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Processo n.º 120/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, apresentou em 29 de Junho de 2003 requerimento, subscrito por si, de recurso do acórdão que o condenara no processo comum colectivo n.º 156/00, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde. Este recurso não foi recebido, por despacho proferido nesse Tribunal, com fundamento em que, “muito embora ao arguido tenha sido nomeado defensor, o certo é que o recurso interposto não vem por ele subscrito”, dispondo o artigo 32º, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do C.P.P., que é obrigatória a constituição de advogado nos recursos. O recorrente reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, logo dizendo que “interpretada e aplicada com o sentido de não admitir em processo penal um recurso de um acórdão condenatório subscrito pelo próprio arguido e não por advogado, a norma do art. 32º, n.º 1, alínea c), do CPC é inconstitucional”. Por despacho datado de 12 de Janeiro de 2004, o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a reclamação. Pode ler-se na fundamentação desta decisão:
«(…) Começo por salientar que o simples requerimento de interposição de recurso não carece de ser subscrito por Advogado, podendo sê-lo pelo próprio arguido. Já a motivação tem de o ser obrigatoriamente, por força do preceito citado no despacho reclamado. E assim, se o recurso puder ser interposto sem motivação, como é o caso de o recurso por declaração na acta, pode ser interposto pessoalmente pelo arguido
(art. 411º, n.º 2, do C.P.P.). A motivação, apresentada no prazo de 15 dias, é que tem de ser subscrita por Advogado. Fora dessa hipótese, o requerimento pode ser subscrito pelo arguido, mas a motivação que tem de o acompanhar tem de ser subscrita por Advogado. Se o não for, a motivação é inexistente, e o recurso não pode ser recebido por falta de motivação – art. 414º, n.º 2, parte final. No caso dos autos, como a motivação não foi subscrita por Advogado, ela não existe e o recurso não pode ser recebido.
É manifesto que a exigência da intervenção de Advogado, que, aliás, assiste obrigatoriamente o arguido em todo o processo, na fase do recurso em que já se insere a motivação, não viola qualquer dos preceitos citados pelo reclamante. Aliás, em processo penal, nem mesmo o arguido advogado pode defender-se a ele próprio. A defesa não é uma actividade necessariamente anacrónica, em que tudo se tem de admitir. O arguido tem todo o interesse em obstruir a acção da justiça para, seja por que forma for, evitar a condenação. Para ele e para o efeito vale tudo e nada se lhe exige. Por isso, impõe a Lei a intervenção de Advogado, técnico com formação adequada e vinculado à sua deontologia, para orientar a defesa – não para obstruir a justiça, mas para colaborar na sua aplicação e na descoberta da verdade, pelo prisma mais favorável ao arguido, mas sempre com este limite. A não exigência de Advogado permitiria transformar os processos no “vale tudo”, o que nenhum dos preceitos citados pelo reclamante pretende. Se o Advogado não defende, de harmonia com a Lei, a sua consciência e deontologia, o arguido que assiste, é questão a ser decidida pela Ordem dos Advogados, sendo o Tribunal a isso alheio. Repare-se, finalmente, embora aqui sem interesse, que a tese do reclamante abriria as portas a toda a espécie de procuradoria clandestina que a Lei pune e a Ordem dos Advogados se tem empenhado em combater. Nestes termos, indefiro a reclamação. Não se fixa taxa de justiça por ainda não estar legitimada nos autos a intervenção do Sr. Advogado como defensor do arguido, nem mesmo comprovado que este tenha desejado ou até aceite essa intervenção. Haverá ainda a decidir se o arguido tem direito de escolher um defensor oficioso diferente do indicado pela Ordem dos Advogados e está em exercício, e com que limites, pois até se pode colocar a questão de ele escolher um dos Açores, tendo os dinheiros públicos de suportar as despesas inerentes. Só se conheceu já da reclamação por se tratar de arguido preso e o protelamento do processo poder criar problemas de prazo de prisão preventiva.»
2.O recorrente veio interpor desta decisão o presente recurso de constitucionalidade, nos termos do “art. 280º, n.º 1, alínea b), da CRP e art.
70º, n.º 1, al. b), e n.º 3, da LTC e ao abrigo do art. 72º, n.º 1, al. b), deste mesmo diploma”, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da
“norma do art. 32º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, quando aplicada em processo penal, ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal, quando interpretada nos supra indicados termos em que o fez a decisão recorrida, por violação dos arts. 2º, 20º, n.º 1 e n.º 4, 32º, n.º 1, 18º, n.º 2 e n.º 3, 202º, n.º 1, 203º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa”. Notificado para alegar, o recorrente concluiu nos seguintes termos:
«I – A decisão do Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra não admite recurso ordinário, nos termos do art. 405º, n.º 4, do Código de Processo Penal. II – Recorre-se com fundamento no art. 280º, n.º 1, alínea b), da CRP e art.
70º, n.º 1, al. b), e n.º 3, da LTC e ao abrigo do art. 72º, n.º 1, al. b), deste mesmo diploma. III – Pretende-se que seja declarada inconstitucional a norma do art. 32º, n.º
1, al. c), do Código de Processo Civil, quando aplicada em Processo Penal, ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal, com a supra indicada interpretação que dela fez o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra na decisão recorrida. IV – Segundo o entendimento do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, “O recurso penal de decisão condenatória a prisão efectiva que não seja subscrito por advogado é sempre de rejeitar, mesmo tratando-se de arguido preso, sem necessidade de se averiguar as causas da ausência de representação nem de convidar o recorrente a suprir essa pretensa deficiência formal”. V – Esta solução traduz-se num violento e injustificável sacrifício dos mais elementares direitos de auto-defesa do arguido preso, nomeadamente o de impugnar todas e quaisquer decisões judiciais de 1ª instância que se traduzam na aplicação de uma pena privativa da liberdade. VI – E tudo em nome de considerações formalistas que põem de lado alguns dos princípios mais sagrados da ordem jurídica portuguesa: Estado de Direito, duplo grau de jurisdição, dignidade da pessoa humana, proibição do excesso e realização da Justiça. VII – A exigência de patrocínio por parte de advogado é uma medida que visa favorecer o arguido em processo penal e não pode ser interpretada no sentido de o prejudicar. VIII – No caso dos autos deveria o recorrente ter sido convidado a regularizar a ausência de representação forense, sendo-lhe concedido novo prazo para esse efeito. IX – A referida interpretação do artigo 32º, n.º 1, al. c), do CPC, não pode deixar de ser considerada como inconstitucional por violação flagrante dos arts.
2º, 20º, n.º 1 e n.º 4, 32º, n.º 1, 18º, n.º 2 e n.º 3, 202º, n.º 1, 203º e
204º, todos da Constituição da República Portuguesa. X – A decisão recorrida viola ainda o art. 6º, n.º 3, alínea c), da CPDHLF. XI – A inconstitucionalidade daquela norma foi suscitada oportunamente pelo recorrente na fundamentação e nas conclusões da reclamação efectuada para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de cujos autos foi tirada a decisão recorrida. XII – Torna-se, assim, imperiosa uma repristinação constitucional da norma do art. 32º, n.º 1, al. c), do CPC, em conformidade com os princípios constitucionais de um Estado de Direito Democrático, no respeito pelos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. XIII – E tal repristinação só se conseguirá se este Tribunal Constitucional proferir uma decisão declarando que «o recurso penal interposto por arguido preso, impugnando decisão condenatória a prisão efectiva, que não seja subscrito por advogado, não pode ser rejeitado sem que antes se convide o recorrente a suprir a falta de representação e corrigir eventuais deficiências do mesmo». XIV – Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do art.
32º, n.º 1, al. c), do CPC com a consequente projecção dos respectivos efeitos a nível da decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de modo a que seja admitido o recurso interposto pelo recorrente do acórdão do Tribunal Judicial de Mangualde, concedendo-se um prazo ao recorrente para suprir a falta de representação, bem como corrigir eventuais vícios de forma ou deficiências do mesmo. Se assim se fizer, será feita JUSTIÇA.” O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio concluir do seguinte modo nas suas contra-alegações:
«1 – São questões autónomas e diferenciadas as que se traduzem em apurar da constitucionalidade da norma que impõe o patrocínio obrigatório ao arguido-recorrente, no que toca à prática de actos que envolvem discussão de matéria de direito, e da eventual inconstitucionalidade das normas ou interpretações normativas que atribuem carácter definitivo e irremediável a tal deficiência de um acto processual, não prevendo o convite ao recorrente para constituir advogado, e julgando, sem mais, o acto praticado precludido.
2 – O recorrente, ao suscitar a questão de constitucionalidade “durante o processo”, apenas a reportou à primeira dimensão normativa, apesar de ser previsível a eventualidade de o Presidente da Relação aderir à solução, drasticamente cominatória, seguida na 1ª instância – não sendo, deste modo, possível ao recorrente que não cumpriu o ónus de suscitação atempada ampliar, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, o objecto deste à segunda questão de constitucionalidade, não tempestiva e adequadamente colocada à apreciação da decisão recorrida.
3 – É manifestamente improcedente a questão de constitucionalidade colocada quanto à aplicação, em processo penal, da exigência de patrocínio judiciário do arguido, decorrente do preceituado no artigo 32º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, “desligada” da questão das eventuais cominações para o acto deficientemente praticado (e decorrentes do estipulado, nomeadamente, no artigo
33º do Código de Processo Civil).» Notificado para, querendo, se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente não apresentou qualquer resposta. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso de constitucionalidade vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo-se a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 32º, n.º
1, alínea c), do Código de Processo Civil, quando aplicada em processo penal por força do artigo 4º do Código de Processo Penal. Dispõe aquele artigo 32º, n.º 1, alínea c), que “É obrigatória a constituição de advogado (…) c) Nos recursos e nas causas propostas nos tribunais superiores.” No presente caso, o arguido pretendeu interpor um recurso subscrito por si mesmo, recurso, esse, que incluía logo uma motivação (“fundamentação do recurso”) e que não foi recebido por não vir subscrito por advogado. Para o arguido, ora recorrente, o artigo 32º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicado na decisão recorrida, é inconstitucional com a interpretação nele perfilhada, isto é, como referiu logo no requerimento de recurso (fls. 38, verso), a interpretação de que é obrigatória a constituição de advogado nos recursos e que o recurso que não seja subscrito por “advogado é sempre de rejeitar, mesmo tratando-se de arguido preso, sem necessidade de se averiguar as causas da ausência de representação nem de convidar o recorrente a suprir essa pretensa deficiência formal”. Justamente por isso, o recorrente sustenta que deveria “ter sido convidado a regularizar a ausência de representação forense, sendo-lhe concedido novo prazo para esse efeito”, terminando as alegações pedindo que, em consequência do provimento do recurso de constitucionalidade, seja admitido “o recurso interposto pelo recorrente do acórdão do Tribunal Judicial de Mangualde, concedendo-se um prazo ao recorrente para suprir a falta de representação”.
4.Importa começar por delimitar o objecto do recurso, confrontando a norma impugnada pelo recorrente com as normas aplicadas na decisão recorrida, uma vez que não só o Ministério Público, nas suas contra-alegações, sustentou que a questão da consequência de imediata rejeição do recurso, sem convite para suprir a falta, não pode integrar o objecto do presente recurso, como logo o próprio Presidente do Tribunal da Relação recorrido, no despacho de admissão do recurso de constitucionalidade, afirmou que “não interpretei nem apliquei expressamente a norma com o sentido que o recorrente afirma a fls. 38 verso, in fine”, “nem tão-pouco o recorrente suscitou a questão que aí refere”, apenas admitindo o recurso por uma “razão de celeridade”. Consultando a decisão recorrida, verifica-se que, segundo esta, o recurso poderia ter sido interposto pelo arguido se o fosse sem motivação (como é o caso de o recurso por declaração na acta). Mas a motivação desse recurso, a apresentar no prazo de 15 dias, teria de ser subscrita por advogado, devendo o recurso ser imediatamente rejeitado se o não for, pois, nesse caso, deveria entender-se que faltava a motivação: o requerimento pode ser subscrito pelo arguido, mas a motivação que tem de o acompanhar tem de ser subscrita por advogado, e “se o não for, a motivação é inexistente, e o recurso não pode ser recebido por falta de motivação”. A decisão recorrida fundamenta esta interpretação, não logo no preceito impugnado pelo recorrente – o artigo 32º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil –, mas antes nos artigos 411º, n.º
2, e 414º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Penal. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário o preenchimento de três requisitos específicos para dele se poder tomar conhecimento, a saber: o esgotamento dos recursos ordinários que no caso caibam, que a norma impugnada tenha sido aplicada pela decisão recorrida, como ratio decidendi, e que a inconstitucionalidade da norma tenha sido suscitada durante o processo, isto é, perante o tribunal recorrido (como resulta do artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional e está em consonância com a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, isto é, para reexame de uma decisão sobre a questão de constitucionalidade). Ora, no presente caso, consultando a reclamação deduzida para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 2 e segs. dos autos), sobre a não admissão do recurso para o Tribunal da Relação, e que veio a dar origem ao despacho recorrido, verifica-se que nela o reclamante apenas suscita a inconstitucionalidade do artigo 32º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por exigir o patrocínio do arguido por um advogado, alegando ser tal disposição, aplicada no processo penal, incompatível com o direito do arguido de se defender a si próprio. Porém, apesar de ter já sido confrontado com a não admissão do seu recurso, sem ter sido convidado a suprir a falta de patrocínio judiciário, não fez qualquer referência, perante o Presidente do Tribunal da Relação, ao efeito preclusivo imediato da falta de patrocínio – questão, esta, que apenas veio a levantar depois (e imputando-a ao artigo 32º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal), no requerimento de recurso de constitucionalidade e nas alegações deste recurso. E, como correctamente notou o Ministério Público, são questões diversas, por um lado, a de saber se é constitucionalmente admissível a exigência de patrocínio judiciário para apresentação do requerimento e/ou da motivação de recurso, e, por outro lado, a de apurar se, em caso de resposta afirmativa a esta primeira questão, é inconstitucional a atribuição à falta de subscrição da motivação de recurso por advogado de um imediato efeito preclusivo, mesmo para arguidos presos, sem necessidade de convite para suprimento da deficiência. Não tendo a inconstitucionalidade de tal dimensão normativa, relativa ao imediato efeito preclusivo – aliás, reportada na decisão recorrida a preceitos do Código de Processo Penal (artigos 411º, n.º 2, e 414º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Penal) e não à citada disposição do Código de Processo Civil
–, sido suscitada durante o processo, apesar de o recorrente dispor dos elementos para tal (pois, repete-se, já tinha sido confrontado com a imediata não admissão do recurso, sem convite, na 1ª instância), não poderá agora o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso na medida em que se reporte à apreciação dessa dimensão. O objecto do presente recurso é, pois, tão-só a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 32º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicado em processo penal por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, na medida em que dele resulta a exigência de patrocínio judiciário para a apresentação da motivação de recurso em processo penal – isto, sem prejuízo de que, se esta questão vier a proceder (se for inconstitucional a própria exigência de patrocínio judiciário para a apresentação da motivação de recurso), ela terá evidentemente também consequências sobre a segunda (relativa ao imediato efeito preclusivo da falta de patrocínio).
5.A conformidade constitucional da exigência de patrocínio por parte de advogado em processo penal – pelo menos quando se trate de arguidos presos – é impugnada pelo recorrente com fundamento nos “direitos de auto-defesa do arguido preso, nomeadamente o de impugnar todas e quaisquer decisões judiciais de 1ª instância que se traduzam na aplicação de uma pena privativa da liberdade”, sendo aquela exigência “uma medida que visa favorecer o arguido em processo penal e não pode ser interpretada no sentido de o prejudicar”. Essa exigência violaria, assim, várias normas constitucionais (indicam-se os artigos 2º, 20º, n.ºs 1 e 4, 32º, n.º 1, 18º, n.ºs 2 e 3, 202º, n.º 1, 203º e 204º da Constituição), invocando ainda o recorrente, em seu abono, o artigo 6º, n.º 3, alínea c), da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nos termos do qual o “acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: (…) c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem”. A questão da constitucionalidade da exigência de patrocínio judiciário – ainda que não possa considerar-se manifestamente improcedente, como sustenta o Ministério Público – foi já tratada por este Tribunal, o qual se pronunciou por várias vezes, em diversos contextos, no sentido da não inconstitucionalidade dessa exigência. Isto, sendo certo, porém, que, no presente caso, tal exigência, em processo penal, se reporta apenas à actuação perante uma instância de recurso e à apresentação da motivação deste. Assim, disse-se, designadamente, no Acórdão n.º 578/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51º vol., pág. 655):
«(…)
4. De entre as várias garantias postuladas pelo artigo 32º do Diploma Básico, avultam, no caso, as prescrições ínsitas nos seus n.ºs 1 e 3 (sendo certo que aquele n.º 3 não deixa, como se assinalou no Acórdão deste Tribunal n.º 512/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40º volume, pp. 557 a 564, de se assumir
“como expressão e concretização das garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar”). Assim, mister é saber se a já mencionada interpretação deve ser considerada como postergadora das garantias de defesa em processo criminal, nomeadamente por ofender o direito de livre escolha do defensor por banda do arguido. Tratando aquele artigo de garantias fundamentais em processo criminal, não poderá deixar de se ter em consideração, na respectiva interpretação, o que se prescreve no nº 2 do artigo 16º da Constituição. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 138), “o recurso à Declaração, como base interpretativa e integrativa dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais, não dispensa o intérprete e aplicador do direito da necessidade de recurso, em primeiro lugar, de acordo com as regras hermenêuticas, à ordem constitucional dos direitos fundamentais”, sendo que “a declaração não assume a natureza de direito constitucional, visto que a Constituição não efectua aqui uma recepção da Declaração enquanto tal, antes remete para ela como parâmetro exterior”, finalizando com a asserção de que “de resto, a questão é praticamente irrelevante, pois a Constituição não só consumiu a Declaração – sendo muitas das disposições constitucionais reprodução textual, ou quase textual, de disposições daquela – mas também inclui direitos não referidos na Declaração” (cfr., ainda, Moura Ramos, ob. e local citados [“A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Sua Posição Face Ao Ordenamento Jurídico Português”, in Da Comunidade Internacional e do seu Direito, Estudos de Direito Internacional Público e Relações Internacionais, 1996, maxime, págs. 39 e segs. e 70 e segs.] e nota 128 a págs. 73). Todavia, não deixa, como é sabido, de haver, na doutrina, divergência sobre o alcance do citado artigo 16º, n.º 2, da Constituição, pois que alguma dela sustenta que existe uma real
“constitucionalização” da Declaração Universal dos Direitos do Homem. De todo o modo, o que se torna inquestionável é que na aludida Declaração se não surpreende qualquer disposição que, directa ou indirectamente, próxima ou remotamente, tenha a ver com a questão da “auto-defesa”.
4.1. Não deixa de ser certo, todavia, que na alínea c) do n.º 3 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem se estipula que o acusado tem, como mínimo, e entre outros, o direito a defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha... . Comentando aquela alínea, Ireneu Cabral Barreto (in A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, pp. 167 e segs.) refere que as garantias nela oferecidas apresentam-se em três níveis, sendo um deles o da autodefesa do arguido (“Defender-se a si próprio”, nas palavras do anotador), dizendo, em determinada altura (pág. 168) que “por consequência, um acusado que não quer defender-se a si próprio, deve poder recorrer aos serviços de um advogado da sua escolha”. E, mais adiante:-
“(...) Portanto, só os dois primeiros direitos se apresentam em alternativa, deixados à opção do acusado; poderá esta escolha ser objecto de restrições? Da leitura do Acórdão no caso Engel e outros, poderia deduzir-se que o acusado que se encontra apto a defender-se por si próprio não terá direito a escolher um defensor; parece preferível, no entanto, entender-se que este direito de escolha de um advogado é deixado à discrição do acusado que, não tendo meios para o remunerar, será assistido por um defensor oficioso. O direito do acusado de se defender por si próprio não é um direito absoluto, podendo os Estados, pela via legislativa ou por decisão judicial, impor a obrigação de a defesa ser assegurada por um advogado. Assim, é possível que a representação nas instâncias de recurso seja assegurada por um advogado. Deixa-se aos Estados a eleição dos meios de defesa do acusado.
(...) Se, podendo fazê-lo, o acusado não assume a sua defesa, o acusado terá, repete-se, o direito à assistência de um advogado da sua escolha.
(...)” De outro lado, disposição idêntica à da transcrita parte da alínea c) do n.º 3 do art.º 6º se retira da alínea d) do n.º 3 do art.º 14º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, onde se prescreve que qualquer pessoa acusada de infracção penal tem direito a defender-se a si própria (ou ter a assistência de um defensor da sua escolha).
5. Significará isto que os direitos fundamentais consistentes no asseguramento da totalidade das garantias de defesa em processo penal e na liberdade de escolha de defensor por parte do arguido impõem que este (naquele tipo de processo), ao menos sendo advogado, se o desejar, possa defender-se a si mesmo? A esta questão responde o Tribunal negativamente. Efectivamente, a tese do recorrente só seria de aceitar se se partisse de uma posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado (regularmente inscrito na respectiva Ordem), a sua “auto-representação” no processo criminal contra si instaurado representasse, de modo objectivo, um melhor meio de se alcançar a sua defesa e se a lei processual penal não reconhecesse ao arguido um conjunto de direitos processuais estatuídos, verbi gratia, no art.º 61º, n.º 1, e 63º, n.º 2, [do Código de Processo Penal] quanto a este último avultando o de poder, pelo mesmo arguido. ser retirada eficácia a actos processuais praticados pelo seu defensor em seu nome, se assim o declarar antes da decisão a tomar sobre tal acto. E é justamente dessa posição que se não pode partir. Não se nega que, na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente, este possa entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse prosseguida pelo próprio na qualidade de “advogado de si mesmo”, do que se fosse confiada a um outro advogado. Só que, como este Tribunal já teve oportunidade de salientar (cfr. citado Acórdão n.º 252/97) “«há respeitáveis interesses do próprio interessado, a apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal», sendo certo que, «mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus interesses seja feita de modo desapaixonada»”, ou, como se disse no Acórdão n.º
497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º volume, pp. 227 a
247), “mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se pode afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 85), que «às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico)
[...] que se fazem mister à boa condução do pleito»”. A opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele, não se vê que seja contraditada pela Constituição. O agir desapaixonado torna-se, desta arte e de modo objectivo, uma garantia mais acrescida no processo criminal, o que só poderá redundar numa mais valia para as garantias que devem ser prosseguidas pelo mesmo processo, sendo certo que, como se viu acima, ao se não poder silenciar a corte de outros direitos consagrados ao arguido pela lei adjectiva criminal, isso redunda na conclusão de que se não descortina uma diminuição constitucionalmente censurável das garantias que o processo criminal deve assegurar. De outro lado, como resulta da transcrição do acima citado comentador da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o preceituado na alínea c) do nº 3 do art.º 6º não impede os Estados aderentes de imporem, por via legislativa, a obrigação da representação dos arguidos por intermédio de advogado. Sequentemente, não se vislumbra que a interpretação normativa em causa seja colidente com qualquer preceito ou princípio constante da Lei Fundamental.» Estas considerações – bem como as expendidas, designadamente, nos citados Acórdãos n.ºs 252/97 e 497/89 – conduzem à conclusão de que a norma em apreço não é inconstitucional, na medida em que exige o patrocínio por advogado para a subscrição da motivação de um recurso em que se podem discutir (pelo menos também) questões de direito (no caso, o recurso baseava-se sobretudo em erro notório na apreciação da prova, mas não deixava igualmente de se defender o cúmulo jurídico de penas). A norma em causa, ao exigir patrocínio por advogado para a subscrição da motivação de recurso em processo penal, visa garantir a intervenção (no caso, perante um tribunal de recurso) de profissionais devidamente qualificados, assegurando a devida preparação técnica e o respeito pelos princípios deontológicos da profissão, cujo cumprimento cabe à Ordem dos Advogados assegurar, bem como, por outro lado, assegurar no recurso uma defesa, além de tecnicamente preparada, desapaixonada, serena e desinteressada do arguido, não contendo, pois, qualquer ofensa ou restrição inconstitucional às garantias de defesa ou a outras normas ou princípios constitucionais. Tal conclusão decorre, aliás, a partir da fundamentação do aresto citado, desde logo, por um argumento de maioria de razão – e, portanto, mesmo para quem não possa acompanhar sem reservas o juízo sobre a conformidade constitucional da exigência de patrocínio judiciário para a defesa na 1ª instância, que foi formulado no Acórdão n.º 578/2001. Na verdade, diversamente do que se passava na situação que deu origem a este aresto, no presente caso está apenas em questão, por um lado, a exigência de patrocínio por advogado, não para a defesa de arguido (e com formação jurídica) na 1ª instância, designadamente na audiência de julgamento, mas perante uma instância de recurso – exigência que, como se referiu no aresto citado, não é afastada pelo invocado artigo da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (sendo, aliás, de notar que vários países europeus dispõem mesmo de sistemas que limitam os advogados credenciados a recorrer para tribunais superiores) –, em que o processo é, aliás, inteiramente escrito. E, por outro lado, tal exigência de patrocínio por advogado refere-se apenas à subscrição da motivação de recurso – e não já à interposição do mesmo –, motivação, esta, na qual se podem discutir também questões de direito. Conclui-se, pois, que a norma em questão não viola a Constituição, devendo negar-se provimento ao recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso. Custas pelo recorrente, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos