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Processo n.º 46/2004
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão de 4 de Novembro de 2003, de fls. 50, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso que A. interpôs do despacho de 22 de Abril de
2003, do Juiz do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que rejeitou, por extemporaneidade, o requerimento que, como assistente no processo crime identificado nos autos, apresentou para abertura de instrução. Para o que agora releva, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu o seguinte:
«Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir: Da análise dos autos constata-se que o Ministério Público por despacho dactilografado e de 10.12.02 determinou o arquivamento dos autos. Esse despacho foi notificado ao ilustre advogado da assistente por carta registada expedida em 10.02.03 e à assistente por carta simples enviada em 12.02.03. A assistente veio a requerer a abertura da instrução em peça remetida por via postal, registada em 20.03.2003. A assistente deduziu acusação particular em 8.1.03 e o Ministério Público tomou posição sobre a mesma com o despacho de 15.01.2003. As conclusões da recorrente delimitam o objecto do recurso art. 403º-1 e 412 º-1 e 2 ambos do Cód. de Proc. Penal e, sustentou-se que o requerimento para a abertura da instrução foi apresentado no prazo estipulado no art. 287º-1 do Cód. de Proc. Penal. Vejamos:
(...) não assiste razão à recorrente como facilmente se pode ver. Na verdade, como dispõe o art. 287º-1 do Cód. de Proc. Penal a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento e, a al. h) do mesmo preceito acrescenta que “pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”. A instrução pode ter lugar a requerimento do assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. A instrução não visa o complemento do inquérito mas, relativamente à actuação do Ministério Público, a comprovação da legalidade da sua decisão de acusar ou de não acusar e da legalidade da acusação deduzida. A decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura da instrução.
(...)Ora, no caso vertente, o Ministério Público decidiu arquivar o inquérito por despacho de 10 de Dezembro de 2002 e, deste despacho foi notificado o ilustre advogado da assistente por carta registada expedida a 10.02.2003 e, a assistente foi notificada por carta simples expedida a 12.02.03 e, como o prazo para requerer a abertura da instrução é de 20 dias a contar do despacho de arquivamento do inquérito, o prazo para a assistente requerer a abertura da instrução terminou em 13.03.03 art. 113º-3-9 e 12 do Código de Processo Penal, contado a prazo a partir da notificação efectuada em último lugar, que foi a da assistente, incluindo-se nesse prazo os três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, mediante o pagamento de multa art. 145º-5 do Código de Processo Civil por força do art. 107º-5 do Código de Processo Penal e, como a assistente-recorrente A. apresentou o requerimento para a abertura da instrução em peça processual remetida pelo correio, sob registo em 20 de Março de 2003, o Exmº Juiz não podia deixar, como fez, de rejeitar o requerimento para a abertura da instrução, por extemporâneo art. 287º-1 e 3 do Código de Processo Penal. E, uma vez que a assistente deduziu acusação particular o Ministério Público ao proferir o despacho de 15.01.2003 limitou-se a dar cumprimento ao art. 285º-3 do Código de Processo Penal que dispõe que o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles. Esse despacho do Ministério Público e de 15.01.03 é proferido no cumprimento do art. 285º -3 do Código de Processo Penal e, não tem a virtualidade de proporcionar ao assistente a faculdade de requerer a abertura da instrução, pois que, já teve a oportunidade de o fazer quando foi notificado do despacho do Ministério Público que determinou o arquivamento do inquérito art.
287º-1 do Código de Processo Penal. O despacho recorrido fez correcta interpretação e aplicação dos preceitos atinentes e, por isso, o recurso tem forçosamente de improceder.»
2. Inconformada, a recorrente veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sustentando que
“no presente processo foi violado o disposto no art. 20º, n.° 1, da Constituição, mormente o acesso ao Direito e aos tribunais, visto que por alegada extemporaneidade, não lhe foi reconhecida abertura de instrução nos termos do art. 286º, n.º 1, 287°, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal - CPP” e “que a norma resultante da interpretação operada no douto Acórdão recorrido sobre o disposto no art. 287°, n.º 1 do CPP , viola a garantia de acesso ao Direito e aos tribunais consagrado no art. 20º, n.º 1, da Constituição, atento o exposto no artigo 11° e Conclusão n.º 10, das motivações da Recorrente de
20.05.2003”. E disse ainda que “no segmento normativo acima apontado, a norma legal em crise viola o disposto nos artigos 13º e 32º , n.º 7, da Constituição no que respeita ao principio da igualdade e aos poderes de intervenção do ofendido no procedimento criminal, que pretendemos expor nas respectivas alegações, dado que esta matéria pode ainda ser objecto de julgamento por este Venerando Tribunal, nos termos do disposto no art. 79º-C, da LOTC.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Notificada para definir qual a norma que considera “resultante da interpretação operada no douto acórdão recorrido”, pelo despacho de fls. 64, a recorrente apresentou a resposta de fls. 66:
«1. A Recorrente considera inconstitucional a norma contida no preceito legal do art. 287º, n. 1, do Código de Processo Penal – CPP, no sentido em que existindo concurso entre crimes de natureza particular e semi público (in casu crime de injúrias vs. crime de ameaças e dano) a contagem do prazo para abertura de instrução não seja condicionada, pela pronúncia concreta do Ministério Público, exercida no quadro das suas atribuições constitucionais (cfr. art. 219º, n.º 1, da Constituição), quanto à suficiência de indícios da prática de crime e/ou de outros factores legais relevantes (ex: sobre as condições objectivas de punibilidade - legitimidade do queixoso art. 113º do Código Penal - CP) mormente, sobre se deve arquivar o respectivo inquérito ou pelo contrário deve proceder a uma acusação formal, de acordo com os princípios da legalidade e da oficialidade que regem o procedimento criminal.
2. No caso em apreço a Recorrente ficou privada da abertura de instrução, pelo simples facto de não ter solicitado a referida diligência logo após a notificação do despacho arquivamento do MP de 10.12.2002, no qual apenas determinou-se o arquivamento dos autos quanto aos crimes de injúrias e ameaças, sendo aquele despacho omisso quanto à procedência do crime de dano
(semi-público), cujos factos determinantes se encontravam relatados pela assistente nos autos de inquérito, ou seja, sobre esta matéria relacionado com o crime de dano, não houve da parte do MP qualquer outra decisão de arquivamento, para além da menção feita no despacho de 15.01.2003, que decidiu não acompanhar a acusação particular de 08.01.2003, sobre o qual passamos a citar, o seguinte extracto:
“Quanto ao crime de dano imputado ao arguido: Nesta parte deve a acusação particular ser rejeitada dado a natureza semi pública daquele crime e consequente falta de legitimidade da assistente para a acção penal.” Nota: citação retirada de cópia dactilografada do referido despacho notificado à assistente em 03.03.2003.
3. Deste modo e salvo melhor entendimento o prazo previsto no art.. 287°, n.° 1, do CPP, deveria ter sido contado a partir de 03.03.2003, sendo essa a data de notificação da cópia dactilografada do sobredito despacho do MP de 15.01.2003, do qual julgamos que se retira de forma inequívoca o interesse processual da Recorrente em deduzir abertura de instrução, conforme será objecto de alegações nos termos do art. 79º da LOTC.
4. Reiteramos do exposto que a norma resultante da interpretação operada no douto Acórdão recorrido sobre o disposto no art. 287º, n.º 1, do CPP viola, salvo melhor entendimento, a garantia de acesso ao Direito e aos tribunais consagrado no art. 20º, n.º 1, da Constituição, bem como conculca o disposto nos artigos 13º e 32º. n.º 7, da Constituição no que respeita ao princípio da igualdade e aos poderes de intervenção do ofendido no procedimento criminal.»
4. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que a recorrente concluiu da seguinte forma:
«1.ª Nos presentes autos existe um concurso de crimes de natureza particular e semi público (in casu crime de injúrias e crime de ameaças e dano), conforme resulta do teor do despacho de arquivamento do Min. Público de 10.12.2002 (fls.
93) e de cópia dactilografada do Despacho de 15.01.2003, de pronúncia sobre acusação particular;
2.ª No douto Acórdão recorrido considera-se que o despacho de arquivamento de
10.12.2002 determina o arquivamento dos factos relacionados com o crime de Dano alegado, pela Recorrente na acusação particular e ou de todo o inquérito criminal;
3.ª Contudo, nos termos do art. 97°, n.º 4, do CPP, os actos decisórios devem conter a especificação dos motivos de facto e de direito afectos à decisão proferida (vd. artigos 3º, 4º e 5º das motivações da Recorrente de 20.05.2003);
4.ª No sobredito despacho de arquivamento de 10.12.2002, o digno magistrado do Ministério Público determinou apenas o arquivamento dos crimes de injúria e ameaças, não competindo à Recorrente, retirar qualquer outro tipo de ilação, pois é esse o exacto sentido e alcance do despacho em questão de acordo com a previsão da norma processual supra citada;
5.ª Acresce que a Recorrente em conjunto com o despacho de arquivamento de
10.12.2002, foi igualmente notificada dos despachos de 15.01.2003 e de
30.01.2003 sendo estas duas últimas decisões manifestamente ilegíveis;
6.ª Em resultado a Recorrente solicitou em 18.02.2003, cópias dactilografadas das aludidas decisões ao abrigo do disposto no art. 94.º, nºs 1 e 4, do CPP, as quais foram objecto de notificação em 03.03.2003;
7.ª Neste contexto, seria muitíssimo temerário da parte da Recorrente solicitar abertura de instrução apenas com conhecimento da cópia dactilografada do despacho de arquivamento de 10.12.2002, sem antes conhecer o teor exacto das restantes decisões que se encontravam em anexo à respectiva notificação;
8.ª De facto, a leitura do sobredito Despacho de 15.01.2003 revela que o digno Magistrado do Min. Público, decidiu não acompanhar a acusação particular de
08.01.2003;
9.ª A partir desse evento do processo a Recorrente cabalmente informada sobre a posição do Min. Público quanto ao inquérito e à acusação particular deduzida, pode assim reagir processualmente de forma esclarecida, em relação às decisões proferidas nestes autos solicitando em 20.03.2003, a respectiva abertura de instrução;
10.ª Destarte, resulta dos autos que a menção feita no sobredito despacho de
15.01.2003,em conjugação com o teor do despacho de arquivamento de 10.12.2002, prefigura-se como uma autêntica decisão de arquivamento tipificada, nos termos do art. 277.º, n.º 1, última parte, do CPP, visto que naquela decisão o Digmº Magistrado do Min. Público considerou ser legalmente inadmissível o procedimento devido à natureza semi-pública do crime que a Recorrente relatou e pretendeu imputar ao arguido na acusação particular em conformidade com o relato da queixa crime apresentada;
11.ª Ora, o arquivamento de inquérito por inadmissibilidade legal do procedimento criminal encontra-se expressamente consignado no art. 277º, n.º 1,
última parte, do CPP, pelo que esta constitui uma das modalidades de arquivamento previstas no código a par do arquivamento por insuficiência de indícios (cd. Germano Marques da Silva, in, “Curso de Processo Penal”, 3.ª Ed. Vol. III, págs. 95 a 98);
12.º Na realidade a primeira parte do despacho de 15.01.2003, traduz-se numa decisão complementar ao despacho de arquivamento, pelos seguintes motivos: a) O despacho de 15.01.2003, foi expedido conjuntamente com o despacho de arquivamento de 10.12.2002; b) do teor do despacho de 15.01.2003, resulta que o Digmº Magistrado do Min. Público considerou legalmente inadmissível o procedimento adoptado devido à natureza semi-pública do crime e; c) Verifica-se a existência de conexão entre as decisões em confronto, relativamente aos crimes de injúrias, ameaças e de dano (crime particular e crime semi-público);
13.ª Por outro lado, acresce que a notificação de pronúncia do MP sobre a acusação particular revela-se essencial na regular tramitação do processo se tivermos em conta que a omissão da mesma constitui nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. b), do CPP, por falta de promoção dos actos de inquérito pela entidade competente (cfr. art. 48.º e ss. Do mesmo diploma);
14.ª Deste modo e salvo o devido respeito, consideramos que o segmento normativo descrito no douto Acórdão recorrido não equacionou devidamente as garantias de acesso ao direito e aos tribunais e à intervenção do ofendido no procedimento criminal, através da figura do assistente (cfr. art.s 20.º e 32.º, n.º 7,da Constituição, 68.º e 69.º. n.º 2, al. a) e b), do CPP);
15.ª Na perspectiva da Recorrente o momento de contagem do prazo, para abertura de instrução reporta-se, sempre a pronúncia efectiva do Ministério Público sobre os indícios recolhidos na fase inicial do inquérito, sendo essencial nesse plano específico o conhecimento preciso do conteúdo das decisões daquela entidade que respeitem aos correspondentes sujeitos do processo, quer estas decisões sejam proferidas no âmbito do art. 277.º do CPP ou proferidas no âmbito do art. 285.º do mesmo diploma;
16.ª Aliás basta atentar nos elementos específicos deste processo, para concluir-se que o Despacho de arquivamento de 10.12.2002 e o Despacho de
15.01.2003, constituem decisões que pelo seu conteúdo não se podem cindir em termos processuais, atenta a sua manifesta conexão em relação aos tipos de crime em concurso – crime particular e crime semi-público e, uma vez que, é lícito interpretar o sentido e alcance do segundo despacho (15.01.2003) como decisão que complementa o teor do referido despacho de arquivamento;
17.ª Em casos semelhantes tem-se admitido em sede de recurso hierárquico (vd. art. 278.º do CPP), a possibilidade do assistente requerer posteriormente abertura de instrução no prazo legal, a contar da notificação de decisão confirmativa do despacho de arquivamento objecto de recurso hierárquico;
18.ª Mutatis Mutandis, afigura-se como admissível a possibilidade de solicitar abertura de instrução com base em decisão que se situe numa relação de complementaridade com o despacho de arquivamento, sob pena de violação das garantias e direitos consagrados nos artigos 13.º., 20.º, e 32.º, n.º 7, todos da Constituição;
19.ª Em suma, a Recorrente considera que o douto acórdão recorrido ao confirmar a decisão instrutória de 1.ª instância proferida a fls. 130, em prejuízo do pedido de abertura de instrução formulado em 20.03.2003, violou as garantias consagradas nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 e 32.º, n.º 7777, ambos da Constituição;
20.ª Conforme vem alegado, a Recorrente pretendeu abrir instrução com base nos sobreditos despachos de 10.12.2002 e de 15.01.2003, em articulação com o conteúdo de ambas as decisões, com referência ao crime de dano que não vinha indicado no referido Despacho de arquivamento de 10.12.2002;
21.ª Pelo que em relação à abertura de instrução, o interesse processual que a Recorrente poderia manifestar seria bastante reduzido, quando apenas notificada do teor do despacho de arquivamento de 10.12.2002, desconhecendo a pronúncia do Digmº Magistrado do Min. Público operada no despacho de 15.01.2003, sobre o crime de dano, do qual só foi notificada de cópia dactilografada em 03.03.2003
(cfr. artigos 50.º, nºs 1 e 2, als. a) e b), 277º e 287º, n.º 1, al. b), do CPP);
22.ª Perante as garantias tuteladas nos artigos 20.º e 32.º, n.º 7, da Constituição, decorrentes em grande medida do princípio da igualdade reconhecido a todos os cidadãos no art.º 13.º do mesmo diploma constitucional, tal significa que a Recorrente não pode ser prejudicada por decisões, cujo teor é impreciso ou omisso em relação a factos relevantes do processo, tal como veio a suceder com a notificação conjunta do Despacho de arquivamento de 10.12.2002 e do despacho de
15.01.2003, as quais constituem decisões emanadas do Min. Público e que se encontram em estreita conexão com os crimes em causa e respectiva matéria indiciária;
23.ª Deste modo e salvo o devido respeito, o contexto das decisões das quais a Recorrente fundamentou e solicitou abertura de instrução, foi equacionado de forma insuficiente no douto Acórdão recorrido, o que resulta na violação do direito à igualdade de tratamento consagrado no art. 13.º, da Constituição em articulação com o disposto nos artigos 20º e 32º, n.º 7, do mesmo diploma, visto que não foi reconhecida à Recorrente o direito de abrir instrução do presente processo, devido a interpretação desconforme das normas processuais penais relevantes (vd. artºs 285.º, n.º 3 e 287.º, n.º 1, ambos do CPP) em, confronto com as garantias constitucionais supra aludidas;
24.ªPois conforme exposto, nada obsta à possibilidade de solicitar abertura de instrução com base em decisão que seja complementar do despacho de arquivamento, sob pena de violação das garantias e direitos consagrados nos artigos 13.º,
20.º, nºs 1 e 4 e 32.º, n.º 7, todos da Constituição;
25.ª Nesse plano, cabe apontar que a decisão apontada no douto Acórdão recorrido não se afigura a mais consentânea com algumas das finalidades do processo penal, mormente no que concerne à reintegração da validade da norma violada, in casu, pela suspeita da prática do crime e do consequente restabelecimento da paz jurídica, que consideramos subjacente a uma constante e necessária harmonização dos interesses antagónicos dos sujeitos intervenientes no processo penal (vd. Prof. Jorge Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Lições coligidas pela Dr.ª Maria João Antunes, págs. 23 a 25);
26.ª Do exposto, reiteramos que a norma resultante da interpretação operada no douto Acórdão recorrido sobre o disposto no art. 287.º, n.º 1, do CPP viola, salvo melhor entendimento, a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, bem como conculca o disposto nos artigos 13.º e 32.º, n.º 7, da Constituição no que respeita ao princípio da igualdade e aos poderes de intervenção do ofendido no processo penal;
27.ª A Recorrente nos artigos 3.º, 4.º e 5.º e conclusões 1.ª, 2.ª e 3.ª das motivações de 20.05.2003, alegou que o despacho de arquivamento de 10.12.2002, não continha qualquer menção ao crime de dano relatado nos autos, em prejuízo do disposto no art. 97.º, n.º 4, do CPP, que exige a especificação dos motivos de facto e de direito subjacentes à prolação dos actos decisórios em processo penal;
28.ª No douto Acórdão recorrido, não é oferecida resposta a este ponto concreto que foi objecto das motivações da Recorrente, o que salvo melhor entendimento constitui nulidade de sentença por omissão de pronúncia prevista, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, na redacção introduzida pelo art. 1.º da Lei n.º 59/98, de 25.08;
29.ª Por conseguinte a referida omissão de pronúncia, constitui também uma violação da garantia de acesso ao direito e aos tribunais que assiste à Recorrente nos termos do art. 20.º da Constituição, visto que assiste a qualquer cidadão (cfr. art. 13.º da Constituição) o direito de ver esclarecidos os seus litígios com base em decisões que se reportem à resolução e dilucidação da matéria de facto – thema decidendum e thema probandum – vertida em processo judicial;
30.ª Ressalvando melhor entendimento, julgamos que o alegado vício de sentença pode ser conhecido por este Venerando Tribunal, atento o teor do douto Acórdão proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, com o n.º 1/94 (DR, I S-A, n.º 3, de 11.02.1994), cuja doutrina, mutatis mutandis, será também aplicável ao disposto n a alínea c), do n.º 1, do art. 379.º, do CPP, por: a) razões de segurança e certeza jurídicas; b) derivado à circunstância do Acórdão n.º 1/94 do STJ, integrar-se no âmbito de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência e; c) atendendo ao disposto no n.º 2, do art. 379.º do mesmo diploma (ex. vi. Art. 1.º da Lei n.º 59/98), pois a nulidade invocada poderia ter sido suprida pelo Venerando Tribunal a quo aquando da interposição do presente recurso (vd. Requerimento de 12.12.2003).»
Quanto ao Ministério Público, começou por observar que
«A questão de constitucionalidade normativa colocada pela recorrente consiste em saber se viola o direito de acesso aos tribunais por parte do assistente a interpretação normativa que conta o prazo para requerer a abertura da instrução da notificação do despacho de arquivamento do inquérito, proferido pelo Ministério Público, – e não da notificação do despacho em que o Ministério Público se pronuncia sobre a acusação particular deduzida pelo assistente – sendo obviamente irrelevante a exaustiva descrição de vicissitudes processuais, longamente expendida nas prolixas conclusões da alegação da recorrente, em que se pretende alargar, de forma insólita, o objecto do recurso. Tal questão configura-se como manifestamente infundada, não se vendo em que medida é que a imposição ao assistente do ónus de requerer a instrução em prazo contado da notificação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público inviabiliza ou dificulta significativamente o exercício do direito de acesso à justiça – sendo evidente que, ao contrário do que sustenta a recorrente, o arquivamento do inquérito e a pronúncia do Ministério Público sobre a acusação particular deduzida pelo assistente constituem decisões autónomas, e não obviamente despachos conexos ou complementarmente
'incindíveis', que legitimem a prorrogação do prazo para o assistente requerer a abertura da instrução num inquérito que, 'in totum', foi objecto de decisão de arquivamento», e concluiu:
«1 - Não viola manifestamente o direito de acesso à justiça por parte do assistente a interpretação normativa que conta o prazo para requerer a abertura da instrução da notificação do despacho de arquivamento do inquérito – e não da ulterior prolação pelo Ministério Público de um despacho autónomo, em que se pronuncia sobre a acusação particular entretanto deduzida pelo assistente, – sem que tal tenha virtualidade para renovar o prazo previsto no artigo 287°, n.º 1 , alínea b), do Código de Processo Penal.
2 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
O recorrido B. não alegou.
5. Admitindo a hipótese de não se poder conhecer do recurso, foi notificado às partes o seguinte parecer:
«1. Parece resultar das alegações apresentadas – na linha, aliás, do que já parecia decorrer da resposta de fls. 66 –, que a recorrente A. não está a questionar nenhuma norma retirada pelo acórdão recorrido do n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal mas, diferentemente, a acusar o próprio acórdão de violar diversas normas e princípios constitucionais, que vai apontando ao longo das alegações, pretendendo, assim, que o Tribunal Constitucional aprecie questões que não podem constituir o objecto de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa. Com efeito, como se pode verificar da leitura das referidas alegações, a recorrente nunca define a interpretação do n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal que considera inconstitucional; antes descreve as diversas vicissitudes por que o processo passou, discorrendo sobre a interpretação dos despachos que foram sendo proferidos e concluindo que o acórdão recorrido chegou a um resultado inconstitucional. Para além disso, a recorrente pretende ainda que o Tribunal Constitucional conheça da nulidade do acórdão recorrido, questão que manifestamente está fora do âmbito possível do recurso de constitucionalidade definido pela Constituição
(cfr. artigo 280º respectivo, em particular o seu n.º 6) e pela lei (cfr. as diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82) e que haveria de ter sido colocada perante o Tribunal da Relação de Lisboa.
2. É, pois, plausível que o Tribunal Constitucional não possa conhecer do recurso interposto. Assim, convidam-se as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre tal possibilidade, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil.»
6. Sobre este parecer pronunciou-se, apenas, a recorrente, a fls. 105. Em síntese, sustenta que definiu como objecto do recurso uma questão normativa, resultante da combinação do n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal com outros preceitos; que, após a apresentação de alegações, estará precludida a possibilidade de não se conhecer do mérito do recurso, por estar ultrapassada a fase de “exame preliminar e decisão sumária do relator prevista no art. 78º-A” da Lei nº 28/82, havendo que passar a esse conhecimento, nos termos que diz valerem para o recurso de apelação e, por aplicação subsidiária das regras respectivas, para o recurso de constitucionalidade; e que, quando referiu a nulidade do acórdão recorrido, estava a apontar para a “aplicação implícita de um segmento normativo que conduz à inconstitucionalidade da norma aplicada mormente, o disposto no art. 379º, n.º 1, al. c), do CPP'.
7. Verifica-se, todavia, pelas razões apontadas no parecer atrás transcrito, e que de forma alguma são postas em causa pela resposta acabada de referir, que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do presente recurso. Na verdade, nem na resposta agora apresentada a recorrente define uma norma – uma questão normativa – susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional. Não está, evidentemente, em causa qualquer impossibilidade de definir tal questão recorrendo à interpretação conjugada de diversas normas; o que releva é, como se escreveu na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º n.º
383/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 47º, p.829 e segs.), “que o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional é constituído por normas efectivamente aplicadas durante o processo. E, de acordo com a jurisprudência corrente deste Tribunal, a norma jurídica cuja constitucionalidade há-de ser apreciada é tomada com o sentido que lhe foi interpretativamente atribuído pela decisão recorrida.
(...) não pode obviamente o Tribunal Constitucional sindicar o acto de julgamento, que envolve a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou a decisão, como resultado da conjugação indissociável do facto e do critério normativo utilizado. Mas pode e deve aferir a constitucionalidade desse critério normativo. Não são, pois, sindicáveis nem a aplicação a uma dada situação concreta de um critério normativo – isto é, a subsunção, operada pelo aplicador do direito, do caso concreto à norma–, nem a obtenção, pelo julgador, de uma solução não decorrente de critérios estritamente normativos”.
8. Para além disso, não é exacto que, após a apresentação de alegações, fique precludida a possibilidade de não se conhecer do objecto do recurso, nem no recurso de apelação, em Processo Civil (cfr. artigo 704º do Código de Processo Civil), nem no recurso de constitucionalidade. A notificação para alegações tem apenas o sentido de que não há fundamento para proferir a decisão sumária prevista no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, decisão que só tem cabimento quando os motivos ali previstos são manifestos. Pode, aliás, suceder que seja o recorrido a suscitar obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso.
9. E não pode atender-se qualquer pretensão no sentido de alargamento do objecto do recurso à alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, preceito nem sequer implícita ou explicitamente referido, quer no requerimento de interposição de recurso, quer na resposta de fls. 66.
10. Finalmente, cumpre reconhecer que o Ministério Público, nas alegações de fls. 96, assenta no pressuposto de que a recorrente colocou ao Tribunal Constitucional uma questão de constitucionalidade susceptível de ser conhecida. A verdade, todavia, é que não coincide a questão que o Ministério Público analisa, concluindo pela clara improcedência do recurso, com a questão que a recorrente coloca ao mesmo Tribunal, como se pode verificar relendo, por exemplo, o ponto 1. da resposta de fls. 66.
11. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 ucs.
Lisboa, 12 de Novembro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício