Imprimir acórdão
Proc. n.º 131/02 Plenário
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
O Procurador-Geral da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 281º n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea e) da Constituição, 51º da Lei do Tribunal Constitucional e 12º n.º 1 alínea c) do Estatuto do Ministério Público, a fiscalização da norma constante do n.º 4 do artigo 39º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril, em virtude de, em seu entender, a norma impugnada violar a reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
Pede, por isso, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da aludida norma, com o seguinte teor:
Artigo 39.º Eleições
[...]
4 – O exercício de cargos dirigentes em sindicatos ou associações de enfermagem
é incompatível com a titularidade de quaisquer órgãos da Ordem.
[...]
Para sustentar a sua pretensão, explica o requerente o seguinte:
“(...)
4. A norma objecto do presente pedido incide sobre matéria compreendida no
âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
5. Não encontrando suporte bastante no sentido e extensão constantes da Lei de autorização legislativa[...].
6. Na verdade, tal norma – ao considerar incompatível a titularidade e o exercício simultâneo de cargos na Ordem dos Enfermeiros e nos sindicatos e nas associações (profissionais) de enfermagem, como forma de limitar a acumulação material de funções em tais entidades colectivas, com atribuições diferenciadas, traduz uma opção inovatória e constitutiva do legislador, em matéria atinente ao regime das “associações públicas” (alínea s) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição), assumindo particular relevo por se situar de pleno no plano da definição e concretização do princípio da separação de funções das Ordens e dos sindicatos e da garantia de efectiva autonomia e independência de umas e outras dessas pessoas colectivas (artigos 267.º, n.º 4, e 55.º, n.º 4, da Constituição), com eventuais reflexos – indirectos, mas relevantes – no plano da liberdade sindical (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, conjugada com o artigo
55.º da Constituição), ao impedir a eleição para os órgãos da Ordem dos profissionais inscritos e no exercício de funções directivas em associações sindicais.
7. E sujeitando, aliás, o artigo 269.º, n.º 5, da Constituição a reserva de lei o estabelecimento de incompatibilidades entre o exercício de cargos públicos (em que se compreende a titularidade dos órgãos de uma associação pública) e o de outras actividades.
8. Ora essa opção constitutiva do legislador, expressa na norma a que se reporta o presente pedido, não encontra suporte válido e adequado no objecto, sentido e extensão da lei de autorização legislativa – a referida Lei n.º
129/97, de 23 de Dezembro.
9. Não podendo, nomeadamente, considerar-se ínsita na autorização para criar determinada Ordem e lhe definir a estrutura orgânica a possibilidade de criação de um inovatório regime de incompatibilidades, com substancial reflexo na ponderação e concretização dos relevantes princípios constitucionais atrás identificados – e plenamente situados na área da competência legislativa reservada da Assembleia da República.”
O Primeiro-Ministro foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional. Em resposta, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma questionada, concluindo:
“A) As associações públicas, como é o caso da Ordem dos Enfermeiros, não devem exercer funções próprias das associações sindicais (artigo 267.º/4 da Constituição). O estabelecimento liminar deste princípio de não concorrência entre os sindicatos e as ordens profissionais visa garantir a liberdade sindical
(artigo 55.º da Constituição). O princípio da independência e autonomia dos sindicatos perante o Estado e os poderes públicos assim o exige.
B) O estabelecimento de uma incompatibilidade entre o exercício de cargos dirigentes em sindicatos ou associações de enfermagem e a titularidade de quaisquer órgãos da Ordem dos Enfermeiros limita-se a “concretizar” o que já se encontrava previsto na Constituição: a separação e independência do exercício de funções a nível sindical e a nível de órgãos das associações públicas ou ordens profissionais.
C) O exercício de funções nos órgãos da Ordem dos Enfermeiros não constitui exercício de “cargo público” para o efeito da aplicação do regime jurídico previsto no n.º 5 do artigo 265.º da Constituição.
O regime das associações públicas mostra-se específico face aos padrões constitucionais vigentes relativos ao direito de associação, mas não o anula ou afasta por completo. Não tem por função transformar os respectivos membros, no exercício de funções privadas ou públicas, em “funcionários públicos”.
D) O estabelecimento da incompatibilidade do exercício de cargos dirigentes em sindicatos ou associações de enfermagem com a titularidade de quaisquer órgãos da Ordem dos Enfermeiros inclui-se no âmbito do “sentido e extensão” da Lei de autorização legislativa, Lei n.º 127/97, de 23 de Dezembro. O “sentido e extensão” da credencial parlamentar, bem como o do acto legislativo do governo, e particularmente o disposto na norma cuja legitimidade se impugna, não pode deixar de ter em consideração os regimes constitucionais dos diferentes institutos: a liberdade sindical e a constituição das associações públicas. Uma coisa é o exercício de funções públicas de regulação de uma certa e determinada profissão, atribuída por um estatuto de direito público (no caso, o Estatuto da Ordem dos Enfermeiros), e outra o da representação organizada de interesses e de defesa de relações laborais.”
Face aos termos em que a questão é colocada, torna-se essencial saber se a aprovação pelo Governo – no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 129/97 de 23 de Dezembro e nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 198º da Constituição – da referida norma do n.º 4 do artigo 39º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros violou a reserva de lei parlamentar a que se refere o artigo 165º n.
1 da Constituição.
Importa, assim, reter que a norma impugnada visa estabelecer uma incompatibilidade entre o exercício de cargos dirigentes em sindicatos ou associações de enfermagem e a titularidade de quaisquer órgãos da Ordem dos Enfermeiros. Isto é, através dela, visa proibir-se o exercício simultâneo de cargos na Ordem e em sindicato ou associação de enfermagem; não se trata, como aparentemente poderia resultar da epígrafe do preceito – “Eleições” – de uma restrição à capacidade eleitoral passiva para quaisquer órgãos da Ordem, ou, se se quiser, de uma inelegibilidade para tais órgãos, pois é bem claro que a incompatibilidade é bipolar e tanto redunda na proibição de desempenho de cargos em quaisquer órgãos da Ordem, como no exercício de cargos dirigentes em sindicatos ou associações de enfermagem.
Vejamos.
O artigo 165º, n.º 1, da Constituição da República, determina:
1. É da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[...] b) Direitos, liberdades e garantias;
[...] s) Associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da Administração;
[...]
Por seu turno, os invocados artigos 55º n.º 4, 267º n.º 4 e 269º n.º 5 da Constituição estabelecem:
Artigo 55º
(Liberdade sindical)
[...]
4. As associações sindicais são independentes do patronato, do Estado, das confissões religiosas, dos partidos e outras associações políticas, devendo a lei estabelecer as garantias adequadas dessa independência, fundamento da unidade das classes trabalhadoras.
[...]
Artigo 267º
(Estrutura da Administração)
[...]
4. As associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos.
[...]
Artigo 269º
(Regime da função pública)
[...]
5. A lei determina as incompatibilidades entre o exercício de empregos ou cargos públicos e o de outras actividades.
[...]
Não se levantam dúvidas acerca da natureza da Ordem dos Enfermeiros: esta é uma associação pública – classificação que a própria lei de autorização legislativa
(a Lei n.º 129/97, de 23 de Dezembro) lhe atribuiu e é reiterada no artigo 1º do Estatuto – de natureza profissional, representativa dos diplomados em enfermagem que exercem a profissão de enfermeiro e cujas atribuições genéricas consistem em
«promover a defesa da qualidade dos cuidados de enfermagem prestados à população, bem como o desenvolvimento, a regulamentação e o controlo do exercício da profissão de enfermeiro, assegurando a observância das regras de
ética e deontologia profissional» (artigo 3º do Estatuto).
Sobre as características deste tipo de associações públicas – no caso, a Ordem dos Advogados – se pronunciou este Tribunal no Acórdão n.º 497/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs. 227 e segs.). E também no Acórdão n.º
320/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 511 e segs.) se reflecte o entendimento do Tribunal Constitucional sobre este tipo de pessoas colectivas públicas.
Para assegurar a defesa dos interesses públicos que a regulamentação de tais profissões postula, o Estado cria, por vezes, associações profissionais, a quem comete o encargo de organizar as respectivas profissões, controlando o ingresso nas mesmas, e o de garantir que os profissionais em causa exerçam o seu ofício, cumprindo um conjunto muito apertado de regras deontológicas, conferindo-lhes, para o efeito, diversos poderes de autoridade (entre eles, o de impor a inscrição na respectiva associação a todos quantos pretendam exercer a profissão em causa, o de lhes exigir o pagamento das respectivas quotas, e bem assim o de aplicar sanções disciplinares a quem não observar os deveres deontológicos). Está-se, então, em presença de associações públicas.
Como qualquer associação pública, em virtude do disposto no artigo 267º, n.º 4 da Constituição, a Ordem dos Enfermeiros é constituída para satisfação de necessidades específicas, não podendo exercer funções próprias das associações sindicais.
Aliás, antes mesmo da introdução, pela revisão constitucional de 1982, da figura das associações públicas na Constituição, a Comissão Constitucional, no Parecer n.º 2/78 (Pareceres da Comissão Constitucional, 4º vol., págs. 150 e segs.) – que incidiu sobre um diploma atinente à Ordem dos Médicos - já definia os limites das atribuições das associações profissionais, fazendo expressa referência à proibição do exercício de funções sindicais. E o mesmo entendimento veio a ser seguido por este Tribunal nos Acórdãos n.º 46/84 e n.º 91/85
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., págs. 275 e segs., e 5º vol., págs. 277 e segs., respectivamente) nos quais se sustentou que às ordens profissionais estaria vedado o exercício de funções sindicais.
Assente que está que as ordens profissionais não podem desempenhar funções de natureza sindical, daí não resulta necessariamente, porém, que, sem lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada, se possa estabelecer que a quem ocupa um cargo numa ordem profissional não seja permitido exercer, em acumulação, cargos dirigentes em sindicatos ou em outras associações de enfermagem.
Com efeito, se a norma constitucional constante do artigo 267º, n.º 4, pode constituir credencial constitucional bastante para que a lei estabeleça uma incompatibilidade entre o exercício de cargos na Ordem e o exercício de cargos em sindicatos de enfermeiros, nem por isso uma tal solução – independentemente da sua eventual bondade, que aqui se não questiona – dispensa a intervenção do legislador parlamentar. É que, desde logo, se poderia questionar se não se encontra na margem de liberdade de conformação do legislador o estabelecimento de uma tal incompatibilidade, uma vez que ela não existe para outros casos em que a independência das associações sindicais se encontra de igual modo constitucionalmente garantida – por exemplo, a lei não estabelece qualquer incompatibilidade entre o exercício de cargos dirigentes na administração pública ou em partidos políticos e em associações sindicais.
Por outro lado, e ainda que se encontrem razões reforçadas para o estabelecimento de uma tal incompatibilidade no caso vertente, tendo em conta a natureza profissional dos interesses por que a Ordem deve velar, o que agravaria os riscos de uma acumulação de funções, não se pode ignorar que seguramente caberá na discricionariedade legislativa optar entre a fixação de uma incompatibilidade geral, total e absoluta e a fixação de regras de incompatibilidade menos exigentes – por exemplo, apenas para certos cargos dirigentes ou só para um certo número percentual de titulares dos órgãos dirigentes.
Em qualquer caso, as razões determinantes da incompatibilidade, que se fundam na proibição do exercício de funções sindicais pelas ordens profissionais, não podem valer para o estabelecimento de uma incompatibilidade entre o exercício de cargos dirigentes na Ordem dos Enfermeiros e em outras associações não-sindicais de enfermagem. Isto, sem curar agora de saber se o legislador, ao regular a organização de uma determinada associação pública, não pode estabelecer uma incompatibilidade desse tipo.
Nesta conformidade, importa determinar se a definição de uma incompatibilidade entre o exercício de cargos dirigentes em sindicatos ou associações de enfermagem e a titularidade de quaisquer órgãos da Ordem dos Enfermeiros, adoptada pela norma em apreço, caberá ainda no sentido e extensão da autorização parlamentar ao abrigo da qual foi estabelecida, ou se, pelo contrário, extravasa esse sentido e extensão, caso em que deverá considerar-se emitida sem a cobertura da lei habilitante.
Na verdade, como se entendeu no Acórdão n.º 256/02 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 53º vol., pág. 151), a fixação de incompatibilidades com o exercício de cargos em associações profissionais ou sindicais corresponde ao estabelecimento de restrições à liberdade de associação e à liberdade sindical,
«as quais envolvem necessariamente o direito de eleger e ser eleito para os
órgãos das correspondentes estruturas associativas». Por isso, no referido aresto, «sem curar de saber» se tais restrições eram proporcionadas, o Tribunal considerou «evidente» que a norma que as estabelecia violava a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias.
Ora, a autorização legislativa concedida pela Lei n.º 129/97, não cobre a norma ora em apreciação. Efectivamente, nela se prevê apenas, nos seus aspectos mais relevantes:
Artigo único
1 - Fica o Governo autorizado a legislar no sentido da criação de uma associação pública denominada Ordem dos Enfermeiros e da aprovação dos estatutos da mesma.
2 - A autorização constante do número anterior terá os seguintes sentido e extensão:
a) A especificação dos vários tipos de membros da Ordem e os procedimentos visando a inscrição e titulação dos mesmos;
b) A definição de uma estrutura orgânica da Ordem de âmbito nacional e regional;
c) A definição das regras deontológicas a que o exercício da enfermagem está sujeito, independentemente do sector, público, privado, cooperativo e social, onde o mesmo se desenvolva;
d) A criação de um estatuto disciplinar dos enfermeiros, sem prejuízo das normas disciplinares aplicáveis no contexto laboral em que aqueles desenvolvem a sua actividade.
3. (…)
A previsão do n.º 4 do artigo 39º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros não pode considerar-se subsumível ao âmbito da autorização legislativa acima transcrita, pois que nem trata de definir quem se pode inscrever na Ordem, nem se refere à deontologia da profissão, nem tão-pouco versa sobre matéria disciplinar. Assim sendo, terá de se entender que tal norma foi emitida sem que o Governo estivesse para tal autorizado pela Assembleia da República.
Sem esta autorização legislativa, a norma em apreço deve considerar-se violadora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República definida no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, porque estabelece uma incompatibilidade com o exercício de cargos dirigentes em associações sindicais ou outras associações de enfermagem. E isto, independentemente do sentido e alcance que se deva atribuir à norma do artigo 269º, n.º 5, da CRP e da sua aplicabilidade ou inaplicabilidade aos cargos exercidos em associações públicas profissionais; e, bem assim, independentemente da questão de saber se a matéria sobre que incide a norma em apreço se deve considerar igualmente abrangida pela alínea s) do mesmo n.º 1 do artigo 165º da Lei Fundamental, que reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar em matéria de associações públicas.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 4 do artigo 39º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril, por violação do preceituado no artigo 165º n.º 1 alínea b) da Constituição da República.
Lisboa, 25 de Maio de 2004.
Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Luís Nunes de Almeida