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Processo n.º 163/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 21 de Abril de 2004 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso, com o seguinte teor:
«1. A., melhor identificada nos autos, recorreu, junto do Tribunal Tributário de
1ª Instância de Viseu, da decisão do Chefe de Serviço de Finanças de ----------, de 8 de Agosto de 2002, que mandou citar e contra si instaurar processo de execução fiscal e ordenar a realização dos actos processuais subsequentes. Invocou a recorrente, para o efeito, a incompetência em razão da matéria do Serviço de Finanças, para instaurar o processo de execução para cobrança coerciva de créditos do Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola
(INGA), bem como a falta de requisitos essenciais do título executivo. Por sentença datada de 22 de Janeiro de 2003, o Tribunal julgou “improcedente a arguida excepção dilatória de incompetência do serviço de finanças”, julgando, no entanto, “procedente a nulidade por falta de requisitos essenciais do título executivo”, e anulando, consequentemente, “todo o processo executivo”. Entretanto, o INGA veio aos autos pedir a aclaração da sentença, e sua eventual reforma, por não ter sido notificado, como exequente, quanto à reclamação apresentada pela recorrente. Por despacho de 2 de Abril de 2003, o Tribunal julgou improcedente a “arguida nulidade por falta de notificação do INGA”, indeferindo o “demais requerido”.
2. Inconformado, o INGA interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, concluindo as suas alegações no sentido da revogação da decisão recorrida e da sua substituição “por decisão que reconheça o INGA como parte legítima, declarando-se a nulidade da sentença que aceitou a reclamação da executada, [e] determinando-se a notificação da reclamação ao INGA”. Isto porque:
«1. O INGA é a entidade exequente, sendo-lhe permitido recorrer à Execução Fiscal (art. 28.º do Dec.-Lei n.º 78/98 de 27-3).
2. O INGA é uma pessoa colectiva de direito público, com capacidade judiciária, sendo representado em juízo pelo seu Conselho Directivo (art. 1.º e art. 12.º, al. l), do Dec.-Lei n.º 78/98).
3. A dívida exequenda não tem natureza tributária.
4. Nos Tribunais Tributários compete ao Representante da Fazenda Pública representar, “nos termos da lei”, quaisquer outras entidades públicas (art.
15.º, n.º 1, al. a), do CPPT).
5. Não existe qualquer norma que atribua ao RFP poderes para representar o INGA.
6. O INGA é assim parte legítima para intervir no processo de reclamação.
7. Ao não entender assim, o despacho recorrido fez errada aplicação do direito, o que constitui nulidade (art. 668.º do CPC).
8. Ao não se notificar o INGA da apresentação da reclamação, foram preteridas formalidades essenciais, que tiveram influência na decisão da causa, provocando a nulidade de todos os actos subsequentes (art. 201.º do CPC).» Por acórdão datado de 10 de Dezembro de 2003, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu “conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se em consequência procedente a arguida nulidade por falta de notificação do INGA, anulando-se todo o processado a partir da reclamação apresentada pela reclamante A. (art. 201.º do CPC), notificando-se o INGA para responder, e seguindo os autos os seus ulteriores termos legais”. Entendeu aquele Supremo Tribunal:
«Dispõe o art. 12.° do DL n.º 78/98, de 27-3 (que aprovou o Estatuto Orgânico do Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola – INGA):
“Compete ao Conselho Directivo:
(...) l) Representar o INGA em juízo ou fora dele, activa ou passivamente, podendo transigir ou confessar em qualquer fase dos processos ou comprometer-se em arbitragem. m) Constituir mandatários ou procuradores para a prática de determinados actos, definindo a extensão dos respectivos mandatos, e ainda designar representantes do INGA junto de outras entidades...”. O texto da lei é assim de meridiana clareza. A representação do Instituto em causa compete não à Fazenda Pública mas sim ao conselho directivo do INGA.
É certo que o INGA é uma pessoa colectiva de direito público (art. 1.º do citado Dec.-Lei), e que cabe ao representante da Fazenda Pública representar, para além da administração tributária, quaisquer outras entidades públicas no processo judicial tributário e no processo de execução fiscal (art. 15.º, al. a), do CPPT). Mas isto nos termos da lei. E não há lei que atribua à FP a representação do INGA nestes processos de execução fiscal. Pelo contrário, o diploma legal citado (art. 12.º do DL n.º 78/98) aponta quem é o representante do INGA: o seu conselho directivo. E isto obviamente em qualquer tipo de processo, mesmo no de cobrança de dívidas, da competência dos tribunais tributários (art. 28.º do já referido Dec.-Lei). E o facto do Dec.-Lei n.º 78/98 ter sido publicado na vigência do CPT, onde segundo o Mm.º Juiz a representação do INGA cabia à FP, não pode ter a leitura que o Mm.º Juiz lhe dá, ou seja, “que não existem razões que levem a alterar a situação tal como estava regulada no CPT”. Na verdade, a lei foi alterada. E essa alteração tem consequências legais. Ou seja, a partir da vigência do citado Dec.-Lei passou a ser da competência do conselho directivo do INGA a sua representação (em juízo ou fora dele) e não da FP. Aliás, no caso, a instauração do processo executivo ocorreu já na vigência do referido Dec.-Lei, pelo que a situação é aqui clara e inequívoca: a representação do INGA compete ao seu conselho directivo. A decisão do Mm.º Juiz não pode pois manter-se.»
3. É desta decisão que A. vem interpor, simultaneamente, recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo e para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“A., nos autos à margem identificados, notificada do teor do acórdão datado de
10 de Dezembro de 2003, inconformada, interpõe recurso para o pleno do STA e para o Tribunal Constitucional Requer: a V. Ex.ª se digne admitir o presente recurso, nos termos e para os legais efeitos.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas essa decisão não vincula este Tribunal, como prevê o n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que, entendendo-se que não é de conhecer do recurso, se lavra a presente decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo
78.º-A do mesmo diploma.
5. Como se deixou evidenciado, o requerimento de interposição do recurso (em simultâneo para o “Pleno do STA” e para o Tribunal Constitucional) não incluía qualquer dos elementos exigidos pelo artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Ainda assim, não é caso de recorrer ao n.º 6 (e n.º 5) desse normativo e proferir o despacho de aperfeiçoamento aí previsto, pela simples razão de que não poderia, em resposta a tal despacho, dar-se cumprimento à indicação de tais elementos de modo a preencher-se os requisitos indispensáveis para se poder tomar conhecimento de algum (um qualquer) dos tipos de recurso que as diversas alíneas do artigo 70.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, facultam – sendo, por isso, tal acto inútil. O que, por exclusão de partes, facilmente se demonstra. Assim, não poderia conhecer-se de recurso ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do citado artigo 70.º porque não houve na decisão recorrida qualquer recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade. Não poderia, por outro lado, conhecer-se de recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do mesmo n.º 1 porque nenhuma norma foi impugnada como inconstitucional, em ocasião alguma do processo
– isto é, perante o tribunal recorrido. Não poderíamos, por outro lado, estar perante um recurso ao abrigo do disposto nas alíneas c), d) ou e) desse n.º 1 – e, ainda que estivéssemos, dele não se poderia tomar conhecimento – por não ter o tribunal recorrido procedido a uma recusa de aplicação de norma com fundamento em qualquer dos tipos de ilegalidade previstos nessas alíneas. Não poderia conhecer-se de recurso ao abrigo do disposto na alínea f) desse n.º 1, igualmente por, durante o processo, não se ter suscitado qualquer ilegalidade de norma alguma com algum dos fundamentos das alíneas c), d) ou e). E, finalmente, não poderia tratar-se de recurso ao abrigo do disposto nas alíneas g) ou h) do referido n.º 1 do artigo 70.º, por não ter havido aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal, nem poderia tratar-se de recurso ao abrigo do disposto na alínea i) do n.º 1 desse artigo 70.º, por não ter havido recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento em contrariedade com convenção internacional, ou a sua aplicação em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional. Assim liminarmente excluída a verificação dos pressupostos necessários ao conhecimento, em recurso de constitucionalidade, de uma qualquer questão de constitucionalidade normativa, qualquer que fosse a alínea do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual a recorrente viesse a declarar que havia interposto o recurso, inútil seria proferir um despacho de aperfeiçoamento de um requerimento que, aliás, só com dificuldade se poderia considerar apto a ser aperfeiçoado, na medida em que nele se não identificava sequer um dos vários elementos exigidos pelo artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Como se viu, o tribunal a quo não proferiu qualquer juízo de
(in)constitucionalidade ou (i)legalidade, nem foi confrontado com a necessidade de o fazer. Ora, sendo a intervenção do Tribunal Constitucional destinada à reaferição de um juízo de (in)constitucionalidade ou de (i)legalidade, e não existindo estes (ao menos implicitamente), fica prejudicada essa intervenção em recurso, pelo que dele não se pode chegar a conhecer, pese embora a decisão de admissão proferida no tribunal recorrido.»
2.Notificada desta decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«I. Expõe
1) A decisão reclamada enferma de erro sobre os pressupostos de facto, porquanto a recorrente invocou nos autos questão de inconstitucionalidade, no requerimento que apresentou em 21 de Março de 2003 (fls. ...), formulada nos seguintes termos: “A admissão do requerimento, do documento e da procuração juntados a fls.118 e ss. implicaria violação do disposto nos arts. 13°, 20°, 266° e 268° da Constituição”. Por outro lado,
2) A decisão reclamada enferma de erro sobre os pressupostos de direito, porquanto a norma resultante do disposto no n.º 6 do art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional é taxativa e não consente qualquer margem de discricionaridade ao relator: quando o juiz ou o relator do tribunal que admitiu o recurso de constitucionalidade não tiver feito o convite referido no n.º 5, o relator no tribunal constitucional terá, necessariamente, que formular esse convite. Pelo exposto,
3) É ilegal e por isso nula a, apesar disso douta, decisão reclamada. II. REQUER Termos em que, e nos demais do douto suprimento, requer a V. Exas. a anulação da decisão proferida pelo relator, com a consequente prolação do despacho previsto nos n.ºs 5 e 6 do art. 75º-A da LTC e a subsequente decisão sobre o conhecimento do objecto do recurso e as demais consequências legais.” O recorrido respondeu nos seguintes termos:
“1 – É inquestionável que a Recte., no seu requerimento de interposição de recurso, não satisfaz qualquer dos requisitos exigidos pelo art. 75°-A, da LTC.
2 – Aliás, o requerimento de interposição é tão dúbio, o que se diz com todo o respeito, que a Recte. não interpõe apenas um mas dois recursos. E com recurso à conjunção copulativa “e”, ou seja, os recursos são interpostos conjuntamente!
3 – O Tribunal recorrido admitiu um deles, mas ainda assim tal admissão é duvidosa, pois manifestamente o Recte. pretendia interpor dois em conjunto. Como tal, só em conjunto poderiam ser aceites.
4 – Como se disse, resulta do art. 75°-A que no requerimento de interposição está o Recte. obrigado a observar certos requisitos. O que manifestamente não fez.
5 – Resulta do n.º 5 do mesmo normativo que o recorrente será convidado a suprir deficiências se no requerimento de interposição não indicar alguns dos elementos exigidos.
6 – Ora o Recte. não indicou um único desses elementos: não falta algum, faltam todos.
7 – Ou seja, o legislador pretendeu, com a redacção do n.º 5, corrigir o que poderia estar deficiente; não é possível corrigir o que não existe.
8 – Como doutamente observou o Venerando Conselheiro-Relator, do que resulta do Acórdão recorrido e do requerimento de interposição do recurso, verifica-se que não existe a possibilidade de o recurso ser enquadrado em qualquer dos fundamentos do art. 70°.
8 – O convite ao aperfeiçoamento daquilo que não pode aperfeiçoar-se seria assim um acto inútil.
9 – E não obsta a tal asserção a tímida indicação ora feita pelo Recte., que em tempos tinha declarado ser inconstitucional a apresentação de um requerimento e documentos (?), e até a simples junção de uma procuração. Pasme-se!
10 – Tal afirmação é manifestamente excessiva e indemonstrada e não parece, com o devido respeito, suficiente para se fundamentarem recursos, transformando-se um processo que, pela sua natureza, deverá ser olhado com grande dignidade, em mero instrumento dilatório para atrasar o trânsito de decisões judiciais.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Consultando o teor da presente reclamação, verifica-se que ela não logra abalar os fundamentos em que se baseou a decisão sumária transcrita. Desde logo, é improcedente a alegação da reclamante de que teria suscitado uma questão de constitucionalidade, em termos que permitissem agora que o Tribunal Constitucional tomasse conhecimento de um recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, no passo transcrito pela reclamante, não se imputa qualquer inconstitucionalidade a qualquer norma, mas a uma actuação ou decisão judicial, nem sequer se indicando um preceito que se teria por inconstitucional. Ora, como se sabe, no nosso sistema de fiscalização concentrada de constitucionalidade, ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar, em via de recurso de constitucionalidade, a conformidade constitucional de normas, com exclusão das decisões ou actuações judiciais em si mesmas. Mantém-se, pois, a conclusão de que nenhuma norma foi impugnada como inconstitucional pela recorrente, em ocasião alguma do processo – isto é, perante o tribunal recorrido –, pelo que não se pode tomar conhecimento de um recurso interposto ao abrigo do referido artigo 70.º, n.º 1, alínea b) (que parece ter sido aquele que a recorrente pretendeu interpor).
4.Invoca a reclamante, em segundo lugar, que deveria ter sido convidada a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da referida Lei do Tribunal Constitucional, e que a omissão deste convite teria sido ilegal. Mas carece igualmente de razão. Desde logo, poderia dizer-se que tal n.º 5 se refere à situação de a reclamante
“não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, sendo certo que, como notou o recorrido, “não indicou um único desses elementos: não falta algum, faltam todos”. Mesmo admitindo, porém, que, também nesta situação – radicalmente lacunosa – é caso de efectuar o convite para aperfeiçoamento do requerimento de recurso previsto naqueles n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A, é seguro que tal convite não se justificará nem, muito menos, se imporá – antes, sendo um acto inútil, não deverá ter lugar – quando, pela análise dos autos, se deva logo concluir, sem dúvidas, que se não podem verificar os requisitos para se poder tomar conhecimento de nenhum dos recursos de constitucionalidade previstos nas diversas alíneas do artigo 70.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Tal convite não teria então qualquer sentido, pois não permitiria ultrapassar uma falta de verificação dos requisitos do recurso que é independente de qualquer incompletude do respectivo requerimento, e já não pode ser suprida por qualquer aperfeiçoamento deste requerimento.
É justamente este o caso presente, sendo certo, aliás, que a própria reclamante, ao invocar, na presente reclamação, que teria suscitado uma questão de inconstitucionalidade, apenas pode estar a pressupor que pretendia interpor um recurso do tipo previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como se viu, porém, não se verificam os requisitos indispensáveis para se poder tomar conhecimento deste tipo de recurso.
5.Pode, pois, deixar-se em aberto a questão de saber se aos referidos na decisão reclamada – que se confirmam –, acresce, ainda, outro fundamento para o Tribunal Constitucional estar impedido de tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade que a recorrente interpôs: o facto de ter sido simultaneamente interposto recurso pela recorrente para o “Pleno do STA”. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar a reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos