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Proc. n.º 639/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(LTC), do despacho proferido pelo relator no Tribunal da Relação de Coimbra que não lhe admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão da conferência do mesmo Tribunal da Relação que lhe indeferiu a reclamação apresentada contra anterior despacho do mesmo relator.
2 – Como fundamentos da reclamação o reclamante alega, em síntese, que a sua afirmação constante da alegação da suscitação da irregularidade de falta de notificação da resposta a recurso, que foi apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, de que apenas ficou a saber de tal resposta com a notificação do parecer dado pelo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, efectuada nos termos do art.º 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal
(CPP), não pode ser lida com o sentido que o relator do despacho reclamado lhe atribuiu de conhecer o conteúdo de tal resposta mas tão só com o de que o alegante ficou a saber da sua existência e que, sendo assim, sempre o recurso, a ser provido, leva a que o recorrente possa conhecer o teor da resposta e tomar posição sobre ela. Por outro lado, aduz ainda que, devendo o sentido do conceito de “recurso manifestamente infundado” usado no art.º 76º, n.º 2, da LTC ser entendido nos termos que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 501/94 precisou, não pode integrar uma tal acepção normativa uma situação, como a que ocorre nos autos, em que o recorrente, divergindo do entendimento da Relação, argumenta que a interpretação dos art.ºs 123º, n.º 1, e 413º, n.º 1, do CPP com o sentido de que a arguição da irregularidade de falta de notificação a que se refere o n.º 2 do art.º 413º do CPP deve ser efectuada no prazo de três dias a contar da notificação da remessa do recurso para o Tribunal da Relação sob pena de ficar sanada, é inconstitucional por violar o art.º 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
3 – O despacho reclamado tem o seguinte teor:
«Além de manifestamente infundado, o recurso interposto é manifestamente inútil, porque outra finalidade não terá que adiar a decisão.
Com efeito, a eventual procedência do recurso outra consequência não teria que não fosse a de notificar o recorrente da resposta do Ministério Público em 1ª instância a qual, como diz o próprio recorrente a fls. 225, passou a conhecer aquando da notificação a que se refere o art.º 417º, n.º 2 do CPP.
Assim, nos termos do art.º 76º, n.º 2, última parte, da Lei n.º
28/82, não se admite o recurso».
4 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido do deferimento da reclamação.
B – Fundamentação
5 – A questão decidenda surge no seguinte quadro processual que aqui se resume para a compreender melhor:
O reclamante interpôs recurso para a Relação da sentença proferida em processo penal comum com juiz singular que o condenou (e a outra arguida) pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º
143º, n.º 1, do C. Penal. A esse recurso respondeu o Ministério Público junto do tribunal de comarca. Logo após foi ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação. O ora reclamante foi notificado pessoalmente desse despacho em
15/12/2003. Tendo o processo subido ao Tribunal da Relação, o Procurador-Geral Adjunto nesse tribunal emitiu parecer sobre o objecto do recurso. O reclamante foi notificado desse parecer nos termos do art.º 417º, n.º 2, do CPP, por carta de 26/01/2004. Em 3/02/2004, o reclamante arguiu a irregularidade de não lhe ter sido notificada a resposta do Ministério Público junto da comarca, alegando ter conhecido a sua existência com a notificação do referido parecer do Procurador-Geral Adjunto, em virtude de a mesma ser nele referida.
O relator, no Tribunal da Relação de Coimbra, considerou, porém, essa irregularidade processual sanada. Notificado desta decisão, o recorrente reclamou para a conferência logo suscitando a inconstitucionalidade da norma extraída dos art.ºs 123º, n.º 1, e 413º, n.º 2, do CPP no entendimento segundo o qual, sendo notificado ao recorrente o despacho que ordena a subida do processo ao Tribunal da Relação em consequência de recurso da sentença final para aí interposto pelo recorrente, a irregularidade processual traduzida em omissão de notificação da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto da primeira instância fica sanada se não for arguida no prazo de três dias contados desde a notificação do despacho que ordena a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, por violação dos direitos de defesa do arguido garantidos no art.º 32º, n.º 1, da Constituição.
E tendo sido designado dia para o julgamento do recurso, na Relação, o reclamante veio reclamar contra esse despacho com o fundamento de não ter sido ainda apreciada e decidida a anterior reclamação.
Por acórdão de 24/03/2004, aquela reclamação foi indeferida por se ter considerado que, tal como o relator havia decidido, a irregularidade processual, efectivamente existente, se havia sanado pela falta de arguição no prazo de três dias a contar da notificação ao recorrente do despacho que ordenou a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, nos termos dos art.ºs 123º, n.º 1, e
413º, n.º 2, ambos do CPP, nada se dizendo sobre a questão de inconstitucionalidade.
Notificado deste acórdão, o ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional visando a apreciação da desconformidade com o art.º 32º, n.º 1, da CRP, da norma acima referida cuja inconstitucionalidade suscitara para a conferência, na Relação.
6 – Ao contrário do entendido no despacho reclamado, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional pelo ora reclamante do acórdão da Relação que indeferiu a sua reclamação apresentada contra o despacho que considerou sanada, por falta de arguição no prazo de três dias a contar da notificação do despacho que ordenou a remessa dos autos para o Tribunal da Relação, a irregularidade consistente na omissão de notificação da resposta do Ministério Público ao recurso por ele interposto da sentença final que o condenou não é manifestamente inútil. Na verdade, o provimento do recurso de constitucionalidade corresponderá a considerar inválida constitucionalmente a norma questionada, acima referida. Ora, numa tal situação, a reforma do acórdão recorrido por parte do tribunal a quo terá de passar por considerar não sanada a irregularidade cometida (da omissão de notificação da resposta do Ministério Público junto do tribunal de 1ª instância ao recurso aí interposto pelo recorrente de sentença final que o condenou) e por ordenar a notificação ao recorrente da referida resposta, anulando os actos posteriores que dela dependerem ou puderem ficar afectados (art.º 122º, n.º 1, do CPP). Por outro lado, também não colhe o fundamento invocado no despacho reclamado de que o reclamante passou a conhecer a dita resposta do Ministério Público com a notificação do parecer dado no Tribunal da Relação. A este respeito, o que se pode colher da alegação do ora reclamante constante de fls. 225 (fls. 13 na paginação deste processo) é tão só o de que ele ficou a saber que o Ministério Público junto do tribunal de comarca teria respondido ao seu recurso, mas já não que igualmente ficou a saber qual o conteúdo ou teor dessa resposta.
Assim sendo, falecem os fundamentos principais em que se estribou o despacho reclamado.
Todavia, a mesma decisão invoca ainda um outro fundamento que poderá ser entendido como expendido a título cumulativo. É exactamente por se ler o discurso neste sentido que se passa a apreciá-lo. Na verdade, como já se transcreveu atrás, o despacho reclamado começa por dizer “além de manifestamente infundado, o recurso é manifestamente inútil, porque outra finalidade não terá que adiar a decisão”. Tal leitura sai, aliás, reforçada com o facto de a decisão se apoiar expressamente no “art.º 76º, n.º 2, última parte, da Lei n.º 28/82”, disposição essa que contempla precisamente a não admissão do recurso por razões de mérito.
Segundo esta óptica, o recurso não podia também ser admitido por a questão de inconstitucionalidade suscitada ser manifestamente infundada ou seja, improcedente sob o ponto de vista do mérito de constitucionalidade.
A respeito deste fundamento de não admissibilidade do recurso escreveu-se no Acórdão n.º 501/94, publicado no Diário da República II Série, de
10 de Dezembro de 1994 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol. pp. 537
(citado, aliás, pelo reclamante) o seguinte:
«Nos termos do disposto no artigo 76º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido, no caso do recurso previsto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, quando for 'manifestamente infundado' (...).
[...]
9. Neste domínio, é fundamental concretizar critérios de aferição do que seja um
'recurso manifestamente infundado' para delimitar tal conceito.
É desde logo evidente que não se pode, em sede de reclamação, antecipar a apreciação do mérito do recurso, procedendo a uma análise circunstanciada dos seus fundamentos. Não constitui objecto da reclamação avaliar a atendibilidade dos fundamentos do recurso, mas apenas apreciar a verificação das condições de admissibilidade do recurso. Em regra, tais condições possuem natureza formal, embora uma delas, concretamente a que ora nos interessa - ou seja, a de o recurso não ser 'manifestamente infundado' -, tenha uma irrecusável componente substantiva, na medida em que impõe uma certa avaliação dos fundamentos do recurso. Porém, esta avaliação não pode ser idêntica à que teria lugar no julgamento do próprio recurso. Não é por entender que os fundamentos do recurso improcedem que o julgador pode, logo na apreciação da reclamação, considerar o recurso
'manifestamente infundado': por isso, a lei não se basta com que o recurso seja
'infundado', para determinar a não admissão do recurso e o subsequente indeferimento da reclamação, mas exige que o recurso seja 'manifestamente infundado'. Isto significa que o recurso só pode ser indeferido e a reclamação desatendida se uma avaliação sumária dos seus fundamentos permitir concluir, inequivocamente, pela sua inatendibilidade. Se o julgador, no âmbito da reclamação, tiver de desenvolver uma actividade cognitiva e argumentativa semelhante à que utilizaria em sede de recurso para poder concluir pela inatendibilidade dos respectivos fundamentos, tal indiciará que não estamos perante um 'recurso manifestamente infundado' - e, por conseguinte, será de deferir a reclamação e determinar a subida do recurso, ainda que, a final, venha a ser-lhe negado provimento.
10. No Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República, 2ª Série, de
18/6/94, o Tribunal Constitucional abordou o conceito de 'recurso manifestamente infundado' e concluiu que ele visa impedir que o recurso de constitucionalidade sirva fins dilatórios: a questão de inconstitucionalidade só deve subir ao Tribunal Constitucional quando apareça, prima facie, dotada de uma certa atendibilidade. A finalidade deste pressuposto de admissibilidade do recurso é, sem dúvida, evitar recursos inúteis, com efeitos meramente dilatórios. Porém, tendo em atenção as considerações anteriormente expendidas, ele não pode ser utilizado para obstar à subida de recursos cuja atendibilidade seja duvidosa, sob pena de subversão das finalidades e características do meio processual 'reclamação', que não pode substituir o meio processual 'recurso' (com diferentes prazos e garantias para as partes). Com efeito, é este último o meio próprio para a avaliação ponderada da atendibilidade dos fundamentos do recurso. Resulta do exposto que o conceito de 'recurso manifestamente infundado' deve ser delimitado negativamente, como, aliás, decorre da própria formulação legal do conceito. Assim, é 'manifestamente infundado' o recurso cuja inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva. Isto significa que não há que averiguar se o recurso procede, nem se exige um determinado grau de probabilidade dessa procedência - caso em que se estaria a entrar, profundamente, na apreciação do respectivo mérito. O que o legislador exige é que se verifique, tão-só, se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis. Daqui decorre que o recurso será, por exemplo, 'manifestamente infundado' quando nele falte qualquer fundamentação (ou seja, não se apresente - nem se vislumbre
- argumentação no sentido da alegada inconstitucionalidade) ou quando a fundamentação revele contradições insanáveis de ordem lógica ou valorativa. Nestes casos, uma simples análise sumária ou liminar do requerimento de recurso basta para concluir pelo carácter 'manifestamente infundado' do recurso, sem necessidade de uma apreciação circunstanciada dos fundamentos, ou seja, sem entrar na apreciação do fundo do recurso que é reservada para um momento processual ulterior.».
O Tribunal acompanha esta significação do conceito indeterminado de
“recurso manifestamente infundado” para efeitos da apreciação da sua admissibilidade liminar.
Ora, transpondo a sua doutrina para o caso sub judicio, fácil é concluir que a situação não se enquadra em tal hipótese. Na verdade, a questão de saber se ofende ou não a garantia constitucional estabelecida no art.º 32º, n.º 1, da Lei Fundamental, da concessão ao arguido de todos os meios de defesa, a interpretação dos art.ºs 123º, n.º 1, e 413º, n.º 2, ambos do CPP, segundo a qual, sendo notificado ao recorrente o despacho que ordena a subida do processo ao Tribunal da Relação em consequência de recurso da sentença final para aí interposto pelo recorrente, a irregularidade processual traduzida em omissão de notificação da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto da primeira instância fica sanada se não for arguida no prazo de três dias contados desde a notificação do despacho que ordena a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, não é de resposta evidente ou ostensiva no sentido da sua inatendibilidade.
Não se tendo o acórdão pretendido recorrer pronunciado sequer sobre o mérito dessa questão, como se disse, menos aparente se mostra a resposta que ela deva merecer. De resto, nem o despacho reclamado deixa entrever os fundamentos que subjazem ao juízo subjectivo externado de ser manifestamente infundado o recurso de inconstitucionalidade interposto.
Temos, portanto, de concluir que também por esta razão a reclamação deve proceder.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide deferir a reclamação, devendo o despacho reclamado ser reformado no sentido da admissão do recurso.
Lisboa, 7 de Julho de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos