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Processo n.º 992/2004
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, confirmando a decisão da primeira instância, manteve a sua condenação, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança, nos termos conjugados do n.º 2 do artigo 30º do Código Penal e do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na condição de pagar no prazo fixado os montantes de IVA e de IRS em dívida. O recurso não foi admitido, com base no disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo
400º do Código de Processo Penal, por despacho do qual a arguida reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sustentando que tal despacho não cumprira o disposto no n.º 2 do artigo 420º do Código de Processo Penal e que o recurso devia ser admitido “com base no disposto no n.º 2 do artº 400º e na alínea d) do artº 432º, ambos do C.P.P”. Pelo despacho de fls. 15, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação, por ser “insusceptível de recurso a decisão ora impugnada”, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal. Disse ainda ser “descabida a invocação da alínea d) do artigo 432º” do mesmo Código e que o n.º 2 do artigo 400º “respeita a pedido cível e quanto a este, no caso de o haver, o recurso só é admissível se também o for a parte criminal”. Veio então a arguida requerer a aclaração do despacho e arguir a ilegalidade e a inconstitucionalidade desta interpretação do n.º 2 do artigo 400º citado. Pelo despacho de fls. 19, foi indeferido o pedido de aclaração. Pelo requerimento de fls. 21, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do despacho que indeferiu a aclaração e do despacho de não admissão de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, “ao abrigo do artigo 70º da Lei Fundamental, sendo que a norma cuja inconstitucionalidade e ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie é o n.º 2 do art. 400º do Código de Processo Penal”. O recurso não foi admitido, pelo despacho fls. 22, porque a norma impugnada não foi aplicada em nenhum das decisões recorridas.
2. Inconformada, A. veio reclamar para o Tribunal Constitucional, dizendo, para afastar a razão que motivou a não admissão recurso de constitucionalidade, em síntese, que “nos termos do artº 664º do CPC, ‘o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito’ (...). O não ter sido aplicada não significa que a mesma não poderia ou deveria ter sido aplicada’.” E na mesma reclamação arguiu a inconstitucionalidade das normas do artigo 24º do RJIFNA e do artigo 105º do RGIT, sustentando que a inclusão nas respectivas previsões de dívidas de IRS e de IVA as torna inconstitucionais e que, se assim se não entender, então será inconstitucional a aplicação à arguida da condição atrás referida, por equivaler a decretar uma prisão por dívidas, em violação dos artigos 50º do Código Penal e 14º, n.º 1 do RGIT. Estes últimos preceitos também serão inconstitucionais, aliás, se interpretados diferentemente. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação, “já que a norma a que foi reportado o recurso de constitucionalidade não constituiu obviamente ‘ratio decidendi’ da decisão impugnada, não estando em causa, nos presentes autos, qualquer pedido cível enxertado no processo penal”.
3. Com efeito, a reclamação é improcedente. Cumpre todavia começar por observar que é no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que se define o objecto do recurso de constitucionalidade, não sendo possível ampliá-lo no âmbito da reclamação da decisão de não admissão do recurso. Assim, apenas se terá em conta a presente reclamação na parte respeitante à pretensão de que seja admitido o recurso relativo à norma que a recorrente refere ao n.º 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal.
4. Ora sucede, desde logo, que nesse mesmo requerimento a reclamante não esclarece qual é a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 em que baseia o seu recurso. Tal omissão não impede, no entanto, o julgamento da reclamação. Assim, em primeiro lugar verifica-se que a reclamante não apontou no requerimento de interposição de recurso nenhuma das ilegalidades que podem ser julgadas pelo Tribunal Constitucional, o que por si só afasta a possibilidade de ser apreciada qualquer questão de legalidade no âmbito do recurso que interpôs. Em segundo lugar, sucede que, para se apreciar a eventual inconstitucionalidade da norma que a reclamante impugna, sempre seria imprescindível, sob pena de inutilidade do julgamento do recurso, que essa mesma norma tivesse sido aplicada nas decisões recorridas como “ratio decidendi”. Não é, manifestamente, o caso, já que não foi no n.º 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal que o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça se baseou, nem para inferir o pedido de esclarecimento, nem para indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto. Quanto ao primeiro, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça considerou não preenchidas as condições necessárias para deferir o pedido de aclaração, naturalmente à luz das respectivas regras; quanto ao segundo, a razão determinante foi a de não ser admissível recurso, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal. Não tendo sido aplicada a norma impugnada com o sentido acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os Acórdãos nºs
313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996), o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição de conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida (cfr., além do citado Acórdão n.º 366/96, o Acórdão n.º 463/94, Diário da República, II série, de 22 de Novembro de 1994). Ora, no caso, nenhuma repercussão teria o julgamento da constitucionalidade da norma definida pela recorrente, ainda que o Tribunal viesse a concluir no sentido da inconstitucionalidade.
Nestes termos, indefere-se a reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 30 de Novembro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício