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Proc. n.º 212/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, de 24 de Março de 2003, foi o ora recorrente, A., condenado, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º
1, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e pelos artigos 30º, n.º 2 e 79º, ambos do Código Penal, na pena de catorze meses de prisão, suspensa por um período de 4 anos, com a condição de o mesmo proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta em 48 prestações mensais de idêntico montante.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo, a concluir a sua alegação e para o que agora importa, formulado as seguintes conclusões:
“[...] 10. A recepção do imposto é elemento constitutivo do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.
11. A interpretação diversa das normas dos arts. 24° do RJIFNA e do art.º 105° do RJIT é inconstitucional, por violação do princípio, implicado pelo direito à liberdade e segurança, consagrado no art.º 27°, n° 1, CRP, de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual.
12. Por outro lado, não obstante haver provas claras, aceites e expressamente invocadas como fundamento da convicção do Tribunal, de que nem todo o IVA liquidado foi efectivamente recebido, a sentença considerou provado o contrário,
13. O que importa violação do disposto no art.º 127° e o vício da al. b) do n° 2 do art.º 410º, por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
14. Além disso, fez assentar essa decisão de ter considerado provado o contrário do que resultava daquelas provas na consideração, de todo em todo inaceitável, de que ao Arguido competia fazer a prova - e prova documental - de que não recebeu o IVA de cuja apropriação ilícita foi acusado,
15. O que ofende o princípio da legalidade da prova consagrado no art.º 125° e, acima de tudo, o princípio da presunção de inocência consagrado no art.º 32°, 2, CRP,
16. O que é tanto mais grave quanto é certo que o apuramento do valor exacto do IVA recebido e indevidamente apropriado é essencial à qualificação do crime de abuso de confiança fiscal, nomeadamente para definição da pena aplicável, face ao disposto no n° 4 do art.º 24° do RJIFNA e nos nº.s 5 e 6 do art.º 105° do RJIT. [...]”
3. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 15 de Dezembro de 2003, decidiu negar provimento ao recurso. Para tanto escudou-se, designadamente, na seguinte fundamentação:
“[...] Se descodificarmos todos os preceitos legais supra transcritos, logo se conclui:
- Em processo penal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
- Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
- Em determinados casos há em que a lei impõe determinados meios de prova.
- O IVA é devido à Administração Fiscal e torna-se exigível, no caso de contrato de compra e venda, logo que os bens sejam postos à disposição do adquirente.
- Vendido um determinado bem sujeito a IVA, a sociedade vendedora é obrigada a entregar no serviço de administração do IVA e simultaneamente com a declaração relativa às operações efectuadas no decurso do segundo mês precedente, o montante do imposto exigível, independentemente de se ter procedido à cobrança do imposto.
- Comete o crime de abuso de confiança fiscal quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar à Administração Fiscal, verificado o elemento subjectivo do tipo.
- No caso de se tornar incobrável o crédito pelo qual foi pago o IVA, será o mesmo reembolsável, desde que se verifique qualquer das condições referidas no n.º 8, 9 e l0 do art.º 71º do CIVA.
- Em todo o caso, e para o que aos autos interessa, sempre as diligências de cobrança de crédito deverão ser certificadas por revisor oficial de contas, isto
é, a prova de que não foi cobrado o preço terá de ser certificada por revisor oficial de contas. In casu, sem sombra de dúvida (o Recorrente nem se atreve a por tal em crise) a sociedade arguida 'B.” tem por objecto o comércio por grosso de materiais de construção e encontra-se enquadrada, para efeitos daquele imposto, no regime normal, de periodicidade mensal. O arguido A. é responsável pelo giro, enquanto seu sócio-gerente, da arguida
'B.' desde a data da sua constituição, competindo-lhe, além do mais, funções que sempre desempenhou, elaborar e enviar à Administração Fiscal as declarações referentes a Imposto Sobre o Valor Acrescentado. Nos meses de Outubro e Novembro de 1997, Abril, Maio Junho, Julho, Agosto Setembro e Outubro de 1998, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 1999 e Abril de 2000, o arguido A., agindo sempre em nome e no interesse da arguida 'B.', remeteu à Administração Fiscal declarações periódicas de IVA nos valores parcelares de 3.330.122$00, 3.339.572$00, 3.365.226$00, 4.582.131$00,
1.769.153$00, 2.074.004$00, 3.091.868$00, 2.557.476$00, 3.802.585$00,
3.810.007$00, 3.214.904$00, 3.423.805$00, 3.649.683$00 e 1.321.101$00. Apesar disso, não diligenciou, como lhe competia, pelo envio àqueles Serviços dos correspondentes meios de pagamento dentro do prazo legal e nos noventa dias posteriores, afectando o imposto à satisfação de compromissos da firma por conta da qual agia, designadamente ao pagamento a fornecedores e dos salários aos seus trabalhadores. Questiona, porém, que houvesse cobrado o montante do imposto liquidado. Como já se referiu, o legislador prescinde da 'cobrança' para efeitos penais. Todavia, sempre a certificação da incobrabilidade teria de ser feita nos termos legais. O que o arguido/recorrente não fez. Consequentemente, nenhuma censura há que fazer à matéria de facto recorrida. Mas não sem que se diga o seguinte: Desde logo que o arguido começa por confessar, numa primeira fase, que os montantes do IVA constantes da acusação correspondem à verdade (fls. 5, por nós numeradas) para depois, numa segunda fase (fls. 8) já não saber se recebeu a totalidade do IVA, se só recebeu parte. Mas o que saberá, certamente, é que deduziu o IVA das compras. Depois, a testemunha C., de forma peremptória, e ao contrário do que alega o recorrente, afirma que a sociedade cobrou o IVA referente a este processo; Nenhuma prova há nos autos em sentido contrário ao referido, sendo certo que a mesma apenas poderia ser feita em conformidade com o estatuído na lei
(certificação do revisor oficial de contas que, depois sim, seria apreciada pelo Juiz). Consequentemente, nenhuma prova há que imponha decisão diversa da recorrida. Não há, por isso, que modificar a matéria de facto. Do que vem de ser dito se conclui que nenhum erro há na apreciação da prova quanto mais erro notório (aquele que não passa despercebido a um cidadão atento face ao texto de decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum). Como nenhuma contradição existe entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quanto mais insanável). Ao invés, há uma perfeita harmonia entre a fundamentação e entre esta e a decisão, como pensamos ter demonstrado. Igualmente já demonstramos que a recepção do imposto não é elemento do tipo, mas antes a existência de uma prestação tributária devida nos termos da lei. E essa, inequivocamente, existe. Veja-se o absurdo da construção jurídica do Recorrente: Deduz-se logo o montante do IVA constante da factura de compra, independentemente de se pagar a mercadoria. Quando se emite factura com IVA, então só se entrega o IVA ao Estado quando se declarar que já se recebeu, e se o houver recebido. No entretanto, o dinheiro dos impostos há-de servir para o que bem nos aprouver
(um já recebido, o outro pago 'a longue')! Bonito, mas só tolerável em país que seja ainda de mais brandos costumes que o nosso. De outra forma, o 'convite' à fraude fiscal estava feito! Diz o Recorrente que ao se prescindir da recepção para efeitos do tipo, se viola o art.º 27°, n.º 1 da CRP . O TC, por diversas vezes, e de forma aprofundada, se pronunciou sobre a questão
(a título de exemplo veja-se o Ac. 312/00, in DR, II Série, de 20/6/2000). Sempre concluiu pela negativa. O Recorrente nenhuns argumentos novos aduz. Assim, porque com os argumentos do TC se concorda, por um lado, e, por outro, porque nenhum novo se apresenta, remetemos para a fundamentação do aludido acórdão. Alega ainda o recorrente a violação do princípio da presunção da inocência. O Recorrente, enquanto não transitar a sentença recorrida, há-de sempre considerar-se presumivelmente inocente. Isso não invalida que, perante a matéria de facto provada - e só essa conta, não a que pretende se considere provada - se afirme, e categoricamente, que estão verificados os elementos do tipo, como deixamos dito, e o Sr. Juiz bem demonstra. O Recorrente, e salvo o devido respeito, confunde a necessidade de apresentação de determinados meios de prova, que só ele está em condições de apresentar, com presunção de inocência. A Administração Fiscal ficaria sempre numa situação de inferioridade, por razões que facilmente são entendíveis, se a lei não impusesse determinados meios de prova, como o faz. Estes meios de prova ficam, naturalmente, sujeitos aos princípios do direito probatório, designadamente ao contraditório, às regras da lógica e da experiência comum. Mas só eles valem prova de determinado facto. Não estamos, logicamente, a falar de culpa, mas antes de facto naturalístico, o que, convenhamos, é bem diferente. Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação. [...]”
4. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...] porque se não conforma com o, aliás douto, acórdão proferido nos autos de recurso penal identificados em epígrafe, dele interpõe recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na al. b) do n° 1 do art.º 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (alterada pelas Leis
143/85, de 26 de Novembro, 85/89, de 7 de Setembro, 88/95 de 1 de Setembro, e
13-A/98, de 26 de Fevereiro), para apreciação da inconstitucionalidade:
- das normas contidas nos arts 24° do RJIFNA e do art.º 105° do RJIT , na interpretação adoptada segundo a qual a efectiva recepção do imposto não é elemento constitutivo do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, por violação do princípio, implicado pelo direito à liberdade e segurança, consagrado no artº 27°, n° 1 , CRP, de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual;
- e das normas contidos nos citados arts 24° e 105°, conjugados com as normas contidas nos arts 125° e 127° CPP , interpretadas como foram no sentido de que ao Arguido compete a prova - e prova documental da não recepção do IVA de cujo apropriação ilícita é acusado, por ofensa do princípio da presunção de inocência consagrado no n° 2 do art.º 32° CRP I questões estas de inconstitucionalidade que o Recorrente suscitou na motivação do recurso que interpôs perante o Tribunal da Relação”.
5. Admitido o recurso foi o recorrente, já neste Tribunal, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1. O douto acórdão impugnado interpretou as normas contidas nos arts 24º do RJIFNA e no artº 105º do RJIT no sentido de que a efectiva recepção do IVA não é elemento constitutivo do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.
2. Essa interpretação é inconstitucional, por violação do princípio, implicado pelo direito à liberdade e segurança, consagrado no art. 27º, n.º 1, CRP e no art. 1º do Protocolo n.º 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual.
3. Por outro lado, o mesmo douto acórdão interpretou as normas contidas nos citados arts 24º e 105º, conjugadas com as normas contidas nos artigos 125º 127º do CPP, no sentido de que ao Arguido compete a prova – e documental – da não recepção do IVA de cuja apropriação ilícita é acusado.
4. Esta interpretação é inconstitucional, porque ofende o princípio da presunção da inocência consagrado no n.º 2 do art. 32º da CRP.
6. O Representante do Ministério Público concluiu a sua alegação da seguinte forma:
“1 - No crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido pelo artigo 105° do RGIT e anteriormente pelo artigo 24° do RJIFNA não é violado o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela impossibilidade de cumprimento de uma obrigação contratual, que aliás deriva fundamentalmente da lei, ao não se exigir como elemento do tipo legal a não cobrança efectiva do IVA, resultante de uma transacção a ele sujeita.
2 - Face ao princípio da proporcionalidade consagrada no artigo 18°, n° 2, da Constituição, há que ter como não excessiva e por isso conforme à Lei Fundamental, uma interpretação das citadas normas, que excluam a referida não cobrança efectiva do IVA da tipicidade, sendo certo que existem mecanismos legais que permitem ao agente beneficiar de reembolsos, relativos a créditos reconhecidamente tidos por incobráveis.
3 - Tida por conforme à Constituição tal interpretação, perde interesse e relevância, face à função instrumental do recurso, em sede de fiscalização concreta, indagar da eventual violação de normas referentes à legalidade e livre apreciação de prova, estando tão só em causa matéria que, a provar-se, nenhuma influência teria no sentido de alterar o juízo condenatório da decisão recorrida.
4 - A entender-se, porém, que deverá conhecer-se do recurso relativamente ao bloco normativo composto pelas normas já referidas relativas ao crime de abuso de confiança fiscal, conjugadas com os preceitos dos artigos 125° e 127° do Código de Processo Penal, referentes à prova, interpretadas no sentido de que ao arguido compete fazer prova documental da não recepção do IVA, há que concluir pela sua não inconstitucionalidade.
5 - Com efeito, admitir que tal prova está vinculada à utilização de determinado meio para ser relevante, mas não a subtraindo aos princípios do direito probatório válidos em processo penal, como são o contraditório, as regras da experiência e a livre apreciação não viola o princípio da presunção de inocência ou quaisquer outras garantias de defesa, constitucionalmente consagradas.
6 - Pelo que não deverá proceder o presente recurso.”
7. Entretanto, por se afigurar ao relator ser plausível o não conhecimento do recurso, elaborou este o seguinte despacho:
“Dado que, não obstante ter sido determinada a elaboração de alegações, se configura como eventual solução do presente recurso o seu não conhecimento, por razões diversas das apontadas na questão prévia suscitada pelo recorrido, elabora-se o presente despacho, nos termos dos artigos 69º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, e 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
1. Nos termos do requerimento de interposição do recurso o recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade: a) da norma que se extrai dos artigos 24º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, e 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, quando interpretados em termos de a efectiva cobrança do imposto não ser elemento constitutivo do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal neles previsto, por alegada violação do princípio, implicado pelo direito à liberdade e segurança, consagrado no artigo 27°, n° 1 , da Constituição, de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual; b) da norma que se extrai dos artigos 24° e 105°, conjugados com os artigos 125° e 127° CPP, interpretados no sentido de que “ao Arguido compete a prova - e prova documental - da não recepção do IVA de cuja apropriação ilícita é acusado, por ofensa do princípio da presunção de inocência consagrado no n° 2 do art.º
32° CRP”. Afigura-se, porém, como plausível que não se possa conhecer do objecto do recurso nem num caso nem noutro, por falta dos respectivos pressupostos legais de admissibilidade. Vejamos, sumariamente, porquê.
2. Pretende o recorrente, em primeiro lugar, ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 24° do RJIFNA e 105° do RJIT, quando interpretados em termos de a efectiva cobrança do imposto não ser elemento constitutivo do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal aí previsto, por alegada violação do princípio constitucional de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual. Ora, não obstante o Tribunal Constitucional já ter, por diversas vezes, concluído que aqueles preceitos não violam o princípio constitucional da proibição de «prisão por dívidas» (cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs
312/2000 e 54/2004, ambos disponíveis na página Internet do Tribunal: http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), no que constituiria jurisprudência inteiramente transponível para os presentes autos, a verdade é que, no caso concreto, não parece poder sequer conhecer-se do objecto do recurso, por não ter a decisão recorrida efectivamente aplicado, como ratio decidendi, a exacta interpretação normativa daqueles preceitos cuja inconstitucionalidade vem suscitada pelo recorrente. Com efeito, mesmo sem cuidar de saber se, de todo em todo, o artigo 24º do RJIFNA terá sido aplicado, quer a decisão proferida em 1ª instância quer a decisão recorrida, proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, consideraram provado que o arguido cobrou efectivamente aos seus clientes os valores em causa, sendo na base dessa matéria de facto, dada como provada, que a decisão foi proferida e as normas legais aplicadas. Nesse sentido, lê-se na decisão proferida, em 1ª instância, pela Comarca de Braga:
“[...] Nos meses de Outubro e Novembro de 1997, Abril, Maio Junho, Julho, Agosto Setembro e Outubro de 1998, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 1999 e Abril de 2000, o arguido A., agindo sempre em nome e no interesse da arguida 'B.', liquidou e cobrou aos clientes desta IVA nos valores parcelares de 3.330.122$00,
3.339.572$00, 3.365.226$00, 4.582.131$00, 1.769.153$00, 2.074.004$00,
3.091.868$00, 2.557.476$00, 3.802.585$00, 3.810.007$00, 3.214.904$00,
3.423.805$00, 3.649.683$00 e 1.321.101$00. [...]” (sublinhado aditado). E, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que nada alterou no que se refere à matéria de facto julgada provada em primeira instância, pode ler-se, no mesmo sentido, e especificamente quanto ao ponto que agora está em causa:
“[...] Depois, a testemunha C., de forma peremptória, e ao contrário do que alega o recorrente, afirma que a sociedade cobrou o IVA referente a este processo. Nenhuma prova há nos autos em sentido contrário ao referido, sendo certo que a mesma apenas poderia ser feita em conformidade com o estatuído na lei (certificação do revisor oficial de contas que, depois sim, seria apreciada pelo juiz). Não há, por isso, que modificar a matéria de facto”. E, mais à frente:
“[...] Isto não invalida que, perante a matéria de facto provada – e só essa conta, não a que se pretende que se considere provada – se afirme, e categoricamente, que estão verificados os elementos do tipo, como deixamos dito, e o Sr. Juiz bem demonstra”. Em suma: quer a 1ª instância, quer o Tribunal da Relação de Guimarães consideraram provado que o arguido cobrou efectivamente os valores facturados. E se essa foi – bem ou mal não compete ao Tribunal Constitucional avaliar – a matéria de facto dada como provada, então, como é evidente, só pode ter sido na interpretação normativa que é pressuposta por essa matéria de facto, e não na que vem questionada pelo recorrente, que os preceitos foram aplicados, como ratio decidendi, pela decisão recorrida.
É certo que nessa decisão se sustenta, a dado passo, que nem os preceitos referidos exigem a demonstração da efectiva cobrança do IVA facturado, nem tal interpretação normativa é inconstitucional. Tais considerações, porém, tendo em conta o que já se disse e resulta da própria decisão recorrida, só poderão ser entendidas como obiter dicta, e não como ratio decidendi. E, como se disse e agora se reitera, não cabe a este Tribunal pronunciar-se, designadamente no contexto de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, sobre a constitucionalidade de interpretações normativas que não constituem fundamento normativo da decisão recorrida. De facto, conforme o Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 337/94 e 3/2000 – publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1994 e de 8 de Março de 2000 -, e os Acórdãos n.ºs 283/97, 556/98, 490/99 - disponíveis na página Internet do Tribunal, já mencionada), o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental. Isso significa, como se afirmou no Acórdão n.º 556/98, que só faz
“sentido dele conhecer quando a decisão que o resolve se pode projectar com utilidade sobre a causa”, concluindo-se assim “que dele se não deva conhecer quando se não verifique qualquer efeito útil do mesmo sobre ela”. Tendo a decisão recorrida concluído que o arguido cobrou efectivamente o IVA facturado e não visando os recursos dirimir questões meramente académicas, o conhecimento do recurso quanto a este ponto seria inútil.
3. Pretende o recorrente, em segundo lugar, ver apreciada a constitucionalidade da norma que se extrai dos artigos 24° e 105°, conjugados com os artigos 125° e
127° CPP, interpretados no sentido de que “ao Arguido compete a prova - e prova documental - da não recepção do IVA de cuja apropriação ilícita é acusado, por ofensa do princípio da presunção de inocência consagrado no n° 2 do art.º 32° CRP”. Mas também nesta parte não parece possível conhecer-se do objecto do recurso. Não só porque também aqui é, pelo menos, bastante duvidoso que o Tribunal da Relação tenha aplicado, como ratio decidendi, esses preceitos na interpretação normativa que vem questionada – repare-se que o Tribunal afirma, a dado passo, que “a testemunha C., de forma peremptória, e ao contrário do que alega o recorrente, afirma que a sociedade cobrou o IVA referente a este processo”, acrescentando que “nenhuma prova há nos autos em sentido contrário ao referido”, o que parece sugerir que deu como provado que o arguido cobrou os valores facturados em função da existência nos autos de “positiva” prova nesse sentido, designadamente no testemunho citado, não infirmada, em seu entender, por nenhuma prova em sentido contrário - mas, decisivamente, porque, durante o processo, o arguido não suscitou, como devia, uma questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC pressupõe que o recorrente tenha suscitado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida e de forma processualmente adequada, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada. Mas, como resulta dos autos, durante o processo, concretamente na alegação que apresentou perante o Tribunal da Relação de Guimarães, peça aqui relevante, o recorrente não imputa a inconstitucionalidade, nesta parte, a normas aplicadas pela 1ª instância mas antes à própria decisão judicial que as aplicou. Para o demonstrar, basta transcrever as partes daquela peça processual em que o recorrente se refere a uma alegada violação de preceitos constitucionais:
“A douta sentença impugnada comporta ainda a crítica de ter imposto ao Arguido o
ónus da contraprova dos factos da acusação. Por outras palavras: violou o princípio da presunção da inocência”.
[...] Esta decisão não ofende apenas o princípio da legalidade da prova consagrado no artigo 125º, [...]. Ofende, acima de tudo, o princípio da presunção da inocência proclamado no art. 32º, n.º 2, CRP”. (itálicos aditados). E, nas conclusões:
“[...] 12. Por outro lado, [...] a sentença considerou provado o contrário
[...] 14. Além disso, fez assentar essa decisão de ter considerado provado o contrário de que resultava daquelas provas na consideração, de todo em todo inaceitável, de que ao arguido competia fazer a prova – e prova documental – de que não recebeu o IVA de cuja apropriação ilícita foi acusado.
15. O que ofende o princípio da legalidade da prova consagrado no art. 125º e, acima de tudo, o princípio da presunção da inocência consagrado no art. 32º, n.º
2, CRP, [...]”.
4. Nestas circunstâncias, parece que não estão preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não se poderá, com estes fundamentos, conhecer do seu objecto.
5. Por todo o exposto, entendemos ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias.”
8. Notificado para responder, querendo, à questão prévia suscitada pelo Ministério Público e ao parecer do relator, o recorrente nada disse no prazo legal.
9. O recorrido, por seu turno, veio dizer, a concluir, que, “a entender-se, de qualquer das formas, que há que dar como verificadas as circunstâncias assinaladas – “obiter dicta” e falta de pressupostos processuais – dúvidas não restam que o recurso não deverá ser conhecido”.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação.
10. Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Guimarães e não obstante ter sido determinada a produção de alegações, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC).
Emitido o parecer do relator, o recorrente nada disse.
Assim sendo, pelas razões constantes do despacho do relator notificado às partes, que não foram infirmadas e, por isso, aqui se reiteram, não pode efectivamente o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso, por se verificar, em relação à primeira questão, que a decisão recorrida não aplicou, como ratio decidendi, a interpretação normativa que vem questionada pelo recorrente, e, em relação à segunda questão, que o recorrente não suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa, que por este Tribunal pudesse ser conhecida.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida