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Proc.º n.º 244/2004.
3ª Secção. Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 18 de Março de 2004 o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
“1. Não se conformando com o despacho proferido em 23 de Outubro de
2003 pelo Juiz da 8ª Vara Criminal de Lisboa que, fundado na alínea a) do nº 1 do artº 202º e nas alíneas a), b) e c) do artº 204º, um e outro do Código de Processo Penal, já que se indiciava a ocorrência de perigos de fuga para fora do território nacional e de continuação da actividade criminosa, atendendo à sua apurada personalidade e à natureza e circunstâncias dos ilícitos que eram imputados ao arguido A. - que se encontrava pronunciado pela autoria de um crime de peculato, previsto e punível pelo artº 375º, nº 1, com referência ao artº
386º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, três crimes de branqueamento de capitais, previstos e puníveis pelo artº 2º, alínea b), do Decreto-Lei nº
325/95, de 2 de Dezembro, com referência ao artº 1º, alínea b), da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, e três crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis pelo artº 256º, números 1, alínea a), e 4, do Código Penal - para além de igualmente se indiciar a existência de perigo para a conservação e veracidade da prova, determinou que o mesmo aguardasse em prisão preventiva os ulteriores termos do processo que corria termos naquela Vara Criminal, logo que fosse libertado de um outro processo à ordem do qual se encontrava preso, recorreu para o indicado arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Na motivação adrede produzida, o arguido formulou, inter alia e para o que ora releva, as seguintes «conclusões»:
‘1.ª O presente recurso reporta-se a um acto decisório proferido por um juiz estranho ao colectivo que se encontra a julgar o presente processo, acto esse que, visto o seu teor literal e o espírito que o anima, bem como a sua contextualização com actos processuais antecedentes, proferidos por quem tinha competência profissional para tanto, significa o decretar da medida de prisão preventiva em relação o arguido.
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4.ª Os artigos 23º, 98º, 105º, n.º 1 e 107º da Lei n.º 3/99, de 13.01 [Lei Orgânica dos Tribunais] a terem uma dimensão normativa tal que permita a intervenção processual de um juiz que não integra o colectivo de juízes que se encontram a julgar um processo, permitindo-lhe que pratique nele qualquer acto processual, nomeadamente decretar prisão preventiva do arguido, são materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º 9 e 203º da CRP, já que implicam que uma causa seja subtraída a um tribunal cuja competência decorre de lei anterior e atentam contra a independência dos juízes, possibilitando intervenções alheias a quem julga.
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Notificado do «parecer» exarado pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido, «respondendo» ao mesmo, veio, em dado passo, dizer:
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7. O artigo 654º, n.º 3 [conjugado com o artigo 4º do CPP] prevendo que num processo criminal pendente, havendo transferência de juízes, a estes cabe apenas terminar o julgamento mas a outro juiz, que nunca teve intervenção no julgamento e não integra o colectivo de juízes cabe, passando a intervir no processo, em sobreposição com os demais ou nos intervalos da sua actuação, praticar actos que se projectam no estatuto pessoal e processual do arguido, mormente a prisão preventiva, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 32º, n.º
1 (direito de defesa), 32º, n.º 9 (juiz natural) e 203º (independência) da CRP.
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O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Fevereiro de
2004, concedeu ‘parcial provimento ao recurso, julgando improcedente a arguição de incompetência funcional do autor da decisão recorrida para a sua prolação’, declarando, porém, ‘a nulidade da decisão que determinou a prisão preventiva do arguido, sem prévia audição do mesmo, bem como dos actos posteriores por ela afectados’, em consequência ordenando que o arguido fosse restituído ‘à liberdade a menos que ordenada a prisão do arguido à ordem de outro processo’.
Na sequência, o arguido, conforme certidão exarada a fls. 369 verso destes autos, foi colocado em liberdade em 19 de Fevereiro de 2004.
Do acórdão de 19 de Fevereiro de 2004 interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, por seu intermédio pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos ‘artigos 23º, 98º, 105º, n.º 1, 107º e 108º da Lei n.º 3/99, de 13.01 [Lei Orgânica dos Tribunais], 323º do CPP, quando articulados com o artigo 654º do CPC, conjugado com o artigo 4º do CPP prevendo que num processo criminal pendente, havendo transferência de juízes, a estes cabe apenas terminar o julgamento mas a outro juiz, que nunca teve intervenção no processo e não integra o colectivo de juízes, cabe, passando a intervir no processo, em sobreposição com eles ou nos intervalos da sua actuação, praticar actos processuais nomeadamente o decretar de nulidades ou o proferir decisões sobre medidas de coacção ou outras que se projectem em direitos fundamentais ou atinjam o estatuto processual do arguido, com fundamento nos artigos 327º, n.º 1 e 338º do CPP’.
O recurso foi admitido por despacho lavrado em 2 de Março de 2004 pela Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa.
2. Porque tal despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82), entende-se ser proferir decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei.
Na verdade, por força do decidido pelo acórdão ora intentado impugnar, a validade jurídica do despacho determinativo da prisão preventiva do arguido deixou de subsistir, tendo, na sequência, sido determinada a sua restituição à liberdade, caso não tivesse de ficar preso à ordem de outro processo.
Ora, como é sabido, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa têm natureza instrumental, ou seja, só se revestem de utilidade caso a decisão nos mesmos tomada se possa, utilmente, repercutir na
«causa» de onde os mesmos emergiram.
Neste contexto, ainda que hipoteticamente o Tribunal Constitucional viesse a proferir um juízo de desconformidade fundamental acerca das normas cuja apreciação se intenta por intermédio do requerimento de interposição de recurso
(e isto independentemente de se analisar agora se poderia ser tomado conhecimento de todo o acervo normativo dele constante ou se tais normas - ou algumas delas - foram aplicadas com o exacto sentido interpretativo que em tal requerimento se questiona), essa circunstância não era projectável na decisão tomada pelo aresto que se desejou submeter ao veredicto deste órgão de administração de justiça, e isso, justamente, pela razão segundo a qual, como se viu, o despacho recorrido perante a Relação de Lisboa, por força daquela mesma decisão, foi objecto de anulação.
Se, porventura viesse (ou já tenha vindo - e este é um ponto de que os vertentes autos não dão a mínima notícia), na sequência da anulação do despacho de 23 de Outubro de 2003, a ser prolatado novo despacho judicial, pelo mesmo juiz, no exacto circunstancialismo funcional que anteriormente ocorrera e neste mesmo processo, despacho esse por via do qual fosse determinada a prisão preventiva do arguido, obviamente que seria esse eventual despacho o definitório da situação do visado quanto à sua sujeição à mais gravosa medida de coacção. E um tal hipotético despacho poderia, obviamente, ser impugnado, tendo como um dos suportes dessa impugnação precisamente aquele que foi brandido pelo ora recorrente e cujo não atendimento deu origem ao vertente recurso de constitucionalidade.
É que, uma vez mais se sublinha, seria esse eventual despacho - a subsistir a respectiva validade processual - aquele que definia a situação do arguido no tocante à medida de coacção em causa, não tendo, obviamente, um tal efeito o despacho de 23 de Outubro de 2003 que, devido à sua anulação, deixou de ter existência e repercussão processual.
Nestes termos, o presente recurso afigura-se como inútil, motivo pelo qual se não toma conhecimento do respectivo objecto.
Custas pelo impugnante, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta”.
Da transcrita decisão reclamou nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82 o A., dizendo na peça processual consubstanciadora da reclamação:
“1. O reclamante captou o sentido da decisão sob reclamação: ainda que hipoteticamente o Tribunal Constitucional viesse a proferir um juízo de desconformidade acerca das normas legais em apreciação «essa circunstância não era projectável na decisão tomada pelo aresto que se desejou submeter ao veredicto deste órgão de administração de justiça, e isso, justamente, pela razão segundo a qual [...] o despacho recorrido perante a Relação de Lisboa, por força daquela decisão, foi objecto de anulação» [fls. 382].
2. Ora é este raciocínio que, respeitosamente, pretendemos discutir.
3. Historiando brevemente o caso: um juiz de primeira instância, num processo em sede de julgamento, não integrando o colectivo que o vinha a julgar, proferiu despacho pelo qual decretou a prisão preventiva do arguido; esse despacho foi impugnado em sede de recurso para a Relação de Lisboa, ao qual foram colocadas várias questões, uma delas atinente à violação do contraditório na prolação do dito despacho, outra respeitante nulidade insanável emergente da não competência do autor do despacho, cuja intervenção significava alteração à composição do colectivo; a Relação, por acórdão que é o recorrido para o TC, desatendendo a matéria referente à competência do despacho, revogou o mesmo apenas por violação do contraditório, dada a não audição prévia do arguido.
4. Entrando na matéria sob reclamação:
(1) o recorrente suscita que (i) o acórdão da Relação decidiu a questão da competência funcional do autor do acto para ali recorrido, desatendendo-a e que
(ii) para isso, aplicou as normas legais que estão em discussão neste recurso
(iii) decidindo expressamente que as mesmas não estavam feridas de inconstitucionalidade material, questão essa que havia sido ali prevenida.
(2) o recorrente reconhece que o acórdão da Relação revogou o acto recorrido, com outro fundamento que não o da competência do autor do acto recorrido;
(3) houve, assim, sucumbência parcial, tanto que o recorrente foi condenado em custas na parte em que decaiu.
5. Só que importa reconhecer que:
(1) não é indiferente ao recorrente que o juízo emitido pelo Tribunal da Relação haja ou não considerado a questão da competência do autor do acto aplicando para tal efeito normas legais materialmente inconstitucionais, pelo que ele tem interesse em agir; E não é indiferente porque, se transitar o acórdão da Relação de Lisboa que está em causa o autor do acto terá visto consagrar judicialmente com força de caso julgado a sua competência para este acto - e para outros actos de cunho idêntico
- através da aplicação de normas jurídicas que o recorrente tem por materialmente inconstitucionais. A hipótese que a decisão sumária equaciona - e que na verdade sucedeu já no caso
- mais não é do que isso mesmo: o autor do acto, legitimado pelo aresto da Relação em que se reconhece a sua competência funcional e a conformidade constitucional das normas jurídicas de onde ela deriva, pratica actos subsequentes de igual natureza atinentes à prisão preventiva.
(2) qualquer juízo de desconformidade constitucional das normas legais aplicadas pelo Tribunal da Relação ainda pode projectar-se no acórdão da Relação, implicando a sua reforma no sentido de que a revogação do acto recorrido opere não só pelo fundamento com base no qual ela foi decretada - a violação do contraditório - mas também com fundamento na incompetência do autor do acto, pelo que a eficácia da decisão do TC é, assim, possível. o juízo de inconstitucionalidade que venha a ser proferido originará a reforma do acórdão recorrido no sentido da revogação do despacho recorrido não só com fundamento na violação do contraditório, como foi decidido, mas também com base na incompetência do autor do acto. Nestes termos, deve ser revogada a decisão sumária e feitos os autor seguir os seus termos, para que se conheça a questão que integra o objecto do recurso”.
Foram ouvidos sobre a reclamação o Ministério Público e os assistentes B., C., D. e E..
Somente a primeira entidade se pronunciou, o que fez nos seguintes termos:
“1 – O acórdão proferido pela Relação declarou a nulidade da decisão que havia determinado a prisão preventiva do arguido, sem prévia audição do mesmo.
2 – Implicando, pois, irrelutavelmente a prolação de um novo e autónomo despacho sobre tal matéria, o qual é naturalmente susceptível de impugnação pelas partes ou sujeitos processuais.
3 – E em relação ao qual poderá o arguido suscitar a questão decorrente da pretensa violação do princípio do juiz natural - questão obviamente ultrapassada e precludida relativamente ao despacho primeiramente proferido – e anulado pela
2ª instância.
4 – Sendo evidente que o decidido acerca da improcedência da arguição de incompetência funcional do autor da decisão anulada – constituindo precedente jurisprudencial sobre tal questão – não justifica o conhecimento do mérito do recurso de constitucionalidade interposto.
5 – Na verdade, a fiscalização da constitucionalidade, atento o seu carácter instrumental não visa prevenir litígios futuros e hipotéticos, mas apreciar questões de constitucionalidade normativa decisivas para solução dada efectivamente ao litígio pelas instâncias”.
Cumpre decidir.
2. Não se nega que o Tribunal da Relação de Lisboa, no tocante à questão da “incompetência funcional do autor da decisão recorrida para a sua prolação” não sufragou a óptica do então e agora recorrente no sentido de ser contrário à Constituição determinado sentido normativo atribuído à conjugação de dados preceitos da Lei Orgânica dos Tribunais de onde resulte que a possibilidade de “intervenção processual de um juiz que não integra o colectivo de juízes que se encontram a julgar um processo, permitindo-lhe que pratique nele qualquer acto processual, nomeadamente decretar prisão preventiva do arguido”.
Simplesmente, o despacho então impugnado foi anulado por outros motivos que não o da aludida “incompetência funcional”, pelo que a decisão e respectivos fundamentos, constante do acórdão agora pretendido submeter a apreciação pelo Tribunal Constitucional, se fundou numa outra ordem de razões que não aquelas conexionadas com a alegada “incompetência”.
Isso significa que, passando em julgado aquele aresto, unicamente aquela decisão, estribada no fundamento que a ditou, é que, no processo, se tornará indiscutível.
Sendo assim, e como se assinalou na decisão sub iudicio, mesmo que o Tribunal Constitucional viesse porventura a efectuar um juízo de desconformidade com a Lei Fundamental relativamente àquele sentido normativo, a Relação de Lisboa não iria reformar a decisão ínsita no acórdão de 19 de Fevereiro de 2004.
E não iria proceder a qualquer reforma justamente porque, estando então em causa, no recurso que para ela foi interposto, a anulação do despacho então impugnado, dado que tal anulação veio a ser determinada, subsistindo os motivos dela determinantes, obviamente que se não impunha a tomada de nova decisão.
Por isso, e talqualmente se disse na indicada decisão, o eventual juízo que este Tribunal efectuasse sobre a questão de constitucionalidade não iria ter projecção do feito de onde emergiu.
E nem se argumente com o entendimento segundo o qual o não atendimento da perspectiva da desconformidade constitucional suscitado pelo recorrente iria, no processo, tornar-se firme.
É que, como resulta do que já acima se veio de expor, não se poderá considerar como firmado no processo, em termos de não mais poder ser proferido ou não mais ser passível de impugnação (nesta se argumentando precisamente com motivos idênticos àqueles que foram utilizados no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e de onde emergiu o vertente recurso), um despacho de jaez semelhante ao que foi recorrido perante aquele Tribunal de 2ª instância, despacho esse a ser tomado, eventual e futuramente, por um juiz postado em condições semelhantes às que se reportou a motivação do recurso para aquele mesmo Tribunal.
Em face do que se deixa dito, indefere-se a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 30 de Abril de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida