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Proc. n.º 213/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 682 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e mulher, pelos seguintes fundamentos:
“4. O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 2.).
4.1. O recurso previsto na mencionada alínea c) pressupõe que o tribunal recorrido tenha recusado a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Ora, percorrendo o texto da decisão recorrida (supra, 2.), facilmente se verifica que o tribunal recorrido não recusou a aplicação de qualquer norma constante de acto legislativo, com tal fundamento. Dito de outro modo, o tribunal recorrido não só não recusou a aplicação das normas do Código Civil identificadas pelos recorrentes por considerar que essas normas violavam o disposto no Código de Registo Predial, como também não entendeu (nem, aliás, podia entender, atendendo à definição que de lei com valor reforçado dá o artigo 112º, n.º 3, da Constituição) que o Código de Registo Predial constituía lei com valor reforçado. Não estão, assim, preenchidos os pressupostos processuais do recurso previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não pode conhecer-se do respectivo objecto.
4.2. O presente recurso foi ainda interposto ao abrigo da alínea f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Tal preceito prevê o recurso para o Tribunal Constitucional de decisões judiciais “que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)”.
Ora, percorrendo o texto da decisão recorrida (supra, 2.), também facilmente se conclui que nela não foi aplicada qualquer norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento em violação de lei com valor reforçado ou com fundamento em violação do estatuto de região autónoma ou de lei geral da República (cfr. as referidas alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional).
Não estão, assim, e sem necessidade de mais considerações, preenchidos os pressupostos processuais do recurso previsto na alínea f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não pode conhecer-se do respectivo objecto.”.
2. Notificados desta decisão, A. e mulher vieram reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal
(requerimento de fls. 695 a 712), invocando, em síntese, para o que agora releva:
“1º [...] Pelo que se põe à consideração dos Excelentíssimos Conselheiros se, no caso concreto, será aplicável o princípio de processo civil em que o erro na espécie de recurso é irrelevante devendo os termos subsequentes ser processados de acordo com a espécie que venha a ser julgada adequada (nos termos supletivos previstos no art. 702° do Código de Processo Civil). Com efeito, caso se entendesse que se trata de um caso de aplicação do art. 5° do Código de Registo Predial, em vez de um caso de recusa de aplicação por violação do art. 62° da Constituição, a questão devia ser apreciada à luz da alínea b), e não das alíneas das alíneas c) e f) conforme foi apresentado anteriormente.
Assim sendo e caso assim se entenda, os pressupostos de apreciação do recurso de inconstitucionalidade deveriam ser reapreciados à luz da efectiva interpretação do art. 5° do Código de Registo Predial que o Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça efectuou ao aplicar tal artigo. Pois neste Acórdão recorrido julgou-se que o princípio da fé registral expresso no art. 5° do Código de Registo Predial «estabelece uma excepção à regra de que ninguém pode transmitir mais do que o que detém» (2° parágrafo da página 15 do Acórdão Recorrido) e esta foi a ratio decidendi do Acórdão recorrido. Entendeu-se que o limite do direito de propriedade dos ora Recorrentes (cuja garantia constitucional se encontra no art. 62° da Constituição) estava previsto no art.
5°, nº 1, do Código de Registo Predial, Código este que, segundo parece ser entendimento constante, não constitui lei de valor reforçado.
2° - Em alternativa, e reverso da mesma interpretação, sempre se defende que a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça do art. 5° do Código de Registo Predial equivale a recusa de aplicação do art. 892° do Código Civil, por estabelecer uma excepção ao mesmo, e como tal estarem verificados os pressupostos processuais do recurso previstos tanto na alínea c) e f) do n° 1 do art. 70° da Lei do Tribunal Constitucional.
[...].”
Nos n.ºs seguintes da reclamação, os reclamantes tecem extensas considerações sobre a violação do artigo 62º da Constituição pelo artigo 5º do Código do Registo Predial.
3. Notificada para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, a recorrida B. respondeu (fls. 714 a 741), dizendo, também em resumo, para o que agora releva:
“[...]
6 - Embora seja verdade que as normas do Código de Processo Civil são subsidiariamente aplicáveis à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 69° da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre clarificar a situação, uma vez que se trata de figuras jurídicas completamente distintas. Uma coisa é a espécie de recurso, outra é o efeito do recurso e outra, ainda, é o fundamento de recurso.
7 - Por espécie de recurso entende-se o tipo do recurso, designadamente, em Processo Civil, existem os recursos ordinários que são a apelação, a revista e o agravo, e os recursos extraordinários que são a revisão e a oposição de terceiros. Esta realidade não tem qualquer correspondência com os tipos de recurso em sede de Tribunal Constitucional, sendo eles a fiscalização concreta preventiva, a fiscalização concreta sucessiva e a fiscalização abstracta.
[...]
9 - [...] o fundamento do recurso é a razão e o motivo pelos quais a parte recorrente se sente lesada e prejudicada na aplicação do direito ao caso concreto. Em Processo Civil os fundamentos de interposição de recurso estão consagrados no art. 678° do Código de Processo Civil, enquanto em sede de Tribunal Constitucional as decis[ões] que admitem recursos estão explanadas quer nos art. 278°, 280° e 281º da Constituição da República Portuguesa quer no art.
70° da Lei do Tribunal Constitucional relativamente à fiscalização concreta sucessiva (que é o tipo de recurso em causa na presente reclamação).
[...]
20. Em suma, a reclamação ora apresentada pelos Recorrentes ao Douto Tribunal padece de desconformidade com o recurso interposto para o mesmo e, nessa medida, considera-se inadmissível a apreciação do caso sub iudice com fundamento da alínea c) do nº 1 do art. 70º do diploma em causa.
[...].”
Em seguida, a recorrida B. analisa demoradamente a questão de inconstitucionalidade identificada pelos reclamantes na reclamação, afastando qualquer violação da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Resulta com clareza do processo que, apesar de os recorrentes terem invocado como fundamento o disposto nas alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso não poderia ter sido interposto ao abrigo das citadas alíneas.
Tal conclusão foi explicitada no ponto 4. da decisão sumária reclamada, nada mais havendo a acrescentar ao que então se disse sobre a não verificação, no caso dos autos, dos pressupostos processuais exigidos naquelas disposições.
5. Os reclamantes suscitam a questão de saber se – tendo mencionado no requerimento de interposição do recurso, como seus fundamentos, as alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e não a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo – é de aplicar “o princípio de processo civil em que o erro na espécie de recurso é irrelevante devendo os termos subsequentes ser processados de acordo com a espécie que venha a ser julgada adequada (nos termos supletivos previstos no art. 702° do Código de Processo Civil)” (supra, 2., 1º).
Não pode porém falar-se, a propósito do sucedido no presente processo, em “erro na espécie do recurso”. Na verdade, os ora reclamantes interpuseram um recurso de fiscalização concreta da ilegalidade, invocando como fundamento as alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Ora, independentemente do juízo que possa formular-se quanto à compatibilidade entre os dois fundamentos então invocados (as alíneas c) e f) do preceito mencionado), certo é que estavam em causa fundamentos de ilegalidade
“reforçada”, cujo controlo é expressamente cometido ao Tribunal Constitucional pela Constituição (artigo 280º, n.º 2, alíneas a) e d)) e pela lei (artigo 70º, n.º 1, alíneas c) e f), da Lei do Tribunal Constitucional).
Contrariamente ao que parece ser o entendimento dos reclamantes, o Tribunal Constitucional não pode suprir os erros dos recorrentes na identificação dos fundamentos dos recursos.
Esta conclusão decorre inexoravelmente do regime fixado pela Constituição e pela Lei do Tribunal Constitucional relativamente aos recursos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade e de ilegalidade reforçada.
Disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 89/04 (publicado no Diário da República, II, n.º 78, de 1 de Abril de 2004, p. 5227 ss):
“[...] O recurso das decisões judiciais para o Tribunal Constitucional interpõe-se por meio de requerimento que, além do mais, deve conter a indicação da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie (artigo
75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro). E o âmbito do recurso é restrito à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada (artigo 71º da mesma Lei n.º 28/82). Deste modo, o requerimento de interposição limita irremediavelmente o âmbito do recurso. Posteriormente, pode ser restringido, mas não ampliado (n.º 3 do artigo
684º do CPC, ex vi do artigo 69º da LTC). Esta conclusão, que não sofreria dúvidas sérias face ao regime geral do processo civil (cfr. artigo 69º da LTC), impõe-se, com uma evidência reforçada, perante o regime específico do recurso de fiscalização concreta. Ficariam destituídas de sentido as acrescidas exigências formais impostas ao requerimento de interposição pelo artigo 75º-A da LTC se o âmbito do recurso pudesse, posteriormente, ser ampliado a outras questões de constitucionalidade (ou ilegalidade).”
A argumentação utilizada no acórdão citado, para justificar as exigências legais quanto à indicação, pelos recorrentes, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie, é inteiramente transponível para justificar as exigências legais relativas à indicação, pelos recorrentes, no requerimento de interposição, do fundamento do recurso.
Do mesmo modo que é no requerimento de interposição que se delimita o âmbito do recurso (ressalvada a possibilidade de “restringir” o objecto inicial, tal como admite o artigo 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil), é também nesse momento que se delimita o fundamento do recurso. Só assim se explica a exigência constante do n.º 1 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional de que no requerimento de interposição do recurso se indique “a alínea do n.º 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto”.
Acresce que, como aliás sublinha a recorrida na resposta à reclamação, o artigo 71º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional determina que
“os recursos de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos
à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada” (itálico aditado agora).
É pois certo que constitui ónus dos recorrentes a identificação inequívoca dos elementos explicitados nos n.ºs 1 e 4 do artigo 75º-A da LTC, que esse ónus deve ser cumprido no requerimento de interposição do recurso (sem prejuízo da possibilidade de aperfeiçoamento, mediante notificação ordenada pelo relator, nos termos previstos nos n.ºs 5 e 6 do mesmo artigo 75º-A) e que é no momento da interposição do recurso que se fixa o âmbito do recurso e que são apreciados os respectivos pressupostos processuais (cfr. artigo 78º-A, n.º 1, da LTC).
Consequentemente, e em suma, não é admissível a possibilidade de alteração posterior do fundamento do recurso, nem por iniciativa do Tribunal Constitucional, nem por iniciativa dos recorrentes, como este Tribunal já afirmou em diversas ocasiões (cfr., por exemplo, o Acórdão n. 475/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
De todo o modo, no caso dos autos não está em causa apenas uma alteração do fundamento do recurso, mas uma alteração de todo o âmbito do recurso.
Na verdade, o que os ora reclamantes pretendem é convolar um recurso de fiscalização concreta de ilegalidade reforçada “por recusa de aplicação dos arts. 62º da Constituição da República Portuguesa e dos arts. 408º, n.º 1, 875º e 879º, alínea a), 892º, 1317º, alínea a) e 291º, do Código Civil, recusa de aplicação essa por violação do previsto no artigo 5º do Código de Registo Predial, no caso concreto” (cfr. requerimento de fls. 677) num recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade com fundamento na “aplicação do art. 5° do Código de Registo Predial por violação do art. 62° da Constituição”
(cfr. requerimento de fls. 695, que incorpora a reclamação em apreciação).
Improcede assim a primeira pretensão formulada pelos reclamantes.
6. Sustentam, a título subsidiário, os reclamantes que “a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça do art. 5° do Código de Registo Predial equivale a recusa de aplicação do art. 892° do Código Civil, por estabelecer uma excepção ao mesmo”, devendo o Tribunal Constitucional dar como “verificados os pressupostos processuais do recurso previstos tanto na alínea c) e f) do n° 1 do art. 70° da Lei do Tribunal Constitucional”.
Quanto a este pedido dos reclamantes, não pode deixar de sublinhar-se a contradição interna que ele encerra (e que já se verificava no requerimento inicial). Efectivamente, o recurso é interposto com dois fundamentos incompatíveis: “recusa de aplicação de norma...” (alínea c) do n° 1 do art. 70° da LTC) e “aplicação de norma...” (alínea f) do n° 1 do art. 70° da LTC).
Sendo, neste ponto, os fundamentos invocados os mesmos que constavam do requerimento de interposição do recurso, basta porém reiterar o que, após a caracterização dos recursos previstos, respectivamente, na alínea c) e na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, se disse na decisão sumária reclamada:
“[...] percorrendo o texto da decisão recorrida [...], facilmente se verifica que o tribunal recorrido não recusou a aplicação de qualquer norma constante de acto legislativo, com tal fundamento [violação de lei com valor reforçado].
[...] percorrendo o texto da decisão recorrida [...], também facilmente se conclui que nela não foi aplicada qualquer norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento em violação de lei com valor reforçado ou com fundamento em violação do estatuto de região autónoma ou de lei geral da República (cfr. as referidas alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional).
[...].”.
Improcede deste modo também a pretensão formulada, a título subsidiário, pelos reclamantes.
7. É assim manifesto que a reclamação apresentada não invoca qualquer razão susceptível de pôr em causa os fundamentos da decisão sumária reclamada, sendo certo que não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre as demais considerações constantes do requerimento de fls. 682 e seguintes, que respeitam
à apreciação da questão de inconstitucionalidade, que o Tribunal Constitucional não pode conhecer pelas razões já amplamente expostas.
Nada mais resta, pois, do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa,18 de Maio de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos