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Processo nº 786/2003
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. e B. intentaram acção com processo ordinário contra Instituto de Gestão do Crédito Público, pedindo o reconhecimento do direito à transmissão da totalidade dos certificados de aforro (identificados a fls. 3) ou, no caso de assim não ser decidido, do direito à transmissão da meação dos referidos certificados. O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, por decisão de 8 de Abril de 2002, julgou a acção procedente, condenando o Réu a reconhecer aos Autores o direito à transmissão da totalidade dos certificados de aforro identificados, bem como aos rendimentos inerentes.
2. O Instituto de Gestão do Crédito Público interpôs recurso da decisão de 8 de Abril de 2002 para o Tribunal da Relação de Lisboa. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12 de Dezembro de 2002, entendeu o seguinte:
3. O Direito. A sentença recorrida assenta nos seguintes fundamentos: a herança manteve-se jacente até ao momento em que a A. a aceitou, o que sucedeu nas datas em que outorgou nas escrituras públicas de habilitação. Por outro lado, o direito de aceitação da sucessão não caducou, face ao que se dispõe no art. 2059º, nº 1, do C.Civil, contando-se o prazo de 10 anos a que alude esta disposição legal a partir do momento em que o sucessível conhece a existência de relações jurídicas patrimoniais constitutivas da herança aberta por morte, ou seja, a partir do momento em que a A. teve conhecimento da existência dos certificados de aforro, o que aconteceu em 13.6.2000. Donde o art. 7° do DL. n° 172-B/86 tem de ser interpretado restritivamente, no sentido de que o legislador tão-só quis determinar que, após a concretização do direito de exigir a partilha, o herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de averbar a sua propriedade nos certificados de aforro (art. 2101° do C. Civil). O R., nas alegações de recurso, reconhece o direito dos apelados à transmissão da parte dos certificados de aforro que pertenciam a C., mãe da A., por força da meação que lhe coube por morte de D., porquanto eram casados no regime de comunhão geral de bens e em relação ao óbito daquela não tinha ainda decorrido o prazo de 5 anos previsto no art. 7º, n° 1, do DL. n° 172-B/86, o mesmo não acontecendo quanto aos certificados de aforro que integram o acervo hereditário do aforrista. O recurso restringe-se, portanto, a estes últimos certificados de aforro. As diferentes posições assumidas na sentença e conclusões do recurso colocam-nos, desde logo, perante o problema da interpretação da lei (art. 9° do C.Civil). Está em causa o art. 7° do DL. n° 172-B/86, na redacção anterior à introduzida pelo art. 12° do DL. n° 122/2002, de 4 de Maio, uma vez que, quando este diploma legal entrou em vigor (5 de Maio de 2000), já havia decorrido o prazo de 5 anos previsto na primitiva redacção. Dispunha o referido art. 7° que “Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhe deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado (nº 1). Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições relativas à prescrição (nº 2). Como ensina Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador,
1995, págs. 182 e sgs.), o texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9º, nº 2, do C.Civil: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9º, n° 3, o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzam à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo. No mesmo sentido, escreve Oliveira Ascensão: “a letra é não só o ponto de partida, mas também um elemento irremovível de toda a interpretação, funcionando também o texto como limite da busca do espírito” (O Direito, 6ª ed., 1991, pág.
368). Dos ensinamentos expostos, podemos, desde já, adiantar que do nº 1 do art. 7º que regula a sucessão na titularidade dos certificados de aforro, decorre que o facto que despoleta a contagem do prazo de prescrição é a morte do titular dos mesmos e que esse prazo é de cinco anos após a morte e não cinco anos após a partilha. Isso mesmo se depreende, ainda, do nº 1 do art. 3° do mesmo Dec.-Lei, que dispõe que os certificados de aforro da denominada «série E», cuja administração está a cargo da Junta de Crédito Público, «são nominativos, reembolsáveis e só transmissíveis por morte». Mas será que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que pretendia dizer, a ponto de o intérprete não dever deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas dever restringi-lo em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, de modo a que onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance (cessante ratione legis cessat eius dispositio)? Ou seja, deverá proceder-se a uma interpretação restritiva daquele dispositivo legal, na medida em que consagra soluções contrárias ao sistema jurídico, temperando-o na sua literalidade por uma hermenêutica sistemática, como refere a sentença recorrida? Entendemos que não.
É verdade que o domínio e posse dos bens da herança se adquire pela aceitação. Resulta também do art. 2050º, nº 1, do C.Civil, que o direito fundamental que a lei confere ao chamado é o de aceitar ou repudiar a herança. Trata-se de um direito potestativo que se dirige à produção de determinados efeitos jurídicos. E mediante o exercício desse direito - exercício no sentido da aceitação - que o chamado ingressa na titularidade dos bens ou direitos hereditários, embora a aquisição se considere retroagida, em principio, ao momento inicial da abertura. Até lá a herança é um património sem sujeito, constitui um património autónomo. O direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado (art. 2059º, nº 1, do C. Civil). Decorrido este limite temporal, não são apenas os bens da herança que se perdem;
é a própria qualidade de herdeiro. Por outro lado, qualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir a partilha quando lhe aprouver, não podendo renunciar-se ao direito de partilhar, mas pode convencionar-se que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos, sendo lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção (art. 2102° do C. Civil). Porém, contrariamente ao defendido pelo M° Juiz “a quo”, estas normas não ficam esvaziadas com a aplicação do referido art. 7º, nº 1, do DL. n° 172-E/86, pelo facto deste preceito fixar um prazo de prescrição que, no entendimento da sentença recorrida, não se harmoniza com aqueles outros prazos referidos. Se assim fosse, então o mesmo poderia acontecer com todos os preceitos legais que fixam os prazos da prescrição (v. arts. 309° e sgs. do C. Civil) e não se vislumbra que o legislador tenha consagrado soluções que contendem com a unidade do sistema jurídico e que acarretem, em consequência, insegurança do comércio jurídico. Como também não se mostram violados quaisquer princípios constitucionais, designadamente o art. 62° da Constituição, uma vez que não está em causa o direito à propriedade privada e à sua transmissão por morte do aforrista, o referido art. 7° regula, precisamente, a sucessão na titularidade dos certificados de aforro, sendo que a prescrição opera em obediência a este normativo legal, sem criar qualquer situação diferenciada para os diversos aforristas ou seus herdeiros. Está provado que entre a morte do pai da A. e a da mãe, a herança do pai manteve-se indivisa e na detenção exclusiva da mãe da A. Por força do disposto nos arts. 2079° e 2080° do C. Civil, à mãe da A., entre a morte do seu marido e o seu próprio passamento, cabia-lhe a administração da herança, enquanto cabeça de casal. O cabeça de casal administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal (art. 2087º, nº 1, do C. Civil). O cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega de bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder (art. 2088º, nº 1, do mesmo diploma legal). Como também os herdeiros podem pedir os créditos da herança, assim como os credores da herança podem pedir aos herdeiros o cumprimento dos seus (art.
2091º). Ora, a cabeça de casal, podendo, embora, movimentar os certificados em vida do aforrista (v. factos provados e o disposto no art. 4º, n° 2, do DL. n°
172-B/86), nada fez, após a morte do mesmo, para evitar a prescrição a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública dos valores de reembolso dos respectivos certificados, como não foram alegados factos tendentes a demonstrar que a prescrição se suspendeu, ou interrompeu. Por outro lado, a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas (art. 6° do C. Civil). Por tudo o exposto, teremos de concluir que a razão está pelo lado do apelante.
Em consequência, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, condenando o Réu a reconhecer apenas o direito dos Autores à transmissão da meação dos certificados, bem como todos os rendimentos inerentes.
3. A. e B. interpuseram recurso do acórdão de 12 de Dezembro de 2002 para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas respectivas alegações de recurso, sustentaram o seguinte:
ASSIM, EM CONCLUSÃO: A) O Acórdão recorrido não fez uma correcta interpretação do art. 7°. do Dec-Lei nº 172-B/86 , pois a sua interpretação literal põe em causa “a unidade do sistema jurídico”. B) O direito sucessório (art. 2.059°. do Cód.Civil) estabelece que o direito a aceitar a herança caduca ao fim de dez anos contados desde que o sucessível tem conhecimento da herança, e não da data da morte do “de cujus”, sendo que o direito de exigir a partilha é imprescritível e irrenunciável (art. 2.102°. do Código Civil), sendo que estes direitos são de direito e ordem pública e projecção do direito de propriedade privada consagrado no art. 62°.da Constituição da República Portuguesa; C) Na prática, e interpretando assim o normativo legal, o Acórdão recorrido veio encurtar o prazo inderrogável de dez anos para aceitar a herança para cinco quando essa herança integra certificados de aforro, pelo que só a interpretação restritiva feita na primeira Instância: de que o art. 7°. apenas veio estabelecer o direito à transmissão, sendo que esse direito pode ser exercido após a aceitação da herança para a qual o direito sucessório estabelece um prazo de dez e não de cinco anos; D) E esta interpretação ainda que se entenda que não tem qualquer ligação com a letra da lei é a única que não põe em causa a unidade do sistema jurídico; E) E é também a única que evita a inconstitucionalidade do preceito, pois o mesmo, na sua interpretação literal, limita a transmissão do direito de propriedade previsto no artigo 62°. da Constituição, pois este artigo só permite limites a essa transmissão se aprovadas pela Assembleia da República, pois o direito de propriedade é um dos direitos fundamentais, cuja limitação nos termos do artigo 18°. da Constituição é da competência exclusiva da Assembleia da República nos termos do art. 165°. b) da Constituição; E) Por outro lado, a verdade é que a interpretação que o Acórdão recorrido agora veio alterar tem na letra da lei uma ligação:
- esse normativo fala em “herdeiros”: ora só há herdeiros depois da aceitação; antes disso só existem chamados à sucessão
- esse normativo não diz qual o momento “a quo” em que começa a contar o prazo de cinco anos, mas falando em herdeiros, não pode deixar de considerar que esse prazo se conta a partir da aceitação da herança, momento a partir do qual se pode falar em herdeiros. F) Assim, também se tem de considerar interpretativa a alteração introduzida pelo D.L. n°. 122/2002, alargando o prazo de cinco para dez anos, pois essa alteração veio irradicar a contradição existente na norma relativa ao instituto de direito sucessório e que tornava incerta e confusa a sua interpretação literal: o direito de aceitar a herança, quer a mesma contenha ou não certificados é de dez anos; G) No caso concreto, a herança manteve-se em estado de jacência entre a morte do aforrista que deixou como chamados à sua herança o seu cônjuge também meeiro e a Autora, até ao momento em que esta em seu nome e da sua Mãe entretanto falecida aceitou essa herança, sendo que se tendo mantido na detenção da Mãe da Autora, esta só teve conhecimento da existência dos certificados de aforro depois da morte desta; durante esse estado de jacência, não há herdeiros, não se podendo dizer que a Mãe da Autora poderia ter movimentado os certificados de aforro para evitar a prescrição, pois só o poderia ter feito escondendo a morte de seu Marido; só com aceitação da herança por parte da mesma e da Autora poderia ser requerido por ambas a transmissão dos certificados de aforro; H) Também não tem razão o Acórdão recorrido quando refere que a Mãe da Autora era cabeça-de-casal da herança: enquanto a herança não é aceite não há herdeiros, não há cabeça-de-casal, existe uma herança jacente sem quaisquer titulares, existe um património autónomo; I) Não tem razão o Acórdão quando diz que a ignorância da regra contida na norma em causa não tem qualquer relevância, pois a verdade é que a subscrição dos certificados de aforro são um contrato de adesão, existindo por parte do proponente a obrigação de informar todas as condições contratuais, nos termos do art. 5°. D.L. n°. 485/85, não podendo ser invocadas as que não foram informadas; a prescrição de curto prazo prevista naquela regra não consta em qualquer documento relativo aos certificados de aforro, pelo que não pode ser invocada pelo recorrente; L) Assim, deve ser revogado o Acórdão recorrido e mantida a decisão da 1ª Instância, pois o mesmo Acórdão violou os artigos 13°, 6°, 9°, 2050°, 2059°, todos do Código Civil e ainda os artigos 62°., 18°., e 165°. da Constituição da República Portuguesa. M) Ou se não se entender deve o Réu ser condenado em indemnização a pagar ao Autores nos termos do artigo 227°. do Código Civil.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Setembro de 2003, considerou o seguinte:
Ao caso é aplicável o artigo 7° do Dec-Lei n° 172-B/86 que estipulava no seu n°
1 que por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhe deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado. Findo o prazo referido consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições relativas à prescrição (n° 2). Os cinco anos referidos no artigo 7° estavam já decorridos quando entrou em vigor a alteração introduzida pelo Dec-Lei n° 122/2002, de 4 de Maio, que tem carácter inovador e não interpretativo. Sendo aplicável, como o é, o Dec-Lei n° 172-B/86, a solução jurídica só poderia ser a que foi encontrada, não se devendo esquecer que a nossa lei consagra diversos prazos de prescrição e que nesta, embora exista uma ponderação de justiça, se têm em conta fundamentalmente objectivos de conveniência ou oportunidade. O instituto da prescrição extintiva parte também da ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo – Prof. Mota Pinto - “Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed., págs. 373/374. As normas referidas são especiais em relação às regras gerais, funcionando em complementariedade, prevalecendo, contudo, a regulamentação especial na hipótese de se verificar um conflito concreto. A questão foi bem resolvida no acórdão recorrido, que correctamente concluiu pela não verificação de qualquer inconstitucionalidade e pela aplicação do referido artigo 7°. Tratando-se de confirmar o decidido na Relação poderá o acórdão limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada, nos termos dos artigos 713° n° 5 e 726° do C. Processo Civil. Tem-se entendido que se deve usar da referida faculdade com alguma reserva e ponderação. Nada havendo a acrescentar ao decidido, pensa-se que é aqui caso para se remeter para os fundamentos expressos na decisão recorrida.
Consequentemente, negou provimento ao recuso.
4. A. e B. interpuseram recurso de constitucionalidade do acórdão de 30 de Setembro de 2003, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho. Junto do Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do seguinte modo:
13- ASSIM, EM CONCLUSÃO: A) O presente recurso vem interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que considerou prescrito o direito dos recorrentes à meação nos certificados de aforro de que era subscritor o Pai da recorrente mulher falecido em 1993, face ao disposto no artigo 7°. do Decreto-Lei n°. 172-B/86; B) No processo ficou provado que o Pai da Recorrente mulher subscreveu certificados de aforro; que faleceu em 1993; que entre a sua morte e a da Mãe da Autora a herança permaneceu na mão desta; que após a morte da Mãe, em 1998, a Autora habilitou-se à herança de seu Pai e à de sua Mãe; que em 2000, a Autora habilitou-se, junto dos serviços do Réu, aos certificados de aforro tendo o Réu decidido que os mesmos estavam na totalidade prescritos face ao disposto no artigo 7°. do Decreto-Lei n°. 172-B/86; C) Na 1ª. Instância, foi decidido julgar procedente a acção, interpretando aquele normativo de forma restritiva de forma a estar de acordo com os princípios de direito sucessório e respeitar o art. 62°. da Constituição: como o direito sucessório, estabelece o prazo de dez anos para aceitar a herança, e como esse prazo não pode ser encurtado sob pena de se violar esse direito sucessório e o direito à transmissão por morte consagrado no artigo 62°., esse Tribunal decidiu que o único sentido útil do art. 7°. do Decreto-Lei n°.
172-B/86 é que o prazo de cinco anos nele previsto se inicia com a aceitação da herança; D) No Acórdão recorrido, foi decidido que esse artigo não pode ter essa interpretação porque não tem na lei o mínimo de correspondência e que o mesmo não viola o artigo 62°. da Constituição porque não restringe a transmissão por morte antes a consagra; E) No entanto, a verdade é que o artigo 7°. do Decreto-Lei n°. 172-B/86, anterior à alteração introduzida pelo D.L. n°. 122/2002, viola o artigo 62°. da Constituição, porque limita a transmissão por morte dos certificados de aforro, encurtando o prazo para a aceitação na herança quando da mesma fazem parte certificados de aforro; F) Na realidade, como os certificados de aforro são direitos patrimoniais; se não existisse aquele normativo legal, seriam transmissíveis nos termos consagrados no Código Civil: os herdeiros teriam dez anos e não cinco anos para se habilitarem à transmissão dos certificados de aforro; G) Entendem os Recorrentes que o Código Civil estabelece regras inderrogáveis sob pena de subverter todo o instituto sucessório que está reflectido no artigo
62°. da Constituição; de acordo com essas regras, os herdeiros têm dez anos após o momento em que sabem que são herdeiros para aceitar a herança; ora o artigo
7°. do Decreto-Lei 172-B/86 veio encurtar esse prazo no caso de na herança existirem certificados de aforro, vindo assim limitar a transmissão da propriedade privada consagrada no artigo 62°.; H) Por causa desse prazo tão curto e mais curto que na transmissão de outros direitos muitas pessoas viram caducado o seu direito à transmissão de certificados de aforro, o que fez existirem numerosas queixas na Provedoria de Justiça e que se vieram a reflectir na Recomendação n°. 8/ A/2002; L) Reconhecendo que esse prazo era demasiado curto veio o mesmo a ser alargado para dez anos pelo Dec-Lei n°. 122/2002, de 4 de Maio, tornando o prazo coincidente com o prazo para aceitar a herança consagrado no Código Civil; M) Por outro lado, o artigo 7°. do Decreto-Lei n°. 172-8/86 consagra não uma prescrição, mas uma reversão a favor do Estado dum direito, ou seja uma expropriação sem indemnização o que viola o artigo 62° , n°. 2, da Constituição. N) Na realidade a prescrição é a extinção dum direito, sendo que de acordo com a norma em análise não se prevê a extinção mas a prescrição a favor do Estado dos certificados de aforro; O) De acordo com o instituto sucessório, a herança pode ser declarada vaga a favor do Estado, mas só após o reconhecimento de inexistência de sucessíveis não automaticamente após o decurso dum prazo; P) Aliás a vontade de que os herdeiros deixem prescrever os certificados, é patente no facto do prazo de prescrição não constar nem nos títulos nem nos impressos de informação dos certificados, o que ficou provado no processo e consta da Recomendação n°. 8/ A/2002 da Provedoria da Justiça; Q) Esta “prescrição” é uma verdadeira expropriação sem declaração de utilidade pública e sem indemnização, o que viola o artigo 62°. da Constituição. R) De qualquer maneira, a verdade é que o direito de propriedade e sua transmissão é um direito fundamental nos termos do artigo 18°. da Constituição, pelo que qualquer limitação é da competência exclusiva da Assembleia, sendo que o Dec.-Lei n°. 172-B/86 não foi precedido de qualquer autorização legislativa, sofrendo também de inconstitucionalidade orgânica;
Assim, deve o artigo 7°. do Decreto-Lei n°. 172-B/86 ser declarado inconstitucional e em consequência ser revogada a decisão recorrida e em consequência ser reconhecido que os Recorrentes têm direito à meação do Pai da Recorrente mulher nos certificados de aforro, não estando prescrito esse direito.
Por seu turno, o Instituto de Gestão do Crédito Público, sustentando a não inconstitucionalidade da norma impugnada, contra-alegou nos seguintes termos:
INSTITUTO DE GESTÃO DO CRÉDITO PÚBLICO, Recorrido nos Autos à margem referenciados, com sede na Avenida da República, n.º 57 - 6°, em Lisboa, vem apresentar as suas alegações, o que faz nos termos seguintes:
1. O D.L. n.º 172-B/86, de 30 de Junho (diploma que encerra o regime jurídico dos certificados de aforro, série B), regula a sucessão na titularidade dos certificados de aforro, de forma global e exaustiva, configurando-se como norma especial face ao regime geral de prescrição constante do Código Civil.
2. A remissão feita para este na parte final do n.º 2 do citado normativo não pode deixar de ser entendida como operando a extensão, para o domínio dos certificados de aforro, das demais regras de prescrição que não encontram no art. 7° do D.L. n.º 172-8/86 uma previsão especial e diferenciada, não sendo, naturalmente, de acolher as restantes disposições do Código Civil que entram em aberta contradição com o que nele é preceituado.
3. Obedecendo a uma preocupação de salvaguardar a certeza jurídica, principio basilar que norteia todo o nosso ordenamento jurídico, o legislador optou por fixar uma data rígida para o início da contagem do prazo de prescrição, a do
óbito do titular dos certificados de aforro, passível de ser comprovada sem dificuldade através da apresentação de uma certidão de óbito ou de uma escritura de habilitação de herdeiros. Tal opção compreende-se facilmente, já que escapa por completo ao IGCP a possibilidade de controlar e verificar, caso a caso, em que momento os herdeiros tomaram conhecimento da existência dos ditos certificados.
4. Consequentemente, a pretensa interpretação restritiva proposta pelos ora Recorrentes mais não é do que uma tentativa de desvirtuar, por completo, aquele que foi o propósito do legislador, claramente e sem margem para equívocos, plasmado na lei.
5. Em termos práticos, e aliás conforme é expressamente reconhecido pelos Recorrentes, estes estão a ser penalizados pelo facto de, conhecedores do óbito do titular dos certificados de aforro, terem optado por não desencadear qualquer das diligências que se impõem, em condições idênticas, a qualquer pessoa que se saiba herdeira de determinados bens.
6. Obviamente que não se pode condenar os Recorrentes por tal opção, não se podendo, contudo, é esperar que o IGCP, em aberta violação da lei a que se encontra submetido, ignore a mesma para beneficiar os Recorrentes.
7. No que respeita à classificação da cominação prevista no art. 7° do D.L. n.º
172-B/86 como inconstitucional alertamos para o facto de não caber ao destinatário da norma aferir da sua justiça ou injustiça, competindo-lhe apenas, e pelo contrário, aplicá-la nos exactos termos em que o legislador a entendeu consagrar.
8. Efectivamente, retomando as palavras do Prof. Jorge Miranda sobre esta matéria, “... não cremos, ..., possível reconhecer aos órgãos administrativos um poder de controlo necessariamente concreto - análogo ao dos tribunais, ...”,
“Se a Constituição afirma o dever de conformação da actividade administrativa pelos preceitos e princípios constitucionais e se são nulos, e não anuláveis... os actos administrativos ofensivos de direitos, liberdades e garantias, têm de ser os tribunais a decidir sobre essa conformação; ...” e ainda, sem que qualquer juízo quanto à constitucionalidade da norma seja formulado, “a) Não aplicação pelos tribunais, nos feitos submetidos a julgamento, de normas inconstitucionais (art. 207°); b) Não atribuição ... de idêntico poder aos outros órgãos do Estado, políticos e administrativos, e, pelo contrário, imposição de aplicação sem faculdade autónoma de apreciação;” (v. MIRANDA, Jorge
- “Manual de Direito Constitucional - Constituição e Inconstitucionalidade”, Tomo II, 3ª Edição, págs. 431 e 432).
9. Entendemos, no entanto, que o preceito em análise (o citado art. 7°) não viola princípios constitucionais, designadamente o art. 62° da Constituição, já que, através da disciplina por si fixada, não se restringe a transmissão por morte do direito de propriedade privada, criando-se apenas um prazo diferenciado para o mesmo ser exercido, que como prazo especial para este especifico instrumento de divida pública, implica um desvio às regras gerais de prescrição.
10. Contrariamente, ainda, ao pretendido pelos Recorrentes, não existe qualquer cláusula de reversão encapotada sob a redacção do art. 7°, já que, à semelhança do previsto no Código Civil, também neste caso, não existindo sucessíveis ou não se manifestando os herdeiros em tempo útil, o valor titulado pelos certificados em causa é atribuído ao Estado. Nestes termos, não deve o artigo 7° do Decreto-Lei n.º 172-B/86 ser declarado inconstitucional e, em consequência, deve a decisão recorrida ser mantida, com o que se fará a devida JUSTIÇA.
Cumpre apreciar.
II Fundamentação
5. O artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, tem a seguinte redacção:
1 – Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhe deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
2 – Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições relativas à prescrição.
O Supremo Tribunal de Justiça, remetendo para o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sublinha o carácter especial da norma em questão relativamente ao regime civilista e fundamenta tal solução nos “objectivos de conveniência e oportunidade”. Os recorrentes, porém, sustentam a inconstitucionalidade do preceito, uma vez que estabelece um prazo prescricional do direito à transmissão por morte dos certificados de aforro de cinco anos contados da data da morte do respectivo titular, ao passo que o Código Civil consagra um prazo de caducidade do direito de aceitação da herança de dez anos contados da data em que o sucessível tem conhecimento de haver sido chamado (artigo 2059º do Código Civil). O parâmetro de constitucionalidade invocado é o artigo 62º da Constituição. No entanto, a questão de constitucionalidade suscitada, no modo como é definida, convoca necessariamente o princípio da igualdade. Com efeito, a alegação da invocada inconstitucionalidade funda-se na circunstância de o regime geral sucessório prever um prazo em que se extingue o direito do sucessor mais amplo do que o regime agora impugnado. Não está, portanto, em causa, a existência de um prazo em si mesmo, a sua exiguidade ou adequação, mas antes a comparação de um prazo especial com um prazo geral. A jurisprudência constitucional tem reiteradamente sublinhado que o princípio da igualdade postula o tratamento igual do que é substancial e essencialmente igual e o tratamento diferenciado do que seja diferente. Por outro lado, tem igualmente primado o entendimento segundo o qual tratamentos diferenciados de situações semelhantes não serão violadores do princípio da igualdade, desde que um fundamento legítimo justifique tal diferenciação. Ora, os certificados de aforro conferem direitos patrimoniais aos respectivos titulares, consubstanciando a aplicação de “poupança(s) das famílias” integrados no quadro de emissão e gestão da dívida pública, mas não evidenciam, por esse facto, qualquer especificidade relativamente aos demais bens que constituem o património dos sujeitos no que se refere ao aspecto do regime agora em questão, isto é, à transmissão de tais bens por morte do respectivo titular. Assim, não se divisa nenhuma razão, decorrente da natureza dos certificados de aforro, que legitime o diferente tratamento relativamente ao prazo geral de caducidade do direito de aceitar a herança. A entidade recorrida invoca a necessidade de fixar uma data objectivamente controlável (no caso, a morte daquele de cuja sucessão se trata) para o início do prazo. No entanto, não é o termo a quo do prazo que é impugnado nos presentes autos, mas sim o próprio prazo (mais reduzido – em metade – do que o prazo geral). De resto, no caso concreto, não terá existido desfasamento relevante entre a data da morte do titular dos certificados de aforro e a data do conhecimento dessa ocorrência por parte dos recorrentes. Por outro lado, a decisão recorrida, na parte em que remete para a fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, considera não haver violação de princípios constitucionais, uma vez que não existe diferenciação entre os próprios aforristas ou seus herdeiros. Contudo, a questão suscitada pelos recorrentes não exige só o confronto de todos os titulares de certificados de aforro (ou seus herdeiros) mas também das heranças (ou a parte da herança de uma mesma pessoa) referentes aos certificados de aforro e das heranças (ou a parte da herança) referentes aos demais bens. E é essa a comparação que se impõe em face da natureza do problema suscitado. No mesmo aresto é ainda fundamentada e sustentada a interpretação literal do artigo 7º. No presente recurso não se deverá averiguar, porém, qual a melhor interpretação no plano infraconstitucional mas sim se a interpretação acolhida é ou não compatível com a Constituição. Nessa linha de entendimento, afigura-se irrelevante, nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a invocação da natureza especial do regime impugnado face ao regime geral do Código Civil. Na verdade, o que o Tribunal Constitucional agora analisa é, como se disse, a compatibilização da norma com a Constituição, independentemente da sua qualificação. O Tribunal a quo refere, por último, os objectivos de conveniência e de oportunidade. No entanto, não refere as razões dessa conveniência ou da oportunidade e tais razões não se retiram do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Aliás, mesmo que fosse invocada uma razão de certeza na definição da situação jurídica associada à titularidade dos certificados de aforro, não se vê porque é que tais desideratos não poderiam ser igualmente alcançados com o prazo de dez anos. Com efeito, o Decreto-Lei nº 122/2002, de 4 de Maio, que procedeu à alteração do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, visando “a criação de produtos financeiros alternativos mais flexíveis e ajustados ao actual contexto de funcionamento dos mercados financeiros”, alterou precisamente o artigo 7º em apreciação, consagrando o prazo de dez anos para o requerimento da transmissão dos certificados de aforro pelos herdeiros do aforrista. Reforça-se, portanto, a constatação de que nenhuma razão plausível, desde logo decorrente do mercado financeiro ou da natureza dos próprios títulos (mesmo tendo presente as características actuais de tais mercados), é oponível à solução pretendida pelos recorrentes (que é, como resulta do que se disse, a que actualmente vigora), justificando a solução questionada. Inexiste, pois, o fundamento legítimo para a solução agora impugnada, ou antes, não se apreende qualquer fundamento claro e relevante no plano da constitucionalidade para o tratamento diferenciado da transmissão de certificados de aforro relativamente à dos demais bens que constituem a herança. A ausência de uma especificidade explícita e relevante revela-se na falta de qualquer justificação do legislador para aquele regime, criando-se até uma situação de insuficiente publicidade da mencionada especificidade do regime
(ponto que foi fixado pelas instâncias e que não cabe agora pôr em questão). Em face do que se deixa dito, conclui-se que a norma do artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, na parte em que consagra um prazo de prescrição do direito a requerer a transmissão dos certificados de aforro por morte do aforrista, viola o disposto no artigo 13º, articulado com o artigo 62º, ambos da Constituição.
7. Alcançada esta conclusão, torna-se dispensável a análise da questão da inconstitucionalidade orgânica.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional a norma do artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, por violação dos artigos 13º e 62º, articuladamente, e por violação do artigo 165º, alínea b), da Constituição, concedendo provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Julho de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos