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Processo n.º 936/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 23 de Novembro de 2004 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto por A. do acórdão de 9 de Junho de 2004 do Tribunal da Relação do Porto, que rejeitou, “por ser manifesta a sua improcedência (art.º 420º, n.º 1, 1ª parte, do CPP)”, o recurso interposto por aquele da decisão do Tribunal Judicial de Bragança de 13 de Junho de 2003, pela qual fora negado provimento ao recurso de impugnação judicial da decisão do Governador Civil de Bragança que, face ao registo individual do condutor (recorrente), lhe aplicara sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 120 dias, pela prática de contra-ordenação prevista e punida no Código da Estrada (“condução de auto-ligeiro no IP 4 à velocidade de 162 Km/h, excedendo 72 Km/h a velocidade máxima, que é de 90 Km/h”). Essa decisão teve os seguintes fundamentos:
«(...)
2. O presente recurso foi admitido – em decisão que, como se sabe (artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal Constitucional
–, mas, analisados os autos, verifica-se que é de proferir decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por este Tribunal não poder tomar conhecimento do recurso.
3. Com efeito, começando pelo recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alíneas a) e c), da Lei do Tribunal Constitucional, é manifesto que se não verificam os requisitos para dele se poder tomar conhecimento, já que no acórdão recorrido se não detecta qualquer recusa, expressa ou implícita, de aplicação de uma norma com fundamento, seja na sua inconstitucionalidade (pressuposto do recurso previsto na citada alínea a)), seja na violação de lei com valor reforçado (pressuposto do recurso previsto na citada alínea c)). Muito menos se verificou aí qualquer recusa de aplicação das normas que, nos termos do requerimento do recurso, o recorrente pretende agora ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional – os artigos 412º e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Antes pelo contrário: esta última norma foi expressamente aplicada pelo acórdão recorrido, ao rejeitar o recurso com fundamento na sua manifesta improcedência. Não pode, pois, tomar-se conhecimento dos referidos recursos.
4. Resta o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da citada Lei do Tribunal Constitucional. Como se sabe, são requisitos específicos para se poder tomar conhecimento deste tipo de recurso de constitucionalidade que se tenha impugnado durante o processo a constitucionalidade de uma norma, que essa norma tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi, e que tenham sido esgotados os recursos ordinários dessa decisão. Por sua vez, nos termos do artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º só pode ser interposto “pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.” Como se afirmou já, por exemplo, no Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989), «este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de
‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.» No presente caso, não pode considerar-se verificada a exigência de suscitação da questão de constitucionalidade das normas impugnadas – designadamente, daquela que constituiu o fundamento decisivo para o acórdão recorrido, que foi o artigo
420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na parte em que determina a rejeição do recurso “sempre que for manifesta a sua improcedência”. Na verdade, no requerimento indicado pelo recorrente como a peça processual em que teria suscitado a questão de constitucionalidade (requerimento apresentado em resposta
à pronúncia do Ministério Público no sentido da rejeição do recurso por manifestamente improcedente) não se cita sequer o referido preceito do artigo
420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e antes se aborda a questão da rejeição liminar do recurso na óptica da verificação dos requisitos previstos no artigo 412º do mesmo Código. Pode ler-se nesse requerimento:
“(...) Já começa a ser um modus vivendi, o facto de o M.P., no seu douto Parecer, promover a rejeição ab initio da motivação dos recursos. Ora, sempre com o devido respeito, não podemos concordar, nem aceitar tal atitude dos dignos magistrados do M.P. O M.P., não sabemos qual o motivo, numa atitude concertada, limita-se em quase todos os processos a promover a rejeição do recurso, sendo certo que os recorrentes observam os requisitos legais exigidos. Até parece que não querem debruçar-se sobre a motivação do recurso, ou porque têm muitos processos para trabalhar, ou por puro relaxo, não respondem à motivação do recurso.
