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Processo n.º 455/2004
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. veio, a fls. 429, recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 347, pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artº 115º do DL n.º 321º-B, de 15 de Outubro (Regime do Arrendamento Urbano), na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido” (admite-se que se pretendesse referir ao artigo 115º do próprio Regime do Arrendamento Urbano, e não ao Decreto-Lei que o aprovou). Em seu entender, tal interpretação “violou também o princípio do processo equitativo previsto no n.º 4 do artº 20º da Constituição”. Para além disso, a recorrente apontou ao próprio acórdão recorrido a violação de várias regras e princípios constitucionais.
2. O acórdão recorrido veio julgar improcedente a acção proposta por A. contra B. e marido, C., destinada a obter a restituição da posse do estabelecimento comercial, devidamente identificado nos autos, e o reconhecimento da sua qualidade de arrendatário do mesmo, por trespasse, bem como uma indemnização pelos prejuízos sofridos. A acção fora julgada parcialmente procedente em primeira instância (sentença de fls. 248) e totalmente procedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão de fls. 330). Em síntese, e para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, assim divergindo das instâncias, não ter existido trespasse do estabelecimento comercial; consequentemente, concluiu que “não há trespasse, não há transmissão
– lícita – da posição de arrendatária para a autora, uma vez que não há autorização do senhorio. A acção deve ser julgada improcedente na totalidade, porque exactamente do pedido de reconhecimento dessa transmissão dependiam os dois restantes pedidos – o de restituição da posse e o da indemnização”. A fls. 412, A. veio requerer a aclaração do acórdão, pedido que foi negado pelo acórdão de fls. 425.
3. Pelo despacho de fls. 437, o relator no Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, em primeiro lugar, porque “nenhuma norma foi deixada de aplicar com fundamento em inconstitucionalidade”; em segundo lugar, porque, mesmo que se entenda como lapso a referência à alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e que a recorrente se queria referir à sua alínea b), porque “a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo”.
4. Inconformada, a recorrente veio reclamar para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sustentando ter suscitado as inconstitucionalidades que pretende ver julgadas quando requereu a aclaração do acórdão recorrido, não lhe tendo sido possível fazê-lo antes. Disse ainda que corrigia o lapso quanto à indicação da alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 ao abrigo da qual o recurso foi interposto, e que é a alínea b).
5. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que, mesmo admitindo a correcção quanto à espécie de recurso, a reclamação é manifestamente improcedente, porque a reclamante não suscitou qualquer inconstitucionalidade durante o processo, nos termos legalmente exigidos, não ocorrendo nenhum motivo que justifique a dispensa do “cumprimento do ónus de suscitação”.
6. Mesmo admitindo que se pode considerar interposto o presente recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, a presente reclamação é claramente improcedente. Em primeiro lugar, porque nunca o Tribunal Constitucional poderia conhecer das diversas inconstitucionalidades que a reclamante aponta ao próprio acórdão recorrido. Com efeito, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de exemplo, os Acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de
1996). Em segundo lugar, e relativamente à inconstitucionalidade que a reclamante aponta ao n.º 1 do artigo 115º do Regime do Arrendamento Urbano, porque falta um pressuposto indispensável ao respectivo conhecimento: não foi suscitada durante o processo, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Sustenta a reclamante não lhe ser exigível o cumprimento deste ónus, nos termos relatados. Todavia, a verdade é que, como justamente observa o Ministério Público, “face ao objecto do litígio, (..) a decisão do Supremo não pode perspectivar-se como ‘decisão surpresa’ – que, pelo seu carácter objectivamente inesperado, dispensasse o cumprimento do ónus de suscitação”. Com efeito, foi controvertida ao longo de todo o processo ter ocorrido ou não trespasse de estabelecimento comercial e, portanto, ser ou não exigido o consentimento do senhorio – artigo 115º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano
– para a transmissão da posição de arrendatário. A ora reclamante dispôs, portanto, da possibilidade de suscitar a inconstitucionalidade da norma em causa perante o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do recurso de revista.
Nestes termos, indefere-se a reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 18 ucs.
Lisboa, 4 de Maio de 2004 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida