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Processo n.º 603/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A Associação de Municípios da Região Autónoma da Madeira vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 31 de Maio de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A Associação de Municípios da Região Autónoma da Madeira interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), do acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 19 de Fevereiro de 2004, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das:
1) «normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º e do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro, ao retirarem à Região Autónoma da Madeira uma actividade, e sua regulamentação, e seus proventos que respeitavam
à dita Região, sem que esta tivesse sido ouvida», por violação do n.º 2 do artigo 231.º (hoje, n.º 2 do artigo 229.º) da Constituição da República Portuguesa (CRP), questão de inconstitucionalidade que teria sido suscitada, nomeadamente, nas conclusões VIII a X das alegações para o Pleno da 1.ª Secção do STA; e da
2) «norma do artigo 3.º do referido Decreto-Lei n.º 314/94, ao remeter a integração deste diploma para regulamento, em matérias tão importantes como a organização, funcionamento e condições de habilitação de um jogo já atribuído e apenas genericamente definido», por violação do n.º 5 do artigo
115.º (hoje, n.º 6 do artigo 112.º) da CRP, questão de inconstitucionalidade que teria sido suscitada, nomeadamente, na conclusão XIV da alegação para o Pleno da 1.ª Secção do STA.
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do STA, decisão que não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC). E, com efeito, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC.
2. Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada
«durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Este último requisito não se verifica, no presente caso, relativamente a nenhuma das questões de inconstitucionalidade suscitadas.
3. A questão da inconstitucionalidade, por falta de audição da Região, reportada aos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, e 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94 pressupunha que se reconhecesse que essas normas haviam retirado à Região uma actividade (e a competência para a sua regulamentação), que anteriormente lhe estava atribuída. Não foi esse o entendimento acolhido no acórdão recorrido, sendo sabido que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção da interpretação do direito ordinário a que procederam as instâncias – ao Tribunal Constitucional apenas cabe apreciar se a interpretação normativa perfilhada na decisão recorrida viola, ou não, princípios ou normas constitucionais.
O acórdão recorrido, no n.º 5 da sua parte III, expressamente refere que «a omissão da audiência de órgãos regionais na emissão do Decreto-Lei n.º
314/94 não constitui nenhuma inconstitucionalidade quando, vistos os diplomas anteriores – Decretos-Leis n.º 420/80 e 318/84 –, os mesmos sejam interpretados, de acordo com o seu teor literal e os seus fins, de maneira que as atribuições para concessão de jogos de fortuna ou azar do tipo lotaria continuam a pertencer ao Governo», acrescentando que «o Decreto-Lei n.º 314/94 e o acto administrativo que nele se contém não foi precedido da transferência de atribuições que a recorrente pressupõe, pelo que não há nele ofensa de regras de distribuição de atribuições entre os órgãos da República e das Regiões, de modo que também desta perspectiva não existe a nulidade que a recorrente invoca».
Isto é: o tribunal recorrido interpretou os Decretos-Leis n.ºs
420/80 e 318/84 como não tendo operado a transferência da atribuição para a concessão dos jogos em causa do Governo para a Região, interpretação que o Tribunal Constitucional não pode censurar. Assim sendo, pelo questionado Decreto-Lei n.º 314/94 não se procedeu a qualquer transferência de atribuições da Região para o Governo, antes se manteve na esfera deste uma atribuição que já lhe pertencia. Não perfilhou, pois, o acórdão recorrido a interpretação que a recorrente argui de inconstitucional: a de que seria admissível proceder-se a uma transferência de atribuições da Região para o Governo sem audição dos
órgãos regionais.
Por falta deste requisito, não há que conhecer desta parte do objecto do recurso.
4. Quanto à questão da inconstitucionalidade reportada à norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, importa assinalar que, no acórdão da 1.ª Subsecção da 1.ª Secção do STA, de 20 de Novembro de 2002, confirmado pelo acórdão do Pleno da 1.ª Secção ora recorrido, se julgara procedente a excepção da extemporaneidade do recurso contencioso na parte relativa ao vício cuja suscitação se fundara na arguição dessa inconstitucionalidade. Tratava-se do vício referido na conclusão V das alegações da recorrente no recurso contencioso («V – Se entender que o Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro, tem uma parte com conteúdo normativo, é, nessa parte, inconstitucional, por remeter a parte fundamental do regime jurídico (cf. o seu artigo 3.º) para mera regulamentação, com o que terá violado o n.º 5 do artigo 115.º da Constituição, na versão vigente à data do acto recorrido.»). Relativamente a este vício (tal como os invocados nas conclusões II e III), o acórdão da 1.ª Subsecção do STA sustentou que, apesar de os mesmos se reportarem à violação de princípios e normas constitucionais, eram geradores de mera anulabilidade (e não de nulidade) dos actos administrativos que tivessem feito aplicação dessas normas alegadamente inconstitucionais, e, por isso, o correspondente recurso contencioso estava sujeito aos prazos de interposição fixados no artigo 28.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), sendo manifesta a extemporaneidade do recurso (interposto em Junho de 2000 e tendo por objecto um acto administrativo contido num decreto-lei publicado em 23 de Dezembro de
1994 e que iniciou a sua vigência na Região Autónoma da Madeira 15 dias após a sua publicação). Consequentemente, o dito acórdão limitou a análise do mérito do recurso contencioso à matéria vertida na conclusão VII da respectiva alegação, por estar aí em causa um vício (exercício pelo Conselho de Ministros, órgão da pessoa colectiva Estado, de atribuições pretensamente pertencentes aos órgãos da Região Autónoma da Madeira), susceptível de gerar nulidade (artigo 133.º, n.º 2, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo (CPA): «São, designadamente, actos nulos: (...) b) Os actos estranhos às atribuições dos ministérios ou das pessoas colectivas referidas no artigo 2.º em que o seu autor se integre»), e, por isso, impugnável a todo o tempo.
Na alegação do recurso interposto para o Pleno da 1.ª Secção do STA, a recorrente recolocou a questão nos termos sintetizados na conclusão XIV dessa peça processual, do seguinte teor:
«No que possa ter de normativo, o Decreto-Lei n.º 314/94, ao remeter toda a disciplina para uma portaria, violou o então n.º 5 do artigo 115.º, actual n.º 6 do artigo 112.º da Constituição.
Não pode, pois, também nessa parte, ser esse Decreto-Lei n.º 314/94 aplicado, por a tanto obstar o artigo 204.º da Constituição, já referido.
Assim, o acto da concessão de um jogo sem regime jurídico estabelecido é de conteúdo impossível ou, pelo menos, ininteligível, pelo que
é nulo, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo.
Por isso, também quanto a este vício, o recurso é tempestivo.»
Relativamente a esta questão, o acórdão ora recorrido consignou o seguinte:
«6. A recorrente ataca ainda o acto com fundamento em que o Decreto-Lei n.º 314/94, ao remeter a disciplina normativa da lotaria que criou para uma portaria, teria violado o n.º 5 do artigo 115.º da Constituição, na redacção então em vigor, pelo que não pode ser aplicado, e a concessão de um jogo sem regime jurídico estabelecido é um acto de conteúdo impossível ou indeterminável, ou pelo menos ininteligível, pelo que seria nulo.
A recorrente visa atingir o acto com a sanção de nulidade por ser de conteúdo impossível ou indeterminável, uma das modalidades de acto nulo que a doutrina assinala e que o CPA prevê no artigo 133.º, n.º 2, alínea c).
O conteúdo do acto impugnado consiste em conceder em todo o território a lotaria instantânea à SCML [Santa Casa da Misericórdia de Lisboa] e regular as respectivas características e condições. Quanto a estas, as características e as condições, elas estão claramente enunciadas nos artigos
1.º, 2.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 314/94, ao mesmo tempo que o artigo 3.º permite que em regulamento aprovado por portaria sejam fixados aspectos de execução, como as condições de habilitação aos prémios, o seu número, o preço do bilhete e o valor para prémios a retirar da receita líquida.
Esta regulamentação assim prevista é relativa a aspectos de execução concreta sem inovar quanto às características e condições do jogo cujo resultado líquido é distribuído segundo regras exaustivas fixadas no artigo 2.º do diploma com força de lei e conforma-se com a reserva de lei constitucionalmente exigida, pelo que não se mostra violada a regra do artigo
115.º, n.º 5, da Constituição, na redacção em vigor à época.
Assim, o acto não é de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável, nem sofre do vício de nulidade que lhe é oposto.»
De novo se constata que o acórdão impugnado não fez aplicação da dimensão normativa arguida de inconstitucional pela recorrente, mesmo atendendo à modificação por ela operada entre a formulação usada na alegação apresentada perante o tribunal recorrido (em que afirmava que o diploma legal remetera «todo a disciplina» para uma portaria) e a formulação usada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (em que passou a aludir a «matérias tão importantes como a organização, funcionamento e condições de habilitação» que teriam sido remetidas para portaria). Ora, o que o acórdão recorrido entendeu foi que a remissão para regulamento abarcava apenas «aspectos de execução», já que «as características e as condições [do jogo em causa] estão claramente enunciadas nos artigos 1.º, 2.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 314/94» e a recorrente não contesta estas qualificações. Isto
é: o acórdão recorrido não fez aplicação da dimensão normativa arguida de inconstitucional pela recorrente. O que nesse acórdão, de modo determinante, se afirmou foi que o acto administrativo contenciosamente impugnado não era de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável; por isso, não padecia da nulidade cominada no artigo 133.º, n.º 2, alínea c), do CPA; logo, estava sujeito ao prazo de interposição dos recursos contenciosos dos actos anuláveis
(artigo 28.º da LPTA); por conseguinte, fora extemporânea a sua impugnação, apresentada mais de cinco anos após a sua publicação e início de execução, sendo certo que nenhuma questão de inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente quanto às normas dos artigos 133.º, n.º 2, alínea c), do CPA e 28.º da LPTA.
Em suma: nenhuma das normas cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada foi aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido, pelo que é inadmissível o recurso interposto, não havendo que conhecer do seu objecto.”
1.2. A reclamação apresentada pela recorrente contra o despacho do relator desenvolve a seguinte argumentação:
“1 – Nesse despacho e quanto ao primeiro ponto apreciado, foi entendido que a questão da inconstitucionalidade pressupunha que se reconhecesse que essas normas haviam retirado à Região uma actividade (e a competência para a sua reclamação [sic; ter-se-á querido escrever regulamentação]), que anteriormente lhe estava atribuída.
Ora, não é rigorosamente assim; para a hipótese de prevalecer a tese de que a competência nunca fora transferida para a Região Autónoma, a reclamante invocou o facto de, de qualquer forma, os órgãos da Região terem interpretado o Decreto-Lei n.° 420/80 como tendo transferido para eles a competência em causa, o que levara o Presidente do Governo Regional a conceder o jogo, em Despacho publicado no Jornal Oficial da Região, que não podia ser ignorado pelo Governo, pelo menos através do seu Ministro da República, entidades estas que não podiam ignorar as actividades exercidas com as receitas proporcionadas pelo jogo.
Estas circunstâncias estão evidenciadas nos autos e não foram negadas no Acórdão recorrido.
O n.° 2 do artigo 229.° da Constituição não exige que sejam atingidos direitos legalmente constituídos, mas que se trate de questão
«respeitante» à Região.
Deve, pois, o Tribunal Constitucional conhecer deste aspecto do recurso.
2 – O STA aplicou a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.° 314/94 – disso parece não haver dúvida – e a inconstitucionalidade desta norma foi invocada pela reclamante.
A questão de saber se essa inconstitucionalidade gera nulidade ou anulabilidade, terá reflexos no prazo da impugnação do acto administrativo.
Mas não estamos a invocar, neste momento, a ilegalidade de um acto administrativo, mas sim a inconstitucionalidade duma norma, efectivamente aplicada, questão que não tem prazo para invocação.
Também esta questão deve, pois, ser apreciada.
Pelo exposto, requer que o presente recurso seja apreciado pelo Tribunal Constitucional.”
1.3. Notificados os recorridos, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa apresentou a seguinte resposta:
“1. A presente reclamação vem interposta da decisão sumária proferida pelo Ex.mo Relator ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), com as alterações sucessivas introduzidas pelas Leis n.ºs
143/85, de 26 de Novembro, 85/89, de 7 de Setembro, 88/95, de 1 de Setembro, e
13-A/98, de 26 de Fevereiro, adiante sempre designada por Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Aquela decisão sumária decidiu não conhecer do objecto do recurso, no quadro dos requisitos específicos (ou dos pressupostos processuais) do recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
3. Com efeito, na decisão sumária ora posta em crise pela recorrente decidiu-se que «...nenhuma das normas cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada foi aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido, pelo que é inadmissível o recurso interposto, não havendo que conhecer do seu objecto».
4. A decisão sumária, ao decidir não conhecer do objecto do recurso
(por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos), traduziu-se, assim, numa decisão de forma.
5. Porém, a recorrente, no seu requerimento de reclamação para a conferência, parece assentar a sua discordância relativamente à decisão sumária fundamentalmente sobre aspectos que se relacionam mais com o mérito ou o fundo da causa.
Vejamos.
6. O Supremo Tribunal Administrativo (STA) considerou, no acórdão recorrido, duas ordens de fundamentos normativos para negar provimento ao recurso interposto, a saber:
a) «...o Decreto-Lei n.º 420/80, (..), não se referia a exploração de jogos, como actividade susceptível de exploração, o que pressupõe continuidade, mas sim aos jogos de fortuna ou azar, afins dos que são explorados como actividade permanente, isto é, a autorizar ocasional ou sazonalmente (..). E também não se refere o Decreto-Lei n.º 420/80 a nenhuma transferência de atribuições para as Regiões Autónomas, mas ao exercício de atribuições que continuaram a pertencer ao Governo da República pelos governos regionais.
(...); (...) O Decreto-Lei n.º 420/80 não pode ser interpretado como tendo transferido as atribuições do Governo da República em matéria de concessão de autorização para explorar lotarias com carácter continuado, como exploração de um jogo do tipo lotaria, na Região Autónoma da Madeira».
b) «O conteúdo do acto impugnado [praticado pelo Conselho de Ministros e contido no Decreto-Lei n.º 314/94] consiste em conceder em todo o território a Lotaria Instantânea à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e regular as respectivas características e condições, elas estão claramente enunciadas nos artigos 1.º, 2.º, 4.º e 5.º do DL n.º 314/94, ao mesmo tempo que o artigo 3.º permite que em regulamento aprovado por Portaria sejam fixados aspectos de execução, como as condições de habilitação aos prémios, o seu número, o preço do bilhete e o valor para prémios a retirar da receita líquida. Esta regulamentação assim prevista é relativa a aspectos de execução concreta, sem inovar quanto às características e condições do jogo (...) e conforma-se com a reserva de lei constitucionalmente exigida (...)».
7. Ora, conforme salienta na decisão sumária o Ex.mo Relator, «A questão da inconstitucionalidade, por falta de audição da Região, reportada aos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, e 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94 pressupunha que se reconhecesse que essas normas haviam retirado à Região uma actividade (e a competência para a sua regulamentação), que anteriormente lhe estava cometida. Não foi esse o entendimento acolhido no acórdão recorrido, sendo sabido que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção da interpretação do direito ordinário a que procedem as instâncias (...)». (O sublinhado é nosso).
8. Saber se o STA não ponderou ou devia ter ponderado doutra forma, no acórdão recorrido (como agora pretende a recorrente, ora reclamante),
– a interpretação do Decreto-Lei n.º 420/80 perfilhada pelos órgãos da Região;
– o despacho assinado pelo Presidente do Governo Regional, publicado no Jornal Oficial da Região; e
– a relevância do conhecimento desse Despacho pelo Ministro de República para a Região,
equivaleria, a nosso ver, a que o Tribunal Constitucional sindicasse, em sede de apreciação de uma decisão de forma (a decisão sumária proferida), a correcção da solução de direito em que o acórdão recorrido assentou.
O que nos parece escapar, de todo, ao objecto da presente reclamação para a conferência.
9. Por outro lado, no que toca à norma constante do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro, na decisão sumária proferida considerou-se que «...o acórdão recorrido não fez aplicação da dimensão normativa arguida de inconstitucional pela recorrente. O que nesse acórdão, de modo determinante, se afirmou foi que o acto administrativo contenciosamente impugnado não era de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável;
(...)».
Porém, no seu requerimento de reclamação para a conferência, a recorrente sustenta que «O STA aplicou a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94 – disso parece não haver dúvida – (...)».
Salvo o devido respeito (que é muito), julgamos que o STA não fez aplicação da norma em causa, na dimensão normativa arguida de inconstitucional pela recorrente, ora reclamante.
10. Em termos gerais, o objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é a questão da inconstitucionalidade de norma(s) de que a decisão recorrida faça efectiva aplicação.
11. No caso sub judice, a apreciação da questão da inconstitucionalidade, suscitada pela recorrente, estava condicionada por uma efectiva aplicação, pelo acórdão impugnado, da norma constante do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro (Neste sentido, v. Acórdãos do TC n.ºs
162/88, 284/94, 364/96, 674/99 e 125/2000.)
12. Conforme se salienta no Acórdão n.º 504/97 do TC, « ...só pode dizer-se que se aplica uma norma quando ela constitui a ratio decidendi da decisão, isto é, o fundamento normativo do seu próprio conteúdo e não quando é mencionada como simples obiter dictum».
13. Com efeito, verifica-se ser jurisprudência pacífica e uniforme do TC em sede de recurso de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, além de outros requisitos indispensáveis à sua admissibilidade, que a decisão recorrida tenha feito aplicação dessa norma como sua ratio decidendi, ou seja, como fundamento normativo do seu próprio conteúdo, ou do julgamento da causa. (Assim, neste sentido, v. os Acórdãos do TC n.ºs 307/89, 82/92, 158/93, 116/93, 635/93,
367/94, 125/95, 408/95, 496/99, 674/99, 155/2000, 157/2000 e 232/2002).
14. No caso dos presentes autos, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro, não relevou, de forma decisiva, para a consideração segundo a qual o acto administrativo contenciosamente impugnado não era de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável.
O que significa que ela não constituiu, nem haveria de constituir, ratio decidendi do acórdão recorrido, isto é, fundamento normativo do seu próprio conteúdo.
15. Com efeito, a solução de direito alcançada no acórdão recorrido assentou, fundamentalmente, na consideração das características da Lotaria instantânea e nas condições a que se subordina a sua exploração, reguladas, respectivamente, nos artigos 1.º, 2.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 314/94.
A consideração daquelas características e condições levaram o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA a concluir que o acto administrativo impugnado não era de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável.
16. Em síntese, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, de
23 de Dezembro, não foi aplicada pelo acórdão recorrido como sua ratio decidendi, isto é, como fundamento normativo do seu próprio conteúdo.
17. Diga-se, a concluir, que já anteriormente o STA se havia pronunciado no mesmo sentido em que se pronunciou no acórdão recorrido.
Assim, no acórdão da 1.ª Subsecção do Contencioso Administrativo, datado de 22 de Maio de 1997, tirado no âmbito do recurso n.º 37 220 (sumariado em www.dgsi.pt/jsta), concluiu-se:
«I – (...).
II – (...).
III – Às Regiões Autónomas está constitucionalmente vedada a emissão de actos normativos de carácter geral que excedam as matérias de interesse específico da Região.
IV – Só o Governo, em confronto com as Regiões Autónomas, tem competência constitucional para a qualificação de um jogo como lotaria ou jogo afim.
V – Sendo o jogo qualificado como lotaria instantânea, excluída está a transferência das competências da regulação da sua exploração para as Regiões Autónomas, [visto] a exploração de lotarias caber, em exclusivo e em todo o território nacional, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.»
18. Ainda no âmbito do mesmo recurso, o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA, por acórdão de 23 de Junho de 1998, haveria de fixar a seguinte jurisprudência, assim sumariada (no mesmo site):
«I – O Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro, além do acto administrativo de concessão à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa do jogo
“Lotaria Instantânea”, contém também um conjunto de disposições normativas emanadas da competência legislativa do Governo que, [com] carácter geral e abstracto, introduzem no ordenamento jurídico português uma nova modalidade de lotaria, definem o respectivo conceito e estabelecem as normas relativas à sua organização e funcionamento.
II – Sendo constitucionalmente válida, não pode deixar de se aceitar a qualificação jurídica do jogo em análise com lotaria, feita no articulado do Decreto-Lei n.º 314/94, devendo extrair-se dessa qualificação as necessárias consequências jurídicas.
III – Estabelecida legalmente a qualificação do jogo “Lotaria Instantânea” como uma modalidade de lotaria e estando excluída da transferência para as Regiões Autónomas a autorização para conceder e organizar as lotarias, não é incompatível, nem viola o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 420/80, de 29 de Setembro, o acto administrativo contido no Decreto-Lei n.º 314/94, que concede à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o direito de explorar, em regime de exclusivo, em todo o território nacional, aquele jogo.»
Nestes termos e nos mais de Direito, sem esquecer o douto suprimento de V. Ex.as, deve a presente reclamação contra a não admissão do recurso ser indeferida, uma vez que o acórdão impugnado não aplicou, como ratio decidendi, as normas arguidas de inconstitucionais pela recorrente, não havendo, pois, que conhecer do seu objecto, como bem decidiu, aliás, o Ex.mo Relator na decisão sumária proferida.”
1.4. Também o Primeiro Ministro apresentou resposta, nos seguintes termos:
“1. A recorrente invoca que o Tribunal Constitucional deve conhecer da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º e do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 314/94, de 23 de Dezembro, por este, alegadamente, violar o artigo 229.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Contudo, aquelas disposições não foram aplicadas, como ratio decidendi, pelos acórdãos recorridos, uma vez que o Supremo Tribunal Administrativo considerou que as mesmas não retiravam à Região Autónoma da Madeira atribuições em matéria de concessão de jogos de fortuna ou azar, já que essas atribuições não tinham sido transferidas para aquela Região pelos Decretos-Leis n.ºs 420/80 e 318/84, de 29 de Setembro e de 1 de Outubro, respectivamente.
Assim, é totalmente irrelevante – ao contrário do que afirma a recorrente no requerimento de reclamação – que os órgãos da Região tenham interpretado o Decreto-Lei n.° 420/80, de 29 de Setembro, como tendo operado essa transferência de atribuições, e que, por isso, o Decreto-Lei n.° 314/94, de
23 de Dezembro, trata de uma questão «respeitante» à Região.
É que não pode ser a interpretação dada pelos órgãos da Região Autónoma a determinar se uma questão diz ou não respeito à Região para efeitos do artigo 229.°, n.° 2, da CRP.
De facto, se objectivamente o Decreto-Lei n.° 420/80, de 29 de Setembro, não operou qualquer transferência de competências para a Região Autónoma da Madeira, o Decreto-Lei n.° 314/94, de 23 de Dezembro, versando sobre competências que nunca deixaram de pertencer ao Governo, não diz respeito à Região.
Foi este o entendimento adoptado pelo Supremo Tribunal Administrativo, pelo que este Tribunal não perfilhou a interpretação que a recorrente considera violadora do artigo 229.°, n.° 2, da CRP, ou seja, a de que poderia haver transferência de atribuições da Região Autónoma para o Governo sem audição daquela.
2. A recorrente alega ainda que o Tribunal Constitucional deve apreciar a alegada inconstitucionalidade da norma contida no artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 314/94, de 23 de Dezembro, na medida em que essa norma foi aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo na decisão recorrida.
Não é, no entanto, assim.
O Supremo Tribunal Administrativo não aplicou a norma do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 314/94, de 23 de Dezembro, tendo, antes, decidido que, com base nas «características e condições claramente enunciadas nos artigos l.º, 2.° e 4.°» daquele diploma, o acto administrativo contido no mesmo não era de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável, pelo que não violava o artigo 133.°, n.° 2, alínea c), do CPA.
Sendo assim, a dimensão normativa do artigo 3.° do Decreto-Lei n.°
314/94, de 23 de Dezembro, arguida de inconstitucionalidade pela recorrente, não
é aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo na decisão objecto de recurso.
Nestes termos, nenhuma das normas cuja inconstitucionalidade é invocada pela recorrente foi aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido, pelo que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional não é admissível.”
1.5. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Relativamente à primeira questão de constitucionalidade suscitada pela reclamante, a mesma foi identificada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional – peça que, como é sabido, delimita o objecto do recurso, inviabilizando o ulterior alargamento do seu âmbito – em termos de a inconstitucionalidade derivada da falta de audição dos órgãos da Região estar indissociavelmente ligada ao alcance, atribuído às normas questionadas, de retirada de actividade (sua regulamentação e seus proventos) respeitante à Região. Recorda-se a formulação utilizada: “normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º e do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro, ao retirarem à Região Autónoma da Madeira uma actividade, e sua regulamentação, e seus proventos que respeitavam
à dita Região, sem que esta tivesse sido ouvida”.
Entendeu-se na decisão sumária reclamada que o acórdão recorrido não aplicou a dimensão normativa assim arguida de inconstitucional, já que partiu da constatação de que, legalmente, nunca a actividade em causa (sua regulamentação e seus proventos) fora transferida para a Região, tendo sempre permanecido no domínio do Governo da República, pelo que não era constitucionalmente exigida a audição dos órgãos da Região sobre a edição de normas e prática de actos administrativos respeitantes a essa matéria. Isto é: nunca o acórdão recorrido assumiu a interpretação – que a reclamante lhe imputou
– de que não era inconstitucional a retirada de competências da Região sem audição dos seus órgãos. Logo, não tendo sido aplicada pelo acórdão recorrido a interpretação normativa arguida de inconstitucional, não é admissível, quanto a esta questão, o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC.
Mas mesmo que assim se não entenda e que se considere que a referência à prévia transferência dos poderes em causa do Estado para a Região não constituía delimitação da dimensão normativa arguida de inconstitucional, mas antes fundamento da tese da inconstitucionalidade, então a questão de inconstitucionalidade há-de ter-se por manifestamente infundada, uma vez que, face à interpretação do direito ordinário que a decisão ora recorrida assumiu (e cuja correcção, como já se disse, o Tribunal Constitucional, no
âmbito deste processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, não pode sindicar), no sentido de que os Decretos-Leis n.ºs 420/80 e 318/84 não haviam transferido para a Região a competência para regulamentar a lotaria em causa, carece claramente de base de sustentação o entendimento de que a emissão de um diploma legislativo do Governo da República regulador de actividade que sempre esteve sob o domínio do Estado houvesse de ser precedida, por imposição constitucional, de audição dos órgãos regionais.
Por outro lado, a circunstância de – como agora refere a reclamante, na sua reclamação, referência que omitiu no requerimento de interposição de recurso – órgãos regionais terem ilegalmente (segundo o entendimento adoptado pelo acórdão recorrido) regulado a actividade em causa jamais poderia ter por efeito a restrição ou o condicionamento das competências dos órgãos de soberania, pelo que também a questão de inconstitucionalidade assim perspectivada sempre seria de rotular como manifestamente infundada, se dela fosse de conhecer.
2.2. Igualmente falece razão à reclamante quanto à segunda questão suscitada.
Ela prende-se com a questão da extemporaneidade do recurso contencioso, por sua vez dependente da qualificação do vício imputado ao acto impugnado como gerador de nulidade ou de anulabilidade. A reclamante inicialmente baseou a tese da nulidade por o acto ser estranho às atribuições da pessoa colectiva em que o seu autor se integre (artigo 133.º, n.º 2, alínea b), do CPA): o Conselho de Ministros, órgão da pessoa colectiva Estado, teria exercido atribuições pertencentes à Região Autónoma da Madeira. Afastada, pelo acórdão da 1.ª Subsecção do STA, esta usurpação de atribuições, a reclamante assentou, nas alegações para o Pleno da 1.ª Secção do STA, a tese da nulidade numa outra base: o acto seria nulo por ser de conteúdo impossível ou, pelo menos, ininteligível, por o Decreto-Lei n.º 314/94, ao remeter “toda a disciplina” da matéria em causa para uma portaria, violar o então artigo 115.º, n.º 5 (hoje, artigo 112.º, n.º 6), da CRP. O acórdão ora recorrido entendeu não ocorrer essa causa de nulidade, porque, consistindo o conteúdo do acto impugnado na concessão à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa da exploração da lotaria instantânea em todo o território nacional e na regulação das respectivas características e condições, estas “estão claramente enunciadas nos artigos 1.º,
2.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 314/94” – apenas permitindo o artigo 3.º que
“aspectos de execução concreta” sejam regulados por portaria, “sem inovar quanto
às características e condições do jogo cujo resultado líquido é distribuído segundo regras exaustivas fixadas no artigo 2.º” –, em termos tais que o acto não é de considerar de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminável, isto é, não padece desse vício gerador de nulidade. Por isso, estava sujeito ao prazo de impugnação fixado no artigo 28.º da LPTA, pelo que o recurso interposto, mais de 5 anos após o acto, é manifestamente extemporâneo.
As normas aplicadas, como ratio decidendi, nesta parte do acórdão recorrido, foram, assim as do artigo 133.º, n.º 2, alínea c), do CPA, e do artigo 28.º da LPTA, a respeito das quais nenhuma questão de inconstitucionalidade foi suscitada pela reclamante. As normas constantes do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/94, na sua estatuição material, não foram aplicadas pelo tribunal recorrido, que se limitou a constatar que a enunciação das características e condições da lotaria em causa, feita nos artigos 1.º, 2.º,
4.º e 5.º desse diploma, era suficiente para que o acto não fosse considerado de conteúdo impossível, ininteligível ou indeterminado.
Também quanto a esta questão, não tendo o acórdão recorrido feito aplicação, como ratio decidendi, da norma impugnada, o recurso era inadmissível, não havendo que conhecer do seu objecto.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Lisboa, 15 de Julho de 2004.
Mário José de Araújo Torres Benjamim Silva Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos