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Processo n.º 438/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por acórdão de 12 de Junho de 2000 do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Beja – integrado pelos Juízes A., presidente (que anteriormente havia proferido despacho a determinar o desentranhamento da contestação e o requerimento para produção de prova por entender que relativamente ao advogado seu subscritor se verificava uma situação de incompatibilidade, por exercer funções de notário), B. e C. – foi o arguido D. condenado, como co-autor material de um crime de corrupção activa, previsto e punido pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão, logo reduzida a um ano e três meses de prisão por força do perdão concedido pelo artigo 8.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio (cf. fls. 243 a 275).
Tendo entretanto sido proferido, em 11 de Julho de 2000, acórdão do Tribunal da Relação de Évora (cf. fls. 237 a 240), revogando o despacho que determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova, o juiz do Tribunal Judicial de Beja proferiu despacho, em 21 de Novembro de 2000, declarando inválidos todos os actos posteriores ao não recebimento dessas peças, incluindo a audiência de julgamento e o subsequente acórdão condenatório (cf. fls. 276 e 277).
Tendo a mesma juíza presidente do Tribunal Colectivo designado data para a realização de novo julgamento, veio o referido arguido requerer a recusa da intervenção nesse julgamento dos juízes que haviam participado no anterior. No sentido da improcedência da requerida recusa pronunciaram-se as juízas presidente e 1.ª vogal do Tribunal Colectivo (cf. fls.
7-11 e 12-13) – o juiz 2.º vogal cessara entretanto o exercício de funções na comarca de Beja. Por acórdão de 5 de Junho de 2001 (cf. fls. 56 a 58), o Tribunal da Relação de Évora não concedeu a recusa por considerar o respectivo pedido manifestamente infundado.
Contra esse acórdão interpôs o referido arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, “à cautela”, para o Tribunal Constitucional (cf. fls. 65 a 74), mas, por despacho de 15 de Janeiro de 2002
(fls. 98 a 100), o Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora não admitiu nenhum deles: o primeiro por “legalmente inadmissível” e o segundo por
“ilegitimidade do recorrente”, uma vez que não suscitara, perante o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade das normas que pretendia ver apreciadas
(artigo 72.º, n.º 2, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC).
Contra este despacho deduziu o recorrente reclamações:
– para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (fls.
104 a 122), que foi deferida por despacho de 19 de Fevereiro de 2002 (fls. 149 a
151); e
– para o Tribunal Constitucional (fls. 152 a 161), que foi indeferida pelo Acórdão n.º 114/2002 (fls. 192 a 199).
Admitido o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este, por acórdão de 3 de Outubro de 2002 (fls. 222 a 227), anulou o acórdão recorrido por padecer de “completa omissão da fundamentação de facto”.
Proferiu então o Tribunal da Relação de Évora, em 28 de Janeiro de 2003 (fls. 283 a 286), novo acórdão em que voltou a não conceder a requerida recusa.
Contra este acórdão interpôs o recorrente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 289 a 301), aduzindo, além do mais, que “a interpretação dada pelo Tribunal a quo aos artigos 40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, é manifestamente inconstitucional por violar o artigo
32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, precipitando, outrossim, a violação dos artigos 1.º, 2.º, 8.º, 16.º e 204.º da Constituição”, dado que “os magistrados que julgaram o ora recorrente e o condenaram em 12 de Junho de 2000 ficaram com uma convicção de tal modo arreigada quanto à sua culpabilidade que, objectivamente – e sem prejuízo da independência interior que os magistrados sejam capazes de preservar –, fica inexoravelmente comprometida a independência e imparcialidade desses magistrados no novo julgamento do mesmo processo”.
A este recurso foi negado provimento pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 2003 (fls. 315 a 330), com base na seguinte fundamentação jurídica:
“6 – Análise apreciativa
É, então, altura de cuidarmos da questão que nos vem proposta. Numa perspectiva geral deve, antes de tudo, encarecer-se que o princípio que informa o instituto da suspeição (suspeição que é o que, essencialmente, pode legitimar a recusa) é o de que a intervenção do magistrado, no processo, apenas suporta o risco de ser havida por suspeita, ocorrendo motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade que dele se espera; e tais seriedade e gravidade de motivo (ou de motivos) causador (causadores) do sentimento ou sensação de desconfiança a respeito daquela imparcialidade hão-de ser (têm que ser e devem ser) encarados objectivamente, logo sendo de afastar convencimentos meramente subjectivos dos sujeitos processuais como suporte de um petitório de recusa, isto porque o simples receio ou temor de que o juiz haja já estruturado um convencimento prévio acerca do thema decidendum não potencializa (e, muito menos, pode viabilizar), quer a razão de ser da recusa, quer fundamento bastante e válido para a reclamar.
Neste capítulo, torna-se importante relembrar aquilo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado sobre o imposto (e inafastável) princípio da imparcialidade; no seu entendimento, deve esta apreciar-se de um duplo ponto de vista ou sob um duplo prisma, ou sejam, os da aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião, e da apreciação objectiva, quanto a saber-se se o magistrado em causa oferece as suficientes garantias para repelir e excluir, a este propósito, quaisquer duvidas aceitáveis (ou, num mínimo, razoáveis).
Daqui deriva a asserção de que a imparcialidade, enquanto exigência específica (e indissociável) de uma verdadeira decisão judicial ou de um escorreito e justo julgado, se haja de definir, por via de regra, a partir da ausência de todo prejuízo ou preconceito concretizados ou plausíveis no que tange à matéria a decidir e no que toca às pessoas que a decisão afecte.
Igualmente, o TEDH vem expressando o entendimento de que a imparcialidade se presume até convincente prova em contrário, pelo que, assim sendo (e não se levantam dúvidas sobre que assim não deva ser), a imparcialidade na sua feição objectiva releva (ou se radica) de (e em) considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação do conceito tão-somente pode ser testado numa base rigorosamente casuística, que outra não será que a da análise concreta do modo do exercício das funções reflectido nos actos processuais do julgador; e daí que as dúvidas ou as reservas sobre a imparcialidade, no plano objectivo, apenas se possam suscitar formalmente sempre que o juiz desempenhe, no processo, funções ou pratique actos próprios da competência de outro órgão ou tenha tido intervenção no processo numa outra qualidade, não integrando nenhuma destas hipóteses, nem configurando qualquer destes condicionalismos, o caso em que o juiz exerce, no processo, uma função pura e lidimamente judiciária, na validade do que se lhe permite e na plenitude dos poderes que lhe assistem, integrada, processual e institucionalmente, na mesma fase para a qual o processo penal lhe confere jurisdição e lhe atribui competência (cf., com manifesto interesse sobre este tema, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Janeiro de 1998, processo n.º 877/97).
O rigor da suspeita, a verosimilhança da imputação e as consistência e plausibilidade das reservas em sede das seriedade e gravidade bastantes para as avalizarem são indispensáveis (e incontornáveis) condimentos apoiantes de um pedido de recusa: sem esse rigor, sem essa verosimilhança e sem essas consistência e plausibilidade fortalecidas por motivação séria e grave, sempre estará tal pedido votado ao fracasso, como de resto o impõem, a um tempo e do mesmo passo, o respeito que merece a Justiça, a atenção pela preservação da estabilidade e da disciplina processuais e a própria consideração que, em principio, é devida aos Tribunais.
E certo sendo que nem todos os actos ou decisões judiciais podem agradar às diversas partes ou aos diversos sujeitos de um pleito, mau seria que esse desagrado, quando desprovido de razoabilidade pertinente, se pudesse converter em fundamento para recusar um magistrado (ou, de uma assentada, todo um colectivo) e, até, mesmo, para, sequer, hipotizar essa recusa.
Retidos estes considerandos, na sua inevitável projecção sobre o caso sub judice: Não se alcança que o condicionalismo factualizado seja idóneo a servir os propósitos do recorrente, em directo à anulação do aresto recorrido e, em decorrência, à concessão da peticionada recusa (na reclamada abrangência a todos os magistrados do colectivo).
Não justificando reparo – perante os dados de facto produzidos – a forma como decidiu (de direito) o Tribunal da Relação a quo, é nessa sede (de direito) – a única em que lhe cabe decidir (cf. artigo 434.º do Código de Processo Penal) – que este Supremo Tribunal de Justiça não pode deixar de avalizar, pela positiva, o entendimento expressado por aquela Veneranda Instância de que a factualidade certificada não consente que se formatem, com base nela e a partir dela, motivos sérios e graves, adequados a gerarem desconfiança sobre a imparcialidade, quer da meritíssima Juiz Presidente do Tribunal Colectivo da Comarca de Beja, quer dos seus Ex.mos Adjuntos.
E dito isto – sem necessidade de mais desenvolvimentos que, apenas, seriam repetição do já aduzido no aresto impugnado e na resposta sequentemente oferecida pelo Ministério Público, sufragando aquele – somente sobrará assinalar, em jeito de apontamento final, que não apresenta qualquer interesse relevante tudo quanto, no recurso, se debitou a propósito (ou em torno) do artigo 40.º do Código de Processo Penal; é, em absoluto, patente que a filosofia informadora deste preceito e a sua finalidade especifica (viradas, ambas, para a atenção, confinadamente objectiva, de determinadas situações que
(objectivamente) «desaconselham» a intervenção dos Juízes, em certos casos de processos em que tenham participado, em reporte a actos a que tenham presidido ou a decisões que tenham prolatado, não por via de equacionada suspeição mas, unicamente, por força de impedimentos legais taxativamente consignados) nada tem que ver com a temática própria da recusa, nem com as razões que legitimem concedê-la.
7 – Síntese conclusiva.
Não divisada, nem demonstrada, a existência de motivos sérios e graves, adequados ou idóneos a gerarem desconfiança sobre a imparcialidade dos Ex.mos magistrados visados no concernente ao processo em causa (cf. artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, parte final, do Código de Processo Penal) e inverificado, igualmente, qualquer outro condicionalismo passível de inculcar, séria e gravemente, aquela desconfiança (cf. artigo 43.º, n.º 2, primeira parte, do Código de Processo Penal), falta base legal para a impetrada recusa; resta, pois, confirmar, na improcedência do recursoriamente peticionado, o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, nada se detectando a desaboná-lo.”
Contra este acórdão interpôs o recorrente o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, visando apreciar a constitucionalidade – por violação “do artigo
32.º, n.º 1, da Constituição, bem como dos artigos 5.º e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que precipita a violação dos artigos 1.º,
2.º, 8.º, 16.º e 204.º da Constituição” – da interpretação dada aos artigos
40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que os juízes que fizeram parte do tribunal colectivo e que, no âmbito do mesmo processo, condenaram o recorrente, podem, depois, vir a fazer parte do tribunal colectivo que irá novamente julgá-lo pelos mesmos factos por, entretanto, ter sido anulado, por tribunal superior, o anterior julgamento (cf. requerimento de fls. 335 e 338).
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações (fls. 343 a 369), que terminam com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – Pelo douto acórdão de 8 de Maio de 2003, proferido pela 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça (recurso penal n.º 1497/03), foi negado provimento ao recurso interposto do douto acórdão de 28 de Janeiro de 2003, do Tribunal da Relação de Évora;
2.ª – No recurso interposto deste aresto o ora recorrente sustentou, perante o STJ, e continua a sufragar o entendimento, junto deste Tribunal Constitucional, que a interpretação dada, por aquelas instâncias, aos artigos 40.° e 43.°, n.ºs
1 e 2, do CPP fere, inquestionavelmente, o artigo 32.°, n.º 1, da Constituição e os artigos 5.° e 6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, interpretação que, em consequência, precipita a violação dos artigos 1.º, 2.°,
16.º e 204.° da Constituição;
3.ª – Com efeito, por acórdão de 16 de Junho de 2000, lavrado no processo n.º 10.2/98, do Tribunal Colectivo de Beja, presidido pela Meritíssima Juiz, Dr.ª A., o ora recorrente foi condenado a dois anos e três meses de prisão efectiva, pela pretensa prática, como co-autor material, de um crime de corrupção activa, previsto e punido pelo artigo 372.°, n.º 1, do Código Penal de 1995;
4.ª – No âmbito do mesmo processo, a Meritíssima Juiz, cuja recusa se impetra, bem como dos Meritíssimos Juízes que compunham a mesma formação, havia determinado o desentranhamento da contestação e o requerimento para a produção de prova oferecidos pelo arguido, ora recorrente, tendo-o convidado a constituir novo mandatário;
5.ª – Desse despacho foi interposto recurso, o qual obteve provimento por douto acórdão de 17 de Julho de 2000 do Tribunal da Relação de
Évora;
6.ª – Em cumprimento deste douto aresto o Meritíssimo Juiz de Beja, por despacho de 21 de Novembro de 2000, declarou inválidos os actos posteriores ao não recebimento da contestação e, em consequência, o julgamento;
7.ª – Em virtude do douto aresto da Relação de Évora, que precipitou a nulidade do acórdão condenatório de 12 de Junho de 2000, do Tribunal Colectivo de Beja, o recurso então interposto pelo ora recorrente deste acórdão ficou, também, prejudicado;
8.ª – Porém, a Meritíssima Juiz, Dr.ª A., que havia proferido o despacho anulado pelo acórdão de 11 de Julho de 2000, da Relação de Évora, e que presidiu ao Colectivo que julgara e condenara o ora recorrente – acórdão de 12 de Junho de 2000 – agora, também na qualidade de Presidente do Tribunal Colectivo, designou para novo julgamento os dias 19, 21 e 30 de Março de 2001;
9.ª – O ora recorrente suscitou, então, perante o Tribunal da Relação de Évora, a recusa da Meritíssima Juiz, Dr.ª A., e dos Meritíssimos Juízes que participaram no julgamento declarado inválido;
10.ª – O pedido tinha como suporte legal os artigos 40.° e 43.°, n.ºs 1 e 2, do CPP, bem como o artigo 32.°, n.º 1, da Constituição, normas que se consideravam violadas;
11.ª – Com efeito, a Meritíssima Juiz, Dr.ª A., e seus ilustres pares que compunham o Tribunal Colectivo, e que condenaram o ora recorrente, já possuem, necessária e inevitavelmente, uma ideia formada (convicção) sobre a culpabilidade do recorrente devido à participação, muito activa, que tiveram no decorrer das várias audiências de julgamento ocorridas no âmbito do processo n.º 10.2/98;
12.ª – Daí que aqueles Meritíssimos Juízes do Tribunal da 1.ª Instância não possam, nem devam, intervir no novo julgamento que tem por objecto o mesmo processo e, em consequência, a mesma pronúncia;
13.ª – Contudo, o douto Tribunal a quo, bem como o Tribunal da Relação de Évora, sufragam entendimento diametralmente oposto, concluindo pela improcedência do pedido de recusa;
14.ª – Salvo o devido respeito, dissentimos do douto Tribunal a quo porquanto a interpretação por ele dada aos artigos 40.° e 43.°, n.ºs 1 e 2, do CPP, é manifestamente inconstitucional, por violar o artigo 32.°, n.º 1, da Constituição e, outrossim, os artigos 1.º, 2.°, 8.°, 16.° e 204.º da Lei Fundamental, precipitando, do mesmo modo, a violação do artigo 6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicável por força do estatuído no artigo 8.° da CRP, norma que consagra o direito a um processo equitativo e, por isso, com respeito pelas garantias de independência e imparcialidade dos juízes;
15.ª – Os magistrados que julgaram o ora recorrente no Tribunal de
1.ª Instância e que o condenaram em 12 de Junho de 2000 ficaram com uma convicção de tal modo arreigada quanto à sua culpabilidade que, objectivamente, e sem prejuízo da independência interior que sejam capazes de preservar, ficaram inexoravelmente comprometidos no tocante à independência e imparcialidade que devem iluminar o julgador;
16.ª – Destarte, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão recorrido, proferido em 8 de Maio de 2003, violou os normativos indicados na conclusão 14.ª, proferindo uma decisão inconstitucional, já que deveria ter declarado impedida de participar no novo julgamento a Meritíssima Juiz, Dr.ª A., e os Meritíssimos Juízes Adjuntos que compunham o Colectivo que proferiu o acórdão de 12 de Junho de 2000 e que foi declarado inválido na sequência do douto acórdão de 11 de Julho de 2000 do Tribunal da Relação de Évora;
17.ª – Com a interpretação dada pelo STJ, no aresto sob recurso, aos artigos 40.° e 43.°, n.ºs 1 e 2, do CPP, as garantias de defesa do ora recorrente são postergadas, interpretação que viola o artigo 32.°, n.º 1, da CRP, bem como os normativos constitucionais inscritos na já referida conclusão
14.ª.”
O representante do Ministério Público apresentou contra-alegações (fls. 371-373), concluindo:
“1 – As normas constantes dos artigos 40.º e 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de permitirem que o arguido possa ser julgado por juízes que já antes haviam participado no primeiro julgamento e proferido decisão condenatória, anulada, porém, com fundamento em vício procedimental (o indevido desentranhamento da contestação e requerimento probatório, apresentados pelo defensor), não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Dispõem os artigos 40.º e 43.º do Código de Processo Penal (CPP):
Artigo 40.º (Impedimento por participação em processo)
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativamente a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.
Artigo 43.º (Recusas e escusas)
1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora do caso do artigo 40.º
3. (...)
4. (...)
5. (...)
Estando em causa, no presente processo, uma situação de recusa de juízes, as normas às quais se reporta, em rigor, a questão de inconstitucionalidade suscitada são as dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º do CPP, interpretadas no sentido de que a intervenção em novo julgamento de juízes do tribunal colectivo que participaram em anterior julgamento – que veio a ser considerado consequentemente inválido por força da revogação, em recurso, de despacho que determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido –, não constituindo nenhum dos casos previstos no artigo 40.º do mesmo Código, também não corre o risco de ser considerada suspeita com base na existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Refira-se ainda que, na versão originária do Código de Processo Penal de 1987, o artigo 426.º – inserido no capítulo dedicado à tramitação unitária dos recursos ordinários – dispunha que “sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º [a saber: a) insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada; b) contradição insanável da fundamentação; e c) erro notório na apreciação da prova], não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio”. Se o reenvio fosse determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça (ao qual competia conhecer dos recursos dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo – artigo 432.º, alíneas b) e c)), o novo julgamento competia “ao tribunal, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo” (artigo 436.º). Se o reenvio fosse determinado pelas Relações (que conhecia dos recursos das sentenças condenatórias do juiz singular – cf. artigo 427.º), o novo julgamento competia
“ao tribunal colectivo com jurisdição na área do tribunal recorrido” (artigo
431.º).
Justificando este novo regime do reenvio (em contraste com o do Código de Processo Penal de 1929, que previa a anulação da decisão do tribunal recorrido e a baixa do processo ao mesmo tribunal para ampliação ou reforma da decisão), refere Cunha Rodrigues (“Recursos”, em Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1988, págs. 379-400, em especial págs. 396-397, republicado em Lugares do Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, págs.
493-512, em especial págs. 508-509):
“As razões que informam este regime filiam-se numa orientação muito determinada de não confiar a repetição do julgamento ao mesmo tribunal. Sendo a repetição do julgamento um mal necessário, pareceu que o reexame da causa poderia ser feito em melhores condições por tribunal diferente.
No caso da Relação, o circuito processual sofre uma alteração qualitativa. Recorre-se do juiz singular para a Relação; se esta anular o julgamento, remete o processo ao tribunal colectivo, de que se recorrerá para o Supremo Tribunal. No caso do Supremo, o processo é reenviado para outro tribunal colectivo ou de júri.”
Após a revisão operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, o CPP manteve o teor do originário artigo 426.º (agora, n.º 1 do artigo
426.º) – sendo de assinalar que no n.º 2 do artigo 410.º, para que remete, a previsão inicial da alínea b), que referia o vício de “contradição insanável da fundamentação”, foi alargada à contradição insanável “entre a fundamentação e a decisão”. Segundo o artigo 426.º-A – que veio substituir os originários artigos
431.º e 436.º, unificando, também neste ponto, a tramitação processual –,
“quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo” (n.º 1), sendo que, “quando na mesma comarca existirem mais de dois tribunais da mesma categoria e composição, o julgamento compete ao tribunal que resultar da distribuição” (n.º 2). Isto é, actualmente, o reenvio do processo por anulação de julgamento efectuado por tribunal singular é feito para outro tribunal singular, e já não para o tribunal colectivo.
Temos, assim, que, segundo o regime hoje vigente, quando o tribunal de recurso não possa decidir da causa, “por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º” (a saber: a insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e o erro notório na apreciação da prova), determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio (artigo 426.º, n.º 1, do CPP), competindo o novo julgamento ao tribunal, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontre mais próximo (artigo 426.º-A, n.º 1, do CPP). Esse regime já não opera (ao menos, de forma directa) se a causa da necessidade de repetição do julgamento for diversa da ocorrência dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º, designadamente se consistir na verificação da situação prevista no n.º 3 desse preceito, isto é, na “inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
[No sentido de que não há lugar a reenvio para diferente tribunal nos casos indicados no n.º 3 do artigo 410.º do CPP, cf. os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Janeiro de 1993, processo n.º 4424 (Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, 1993, tomo I, pág. 153), e do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Julho de 1989, processo n.º 40 094, de 29 de Maio de 1991, processo n.º 41 657, de 26 de Maio de 1994, processo n.º 46 594 (publicados, respectivamente, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 389, pág. 486, e n.º
407, pág. 361, e na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, 1994, tomo I, p. 236), de 10 de Outubro de 1996, processo n.º 169/96, e de 29 de Janeiro de 1997, processo n.º 759/96, recaindo sobre casos de nulidade da sentença previstos no artigo 379.º do CPP, ou de nulidade por conhecimento, em julgamento, das declarações prestadas na fase do inquérito, fora das circunstâncias indicadas no artigo 356.º do CPP.
Já a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça se mostra dividida quanto à possibilidade de intervenção no “novo tribunal” de juiz que tivesse participado no anterior e que entretanto tivesse sido transferido para aquele: enquanto nos acórdãos de 5 de Março de 1997, processo n.º 48 717, e de
18 de Fevereiro de 1999, processo n.º 1244/98, se decidiu que, reenviado o processo para novo julgamento noutro tribunal, nada obsta a que neste participe juiz que havia integrado o tribunal que proferira a primeira decisão, já no acórdão de 17 de Fevereiro de 1999, processo n.º 1357/98, se decidiu que, nessa hipótese, o juiz que proferiu a decisão recorrida não pode integrar o tribunal colectivo ao qual o processo foi reenviado para que se proceda a novo julgamento
– acórdãos publicados em Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, 1997, tomo I, pág. 241, e ano VII, 1999, tomo I, págs. 214 e 216, respectivamente.
Mais recentemente, pelos acórdãos de 2 de Outubro de 2003, processo n.º 2433/03, e de 4 de Março de 2004, processo n.º 4048/04 (com texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj), o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que: (i) em caso de reenvio do processo, em recurso, para novo julgamento colegial, o tribunal colectivo competente será, numa comarca de dois ou mais juízos, o do outro juízo (ou, sendo caso disso, o que resultar da distribuição); (ii) não constituirá motivo de «impedimento» (artigo 40.º do CPP) a eventual coincidência entre um ou mais juízes do tribunal colectivo competente para o novo julgamento e os que integraram o tribunal colectivo do primeiro julgamento;
(iii) todavia, essa coincidência já será, porventura (artigo 43.º, n.º 1), motivo de recusa (ou de escusa), tanto mais que «pode constituir fundamento da recusa (...) a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo (...)» (artigo 43.º, n.º 2); (iv) só depois de definido qual o tribunal competente para o novo julgamento é que – se se vier a deparar com a intervenção de um ou mais dos seus juízes «em fase anteriores do mesmo processo» (nomeadamente, no primeiro julgamento) – se suscitará (ou não) a recusa (ou escusa) dos juízes «coincidentes», em incidente a decidir, caso a caso, pelo «tribunal imediatamente superior» (artigo 45.º, n.º 1, alínea a));
(v) vindo a decidir-se pela recusa (ou a deferir-se o pedido de escusa) de algum dos juízes, intervirá, em seu lugar (mas no quadro do mesmo tribunal colectivo), «o juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-lo» (artigo 46.º).]
No presente caso, não tendo a necessidade de repetição do julgamento resultado da verificação de qualquer dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, mas antes surgindo como indirecta e exclusiva consequência do provimento de recurso de despacho proferido no decurso da audiência (recurso que subira imediatamente, em separado), que havia ordenado o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido, implicitamente entendeu–se – entendimento que, respeitando a interpretação do direito ordinário, não compete ao Tribunal Constitucional censurar – não ser aplicável a regra de o novo julgamento caber a tribunal diferente. E, por outro lado, agora de forma expressa, entendeu-se não ocorrer, no caso, “risco de ser considerada suspeita” a intervenção no novo julgamento de juízes que haviam participado no anterior, por não “existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, justificador da sua recusa.
É a questão da inconstitucionalidade desta última interpretação normativa que constitui objecto do presente recurso.
2.2. Como se salienta nas contra-alegações do Ministério Público, recentemente o Tribunal Constitucional teve oportunidade de, em situação análoga à ora em apreço, emitir juízo de não inconstitucionalidade das normas dos artigos 40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, quando interpretadas no sentido de permitirem que o arguido possa ser julgado por juízes que antes já haviam participado no primeiro julgamento, cuja sentença veio a ser anulada com a finalidade de se proceder à documentação das declarações prestadas em audiência.
Trata-se do Acórdão n.º 399/2003 (texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que, a propósito, desenvolveu a seguinte argumentação:
“4. É significativa a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a questão dos impedimentos do julgador em processo penal, com particular enfoque nas situações projectadas no artigo 40.º do Código de Processo Penal, quer na redacção inicial do preceito, quer na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
3/99, de 13 de Janeiro, que ora nos ocupa, de que o Acórdão n.º 297/2003 (ainda inédito, mas acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) [entretanto publicado no Diário da República, II Série, n.º 229, de 3 de Outubro de 2003, pág. 15 008] faz um resumo circunstanciado.
Mas, já no domínio do Código de Processo Penal de 1929, esta questão foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 135/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Setembro de 1988, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º volume, págs. 945 e seguintes), que julgou inconstitucional a norma do artigo 116.º daquele Código, na parte em que proibia que o juiz se declarasse impedido em acções penais por virtude de ofensas que lhe tivessem sido feitas na sua presença e no exercício das suas funções, obstando, ainda, a que se lhe pudesse opor impedimento.
Já então o que se punha em causa eram as garantias de imparcialidade e de objectividade do julgador, necessárias para a administração da justiça e exigíveis pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas.
Como se salienta no Acórdão n.º 297/2003, já referido:
«É nos Acórdãos n.ºs 219/89 e 124/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º volume, tomo II, págs. 703 e seguintes, e 15.º volume, págs. 407 e seguintes, respectivamente, que o Tribunal Constitucional vem a desenvolver a sua doutrina sobre a acumulação de funções, orgânica ou subjectiva, do juiz em processo penal, face ao disposto no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enquanto confere ao arguido o direito a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, e ao consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, enquanto impõe a estrutura acusatória para o processo penal; estava, então, em causa a constitucionalidade das normas dos artigos 365.º do CPP de 1929, 59.º da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro, e 8.º do Decreto-Lei n.º 269/78, de 1 de Setembro, por força das quais as funções de emitir o despacho de pronúncia e de julgar se congregavam no mesmo juiz.
Considerou-se, no primeiro acórdão citado, que o princípio do acusatório impunha a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento como garantia de imparcialidade do julgador. Mas como se entendeu que a pronúncia, no caso de se manter nos limites da acusação, não participa do acto acusatório, assumindo uma dimensão “puramente garantística” – o despacho de pronúncia limitar-se-ia “a evitar a ida a julgamento de indivíduos injustamente acusados” – concluiu-se que as referidas normas não padeciam de inconstitucionalidade.
A mesma tese vem a fazer vencimento no segundo acórdão, onde se acentua que “o despacho de pronúncia não representa (...) uma qualquer antecipação de um juízo de condenação do arguido” e que “destinando-se (...) a evitar que se seja submetido a julgamento por um crime grave, nem o arguido nem o público em geral podem ver no juiz que profere esse despacho alguém que está predisposto a condená-lo”.
As garantias de imparcialidade e objectividade no julgamento continuam a ser o elemento determinante de aferição da constitucionalidade, mas neste último aresto retoma-se (no Acórdão n.º 135/88 a questão foi – como se viu
– aflorada) a ponderação da aparência de imparcialidade do julgador – a imparcialidade “aos olhos do público”.»
No âmbito do Código de Processo Penal de 1987, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela primeira vez sobre a estrutura acusatória do processo penal e a exigência constitucional de independência dos juízes, no Acórdão n.º 114/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Abril de 1995), quando chamado a ajuizar da constitucionalidade da norma do artigo
40.º, na versão originária, em que estava em causa a intervenção do julgador que no início do inquérito ordene a emissão de mandados de busca.
Neste acórdão, depois de se citar a doutrina sustentada nos Acórdãos n.ºs 219/89 e 124/90 e a jurisprudência do TEDH sobre o artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, que «reflecte a exigência de um juízo imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva – o que o juiz pensa no seu foro íntimo em determinada circunstância é uma vertente da imparcialidade que se presume até prova em contrário – mas também numa visão objectiva, de modo a dissiparem-se quaisquer reservas: deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos (...)», escreveu-se:
«3.1 – O artigo 40.º do CPP é, a esta luz, um dos instrumentos legais accionáveis, se postos em causa os valores ínsitos na estrutura acusatória do processo criminal.
Não obstante, transparece dos autos uma consensual maneira de entender o preceito, não compaginável com mera interpretação literal: a letra do preceito, cingida à situação de presidência do debate instrutório, deve ser entendida como abrangendo outras situações em que um ou mais membros do tribunal desempenharam no processo outras funções de modo a considerar-se abalada a exigência de imparcialidade, como índice de crise da confiança geral na objectividade da jurisdição.
A chave da questão reside, precisamente, neste ponto.
3.2 – Com efeito, nem sempre uma acumulação subjectiva funcional colocará em crise os valores acautelados.
No caso sub judicio, chega-se, por maioria de razão, à conclusão que nem a imparcialidade do juiz nem a estrutura acusatória (...) fazem perigar esses valores.
Na verdade, em causa está, apenas, o controle judicial da existência de indícios de ocultação, em casa habitada, de quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (Código de Processo Penal, artigos 174.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, alínea a)). A intervenção do juiz é exigida pela preocupação de controlar a legalidade da diligência e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso, o direito à inviolabilidade do domicílio, o que, por outras palavras, vale dizer ser a intervenção do juiz, in casu, de dimensão exclusivamente garantística – e não de valoração de provas.
(...) o juízo sobre a concreta existência de indícios de ocultação de objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova é frequentemente um juízo de natureza perfunctória, feito a partir de segmentos de prova num momento em que o objecto do processo, designadamente ao nível dos factos e respectiva imputação subjectiva, está longe de ser definido, pelo que tal juízo será até, muitas vezes por insuficiência de elementos probatórios, inidóneo para fundamentar pré-juízos relativamente à matéria dos autos.
No caso vertente, aliás, os mandados de busca foram emitidos no início do inquérito, em momento em que não havia qualquer referência ao recorrente, e nem sequer foram cumpridos.
A intervenção do magistrado que agora preside à audiência de julgamento foi meramente ditada pela preocupação de garantir o direito à inviolabilidade do domicílio, não envolveu assunção de direcção da instrução ou exercício da acusação. Numa palavra, a conduta do juiz que, na fase inicial do inquérito, ordenou a emissão de mandados de busca, aliás não executados, não se mostra idónea para, aos olhos dos sujeitos processuais e do público, abalar a independência e imparcialidade exigidas, nem envolve confusão censurável, no ponto de vista do princípio do acusatório, entre a entidade que faz a instrução, a que deduz a acusação e a que preside ao julgamento.
Não se mostra, por conseguinte, abalada a imparcialidade objectiva do julgador.»
Como se refere no Acórdão n.º 297/2003, a que nos temos reportado nesta síntese:
«Os acórdãos que depois o Tribunal Constitucional proferiu sobre a matéria (Acórdãos n.ºs 935/96, 284/97 e 481/97, o primeiro publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.º volume, págs. 347 e seguintes) centram-se na interpretação da mesma norma, ínsita no artigo 40.º do CPP, ainda na sua versão originária, em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, na fase do inquérito decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido; o parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma foi, fundamentalmente, a norma do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
O primeiro daqueles acórdãos, para que os restantes remetem, acolhendo a doutrina exposta no Acórdão n.º 124/90, começa por analisar a situação em que o juiz, durante o inquérito, simplesmente decreta a prisão preventiva do arguido (que não era o caso dos autos); e admite (“numa determinada visão das coisas” é a expressão utilizada) que se não verifique infracção ao princípio do acusatório “desde logo porque a decisão do juiz sobre a prisão preventiva (...) assenta (...) num juízo indiciário e, por natureza, precário, periodicamente revisível”; e conclui:
“Não representando a intervenção pontual do juiz, na fase do inquérito, de decretamento ou manutenção da prisão preventiva – intervenção essa imposta por preocupações de garantia dos direitos do arguido –, a assunção da direcção da instrução ou da autoria da acusação, continua a existir distinção entre a entidade que faz a instrução e deduz a acusação e aquela que procede ao julgamento. Além disso, sendo diferentes os universos e as exigências das provas que possibilitam a imposição da prisão preventiva e que fundamentam a condenação, o juiz que, na fase do inquérito, decide acerca da prisão preventiva do arguido não deixa de ser um juiz independente e imparcial para julgar o feito penal.”
Esta orientação situa-se na linha do que, adiante, o mesmo acórdão afirma – “(...) a solução de estender o impedimento do artigo 40.º do Código de Processo Penal a todos os actos isolados susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do processo penal apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Lei Fundamental”.
Simplesmente, como se disse, esta não era a situação dos autos: o juiz do julgamento decretara e posteriormente mantivera a prisão preventiva, na fase do inquérito; ou seja, nas palavras do acórdão, a norma “foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva, e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva”.
Esta circunstância leva, decisivamente, o Tribunal a julgar violadora do princípio da acusação, constante do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, a interpretação normativa em causa, nos seguintes termos:
“Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está quase a chegar ao fim e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo, que objectivamente – e sem prejuízo da independência que lhe for capaz de preservar – fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento.”
Tirados no mesmo sentido os Acórdãos n.ºs 284/97 e 481/97 e assim verificado o pressuposto contido no artigo 82.º da LTC, o Acórdão n.º 186/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39.º volume, págs. 87 e seguintes, veio a declarar, com força obrigatória geral, “a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.º do CPP, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa”.
A fundamentação deste acórdão é basicamente a que fora adoptada no Acórdão n.º 935/96, pelo que se torna inútil repeti-la.
O que dela se retira com interesse para o caso é o particular enfoque do tipo e frequência da intervenção que o julgador teve, na fase do inquérito, com especial relevância do momento em que, dentro dessa fase, ela ocorreu (o mesmo acto pode ser valorado de modo diverso consoante o desenvolvimento da investigação).
É da conjugação destes factores que há-de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objectividade do juiz enquanto julgador.
A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 40.º do CPP, foi a causa da alteração da redacção deste preceito, nos termos da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a ele sendo aditado, como causa de impedimento, o facto de o juiz, no inquérito ou na instrução, ter
“aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido”.
Mas foi ainda sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40.º do CPP, na sua versão originária, que o Acórdão n.º 29/99, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42.º volume, págs. 153 e seguintes, se pronunciou, estando, então, concretamente em causa, a prática de um acto de manutenção da prisão preventiva do arguido, no contexto do reexame trimestral dos pressupostos daquela medida de coacção.
O acórdão não se distancia, substancialmente, do entendimento que conduzira à decisão do Acórdão n.º 186/98, “numa lógica de reiteração e de verificação de circunstâncias especiais que afectam a imparcialidade e isenção do juiz (...)”, deixando, no entanto, claro que, no caso, a concreta dimensão normativa declarada inconstitucional não se verificava no caso.
Tendo como parâmetros de constitucionalidade as normas do artigo
32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP, o aresto conclui no sentido da não inconstitucionalidade (...).
É ainda na mesma versão originária que o artigo 40.º do CPP vem a ser objecto de pronúncia de constitucionalidade no Acórdão n.º 338/99 (inédito), estando então em causa uma interpretação da norma constante daquele preceito legal em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório dos arguidos, lhes decretou a prisão preventiva.
O acórdão salienta, desde logo, a diferença substancial entre o caso em apreço (a dimensão normativa do artigo 40.º do CPP cuja aplicação fora recusada na decisão recorrida por inconstitucionalidade) e o que determinara a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, no citado Acórdão n.º 186/98 – neste estava em causa uma dupla intervenção sucessiva do juiz na fase de inquérito e, no caso, uma intervenção isolada – evidenciando que tal acórdão expressamente alerta “para a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria lógica argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção reiterada ou repetida” e “de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva prisão preventiva”, mas “ter, em data posterior, já bem próximo da data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva”.
Seguindo a tese que fizera vencimento nos acórdãos anteriores, o Acórdão n.º 338/99 reitera que “não é qualquer intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e imparcialidade – ou a confiança do arguido e do público nessa mesma independência e imparcialidade – em termos de dever considerar-se que a norma que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição”, dando como exemplos a ordem de uma busca domiciliária (caso versado pelo Acórdão n.º
114/95) ou o despacho de manutenção da prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido (caso do Acórdão n.º 29/99).
Conferindo, como na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, importância decisiva, para aferir da constitucionalidade da norma (ou de uma sua interpretação) do artigo 40.º do CPP, a um critério assente na frequência, intensidade ou relevância da intervenção do juiz no inquérito, o acórdão conclui que não enferma de inconstitucionalidade a norma recusada em termos de permitir que intervenha no julgamento o juiz que se limitou a, findo o primeiro interrogatório do arguido detido, decretar a prisão preventiva, sem qualquer outra intervenção no decurso do inquérito.
Finalmente, o Acórdão n.º 423/00, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48.º volume, págs. 243 e seguintes, versou sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40.º do CPP, já na redacção dada pela Lei n.º 59/98, na interpretação que permite a intervenção como julgador do juiz que na fase de inquérito procedeu ao primeiro interrogatório do arguido, determinando a respectiva libertação mediante a adopção de medidas de coacção não privativas de liberdade e posteriormente as manteve.
Uma vez mais, seguindo a fundamentação dos acórdãos anteriores, o Tribunal Constitucional considerou que aquela primeira intervenção do juiz no inquérito, “numa fase bastante embrionária do processo”, em que, citando o alegado pelo Ministério Público, “carece ostensivamente de sentido sustentar que o juiz formulou logo aí uma convicção segura sobre a culpabilidade da arguida”, não permite “que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de imparcialidade e isenção ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência”.
E o mesmo se concluiu, considerando aquela intervenção em conjugação com a que o juiz posteriormente teve – manutenção das medidas de coacção decretadas.»
Seguindo esta linha de orientação, o citado Acórdão n.º 297/2003, não julgou inconstitucional a norma do artigo 40.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que permite intervir em julgamento o juiz que, no início do inquérito, interroga os arguidos que lhe são apresentados detidos e decreta a prisão preventiva desses arguidos, autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária.
5. Ora, a situação em causa nos presentes autos, sem prejuízo de igualmente fazer apelo aos princípios da independência e da imparcialidade do julgador ou da confiança do público nessa imparcialidade, situa-se num plano diferente. É que, enquanto naqueles casos o que se discute é o impedimento do juiz de julgamento por ter intervindo na prática de actos processuais na fase do inquérito ou de instrução, estando em causa a estrutura acusatória, aqui o enfoque da questão reside unicamente no impedimento do juiz de julgamento, por ter participado num anterior julgamento no mesmo processo que foi anulado por não ter sido efectuada a gravação da prova prestada oralmente em audiência.
Convém salientar, como refere o Ministério Público nas suas alegações, que, no caso concreto, não está em causa a aplicação dos artigos
426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal – que só são convocadas quando o tribunal ad quem julgue verificados vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto pelo tribunal recorrido, tipificados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal –, mas tão-só a mera anulação do processado a partir de determinado acto – no caso, o despacho que indeferir a gravação da prova –, em consequência de ter ocorrido uma nulidade processual, susceptível de reflexamente se repercutir nos ulteriores termos da causa, incluindo o próprio julgamento.
Os vícios tipificados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, reportam-se a vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto – insuficiência ou contradição dos factos e razões que suportam a própria decisão –, ou de erros ostensivos ou patentes na valoração da prova, que pela sua natureza e gravidade constituem verdadeira nulidade de sentença, justificando o reenvio para julgamento noutro tribunal.
Já assim não é quando a anulação do julgamento decorre, não por vícios intrínsecos e lógicos do conteúdo da própria decisão, mas quando a mesma
é ditada reflexamente por via da anulação dos actos posteriores em consequência do cometimento de uma nulidade decorrente da tramitação da causa.
Tanto basta, por serem diferentes as situações contempladas no artigo 426.º do Código de Processo Penal, para os casos de reenvio, e a dos presentes autos, para que não se mostre violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, existindo um fundamento material bastante que justifica a diferença de tratamento.
6. Também não se vê na não verificação do referido impedimento qualquer limitação dos recorrentes ao acesso ao direito e aos tribunais, tal como o consagra o n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República, e a jurisprudência do Tribunal Constitucional pacificamente vem reconhecendo, estando, igualmente, intocável o direito ao recurso, consagrado na Lei Fundamental.
Deste modo, não implicando a situação em causa afectação da imparcialidade objectiva do juiz, igualmente não se mostra posta em causa a independência dos tribunais, consagrada no artigo 203.º da Constituição, assim como não ocorre a violação de qualquer direito fundamental tutelado dos recorrentes.”
Os fundamentos desenvolvidos para alicerçar o juízo de não inconstitucionalidade, contido no Acórdão n.º 399/2003, são transponíveis para o presente caso, apesar da circunstância de ali a causa da repetição do julgamento ter sido a omissão da documentação das declarações prestadas em audiência e de aqui constituir um efeito da revogação, em recurso interlocutório subido imediatamente e em separado, de decisão que determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido, ora recorrente. Nestes dois casos, diferentemente do que sucede quando a causa do reenvio é a procedência dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, não foi posto em causa – nem chegou a ser apreciado – o conteúdo da decisão condenatória, quer em sede de matéria de facto, quer em sede de matéria de direito, nem sequer a coerência lógica da sentença, mas aspectos exteriores à mesma (embora com possibilidade de nela se repercutirem), como a documentação da prova ou a atendibilidade da contestação e a produção de prova requerida pelo arguido, o que terá estado na base do entendimento do legislador de que, nestas hipóteses, nada obsta a que a repetição do julgamento seja feita pelo mesmo tribunal. E, na mesma linha, há que concluir não ser de considerar como desrespeitadora do princípio da imparcialidade do julgador a possibilidade de intervenção dos mesmos juízes (ou de parte deles) que participaram no primeiro julgamento.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não constituir, por si só, motivo de recusa da intervenção de juízes em novo julgamento a sua participação em anterior julgamento, que veio a ser considerado consequentemente inválido por força da revogação, em recurso, de despacho que determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao presente recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2004. Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos