ou que o pleito é alheio à sua actividade económica normal» (itálico aditado). Entende-se, assim, que esta norma é inconstitucional, concedendo-se provimento ao recurso.”
Estas considerações são, na sua essência, transponíveis para o caso do presente recurso e conduzem à emissão de um juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa acolhida na sentença recorrida. Na verdade, apesar das assinaladas dúvidas que suscita a correcção dessa interpretação, ao nível do direito ordinário, entende-se não se justificar, no caso, a emissão de um juízo de não inconstitucionalidade da interpretação tida por mais correcta (a que entende que o n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000 consente a concessão de apoio judiciário, na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, a sociedades comerciais), com vinculação do tribunal a quo a seguir essa interpretação, nos termos do n.º 3 do artigo 80.º da LTC.
Foi essa também a opção tomada pelo ora relator, na Decisão Sumária n.º 131/2004, em recurso com a mesma recorrente, na qual se decidiu julgar inconstitucionais, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1, parte final, e 2, da Constituição da República Portuguesa, as normas dos n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, interpretadas no sentido de vedarem a concessão de apoio judiciário, na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, a sociedade comercial, mesmo que esta prove que não dispõe de meios económicos bastantes para suportar esses honorários.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1, parte final, e 2, da Constituição da República Portuguesa, as normas dos n.ºs 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, interpretadas no sentido de vedarem a concessão de apoio judiciário, na modalidade de pagamento de honorários a patrono escolhido, a sociedade comercial, independentemente de se tratar de acções estranhas à sua actividade económica normal, e mesmo que esta prove que não dispõe de meios económicos bastantes para suportar esses honorários; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Setembro de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues (Vencido com base na fundamentação expendida nos Acórdãos n.ºs 97/99, 167/99, 368/99, 429/99, 90/00 e 234/01, bem como ainda no voto de vencida da Ex.ma Conselheira Fernanda Palma aposto no Acórdão n.º
106/04, referido no acórdão) Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos de anteriores acórdãos, tais como os n.ºs 97/99, 167/99, 368/99 e outros, bem como nos termos da declaração de voto apensa ao Acórdão n.º 106/2004) Rui Manuel Moura Ramos