É que, já começa a ser cansativo, o facto de constantemente o M.P. promover a rejeição do recurso, sem mais. O Recorrente não consegue alcançar, com a devida vénia, a fundamentação do douto Parecer do M.P.. Efectivamente, todas as objecções levantadas pelo M.P. não têm cabimento, e, mais, são um claro desrespeito pelos direitos de defesa e de recurso do recorrente.
É que o Recorrente, ao contrário daquilo que afirma o M.P., cumpriu todos os requisitos do artigo 412º do C.P.P.. Portanto, quando o Recorrente é notificado para responder ao abrigo do artigo
417º, n.º 2, do C.P.[P.], nem queria acreditar. Como é possível pensar-se em rejeitar liminarmente o recurso, quando o Recorrente cumpre todos os requisitos legais? Tal violaria todos os princípios basilares do Processo Penal, ao não se conhecer o recurso. Em conclusão: a motivação de recurso do Recorrente está sintética, precisa, formal, rigorosa, meticulosa, e cumpre na íntegra todos os requisitos exigidos pelo Código de Processo Penal, pelo que deve ser aceite liminarmente o presente Recurso, e, a final, procedente, sob pena de apresentação de recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que, no caso de rejeição liminar da motivação do recurso, serão violados os direitos de defesa e de recurso do recorrente.” Como se salientou, e se pode verificar pela transcrição que antecede, não só o recorrente não refere o artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, como não trata da questão da constitucionalidade da rejeição do seu recurso por manifesta improcedência, com a qual havia sido confrontado – argumenta, antes, e apenas com base na verificação dos requisitos do recurso, nos termos do artigo
412º, n.º 1, do referido Código. Nem pode, pois, ver-se aqui qualquer alegação de inconstitucionalidade dirigida globalmente à solução normativa que permite a rejeição de recursos por manifesta falta de procedência – questão de constitucionalidade, essa, que, no entanto, sempre seria, ela própria, de considerar manifestamente infundada. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso.»
2.O recorrente veio reclamar desta decisão, dizendo que o faz “nos termos do n.º
4 do artigo 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”, com os seguintes fundamentos:
«Se não se verificam os requisitos do art. 70º, n.º 1, al. a) e c), da Lei do Tribunal Constitucional, para se poder tomar conhecimento do recurso, já o mesmo não acontece com o recurso interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 70º da citada Lei do Tribunal Constitucional. São requisitos específicos para se poder tomar conhecimento deste tipo de recurso de constitucionalidade, à luz da aludida al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei em apreço, que se tenha impugnado durante o processo a constitucionalidade de uma norma, que essa norma tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi. Ora, resulta implícito do requerimento apresentado pelo recorrente em resposta à pronúncia do Ministério Público no sentido de rejeição do recurso por manifestamente improcedente, que o recorrente questiona a constitucionalidade dos arts. 412º e 420º do C.P.P., normas com base nas quais o Tribunal da Relação rejeitou liminarmente o recurso. Nesta decisão sumária deste Venerando Tribunal, a fls. 1 é transcrita uma passagem do requerimento do Recorrente para este tribunal, onde é bem frisado
“ipsis verbis”, que se pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 412º e 420º, n.º 1, ambos do C.P.P., por violarem os arts. 2º, 12º, n.º 1, 13º e 32º, n.º 1, da C.R.P., e os princípios constitucionais do direito de defesa dos arguidos.
“Para um bom entendedor meia palavra basta”, embora na resposta ao Ministério Público o recorrente não invocasse claramente o art. 420º do C.P.P., como sendo a norma considerada inconstitucional pelo recorrente, depreende-se da exposição daquele, ao questionar o preenchimento ou não dos requisitos do art. 412º do C.P.P., por parte do recorrente, que era afinal esse dispositivo legal o de duvidosa constitucionalidade, pois a rejeição do recurso prevista no art. 420º do C.P.P. só tem sentido se desrespeitado o preceituado no art. 412º do C.P.P.. Estas normas têm de ser conjugadas. E não é só o art. 420º do C.P.P. que pode ser considerado inconstitucional de per si ou conexionado com o art. 412º do C.P.P., também este último, isoladamente e independentemente do preceito citado em primeiro lugar, poderá ter o mesmo destino, pois o n.º 2 refere-se à possibilidade de rejeição, no caso de não se cumprirem as formalidades descritas nas als. a), b), c). Assim sendo, tanto o art. 412º como o art. 420º do C.P.P. podem padecer de inconstitucionalidade, por ferirem o direito de defesa, entre outros, dos arguidos. E em todo o seu discurso, é bem notória a preocupação do recorrente pela rejeição do recurso, pelo que o que o Recorrente pretende pôr em crise é precisamente os arts. do C.P.P., que tratam dessa matéria, ou seja, os arts.
412º, n.º 2, e 420º do C.P.P.. A ratio do requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional foi pôr em crise normas e não decisões, normas essas que foram bem identificadas pelo Recorrente, portanto não tem cabimento o 1º parágrafo da pág. 3 da decisão sumária.» O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da reclamação deduzida, veio responder nos seguintes termos:
“1º A presente reclamação é manifestamente infundada.
2º Na verdade, o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, a questão de constitucionalidade normativa que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Adianta-se desde já que a presente reclamação – mesmo admitindo a sua convolação para a espécie prevista no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (e não no artigo 76º, n.º 4, como erradamente se afirma no respectivo requerimento), e considerando que ela se restringe ao recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional – se afigura, como afirma o Ministério Público, manifestamente improcedente. Não relevam, desde logo, as considerações do reclamante relativas à identificação, no requerimento do recurso de constitucionalidade, das normas que pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse. Aliás, essa identificação nunca esteve em causa, reportando-se a decisão sumária reclamada sempre à identificação (suscitação) da inconstitucionalidade de normas durante o processo, isto é, conforme é orientação reiterada deste Tribunal, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo. Como é pacífico, este requisito deve ser entendido (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994),
“não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República, II, de 10 de Janeiro de 1995 e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da República, II, de 20 de Junho de 1995). Por outro lado, como também tem sido reiteradamente afirmado por este Tribunal, e se escreveu já, por exemplo, no Acórdão n.º 269/94 (Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994), “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Ora, o próprio reclamante reconhece não ter “invocado claramente” o artigo 420º do Código de Processo Penal, defendendo, porém, que, como “para um bom entendedor meia palavra basta”, se depreenderia da sua exposição que era
“afinal” esse dispositivo legal o de duvidosa constitucionalidade (se bem que também defenda a inconstitucionalidade do artigo 412º do mesmo Código). Todavia, como logo se conclui confrontando a transcrição do requerimento efectuada na decisão reclamada, nesse requerimento (apresentado em resposta à pronúncia do Ministério Público no sentido da rejeição do recurso por manifestamente improcedente) não se cita sequer o referido artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nem mesmo se trata da questão da constitucionalidade da rejeição do seu recurso por manifesta improcedência, com a qual o recorrente havia já sido confrontado, mas, apenas, da rejeição liminar do recurso por causa da não verificação dos requisitos previstos no citado artigo 412º. Este Tribunal tem, aliás, salientado, em aplicação do disposto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que incumbe ao recorrente o ónus de suscitar a inconstitucionalidade durante o processo de modo procedimentalmente adequado, “o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental” – assim o Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989). Perante o teor do requerimento de resposta ao Ministério Público, que confrontara o recorrente com a questão da rejeição do recurso por manifesta improcedência, a conclusão não podia deixar de ser a que se tirou na decisão sumária: a de que o recorrente omitiu aí “qualquer alegação de inconstitucionalidade dirigida globalmente à solução normativa que permite a rejeição de recursos por manifesta falta de procedência”, assim inviabilizando, ele próprio, a possibilidade de se vir a tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade. A presente reclamação tem, pois, de ser desatendida, confirmando-se a decisão sumária reclamada. III Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos