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Proc. n.º 801/02
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Outubro de
2002, “com fundamento na inconstitucionalidade material das normas constantes do art.º 442º, n.º 3 e 755º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Civil (CC)”, quando interpretadas no sentido de atribuírem ao promitente comprador de um edifício ou fracção autónoma e que obteve a tradição da coisa o direito de retenção sobre essa mesma coisa e de esse direito prevalecer sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição, por violação dos princípios da proporcionalidade, da protecção, da confiança e segurança jurídicas no comércio imobiliário ínsitos no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e bem ainda “com fundamento na inconstitucionalidade orgânica” dos Decreto-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, na medida em que alteraram e introduziram aqueles preceitos do Código Civil, aqui por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 165º da CRP, na medida em que tais diplomas foram editados a descoberto de lei de autorização e a matéria a que respeitam se insere no âmbito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
2 – A par do Ministério Público que reclamou o pagamento de créditos da Fazenda Nacional e cuja sorte é alheia ao recurso, o ora recorrente reclamou no apenso de reclamação de créditos à execução sumária instaurada por B. contra a sociedade C., o pagamento de um crédito emergente de um contrato de mútuo, garantido por hipoteca constituída em 6 de Agosto de 1991. Por sentença do Tribunal Judicial de Oeiras, onde corria o processo, o crédito da ora recorrente foi graduado imediatamente depois do crédito reclamado por D., crédito este emergente do incumprimento de contrato promessa outorgado entre este e a referida executada relativo à fracção autónoma que foi vendida no referido processo executivo e sobre a qual o promitente comprador gozava de direito de retenção, tudo conforme sentença de 9 de Outubro de 1992.
Inconformado com esta decisão, a ora recorrente recorreu para o Tribunal da Relação, com fundamento, além de mais, nas referidas questões de inconstitucionalidade. Todavia, o Tribunal da Relação de Lisboa, pelo seu acórdão de 7 de Fevereiro de 2002, negou a apelação confirmando a sentença recorrida.
Novamente inconformado, o recorrente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que lhe negou a revista pretendida.
3 – Na parte concernente à apreciação das questões de inconstitucionalidade assim discorreu o acórdão recorrido:
«A) Inconstitucionalidade material das normas dos artºs. 442º, nº 2 e 755º nº 1 alínea f) do Código Civil, interpretadas e aplicadas no sentido de que o direito de retenção tem preferência sobre a hipoteca registada anteriormente, por violadoras dos princípios da proporcionalidade, da protecção, da confiança e segurança jurídicas no comércio jurídico imobiliário insitos no artº 2º e 20º da C.R.
Vista em abstracto a posição assumida pela recorrente até parece correcta. Porém, não o é, vistas e analisadas os negócios jurídicos donde decorrem os direitos de crédito, que recorrente e recorrida pretendem fazer valer na graduação de créditos, em apreço, em posição de superioridade recíproca. A recorrente, como entidade bancária, tem por objecto da sua actividade a circulação lucrativa do dinheiro. Assim, financiou a executada, a pedido desta, que é uma empresa construtora de imóveis, para lucrativamente vender a terceiros, emprestando-lhe determinada quantia a ser aplicada na construção do prédio, em causa, em regime de propriedade horizontal. Para defesa do capital emprestado a recorrente constituiu hipotecas sobre determinadas fracções autónomas, a expurgar, na altura da venda de tais fracções a terceiros, com o montante da venda, reduzido do lucro do construtor. Temos, pois, que a recorrente, ao conceder o empréstimo à executada, embora descontando-se nas hipotecas registadas, primeiro provisoriamente e depois definitivamente, assumiu o risco da executada não cumprir o contrato de promessa com o terceiro promitente comprador de uma das fracções anteriormente hipotecadas.
É evidente, que a recorrente sabia perfeitamente que, se o promitente comprador habitasse na fracção autónoma, que prometeu comprar, face ao incumprimento definitivo da executada construtora e promitente vendedora, aquele ficaria com o direito de retenção sobre tal fracção, até ser pago do direito de crédito decorrente de incumprimento referido – artºs 442º nº 2 e 755º nº 1 alínea f), do Código Civil. Assim sendo, é manifesto que a recorrente, desde o início do contrato de empréstimo, que celebrou com a executada construtora, tinha conhecimento perfeito do ónus, que sobre si recorria, pesem embora as hipotecas constituídas, em caso de incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda por parte da promitente vendedora e sua devedora, dando-se a “traditio” da fracção autónoma para o promitente comprador. Por tal motivo, não pode agora querer ultrapassar tal ónus mediante pretensão de inconstitucionalidades materiais, que não existem. Mas vejamos a questão sobre a perspectiva da situação económica dos intervenientes nos dois negócios jurídicos em apreço – contrato de mútuo entre a recorrente e a executada e contrato de promessa de compra e venda de imóvel entre a executada e o recorrido. Não restam dúvidas que a recorrente é uma entidade bancária com saúde financeira suficiente para proceder à efectivação de mútuos com terceiros em quantidade. Só assim atinge a finalidade a que se propôs, ou seja, tirar lucros, e elevados diga-se, dos empréstimos concedidos.
É bom de ver, que o lucro, a alma do negócio bancário, leva o mutante a assumir riscos. Por vezes tais riscos são assumidos sem a devida base de referência, no que diz respeito, à solvabilidade do crédito bancário mal parado. Em todo o caso, mau grado esta situação se verifique com alguma frequência, todas as entidades bancárias têm suficiente saúde financeira. Essa não é normalmente a posição do promitente comprador no contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma. Efectivamente, face aos preços que vêm atingindo os imóveis a maior parte dos compradores não têm o dinheiro suficiente para os comprar. Dão ao promitente vendedor um sinal, que, por vezes, é renovado e posteriormente pedem em empréstimo bancário o restante.
É bom de ver que se o promitente vendedor – normalmente a empresa construtora na primeira venda – entra em incumprimento definitivo, o promitente comprador, que fique credor do incumpridor, passa a uma situação de grande instabilidade económico-financeira, se a lei não lhe conceder alguma protecção. Face à disparidade da situação económica da entidade bancária e do promitente comprador é visível, no caso dos autos como em todos os outros idênticos, que o legislador, ao beneficiar o promitente comprador com o direito de retenção sobre o imóvel, que ocupa e pretendia comprar, até o seu crédito ser pago, mais não fez do que colocar em pé de igualdade, em tornar proporcional, as posições da entidade bancária e do promitente comprador, tornando mais seguro e confiante o comércio jurídico. A insegurança desse comércio jurídico manifestar-se-ia, sem dúvida, se fosse reconhecida a pretensão da recorrente. Perante a satisfação do crédito do mais forte ficaria praticamente insolvente o menos forte, em reflexos a verificarem-se mais tarde na compra e venda de imóveis.
É notória a improcedência da posição da recorrente. Por outro lado, como se refere no Ac. S.T.J. de 15-5-1990; B.M.J. 397º-478, já desde 1966 que o actual Código Civil confere ao direito de retenção prevalência sobre a hipoteca, ainda que este tenha sido registada anteriormente (art. 759º nº 2, do Código Civil); por isso o Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho, ao definir em abstracto um novo caso de direito de retenção, não está a ofender um direito anterior do credor que, no momento da constituição da garantia hipotecária, estivesse seguro da impossibilidade de nenhum outro direito prioritário. No mesmo sentido, o Ac. S.T.J., de 28-1-99, no processo 1061/98, como bem refere o Sr. Procurador-Geral da República Adjunto, a fls. 346. Face ao posicionamento atrás avançado é de concluir a revista improcede no referente à alegada inconstitucionalidade material. Não se mostram violados no acórdão recorrido os artºs 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
B) Inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei nº 236/80, de 18 de Julho e nº 379/86, de 11 de Novembro.
É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre “Direitos, liberdades e garantias” – alínea b) do nº 1 do art. 165º da C.R.. Contudo, os dois diplomas em apreço tratam de matérias, que não contendem com esses direitos, liberdades e garantias fundamentais. As garantias patrimoniais e os direitos neles configurados, embora sejam abrangidos, como todos os outros, nos direitos, liberdades e garantias fundamentais, precisam de regulação jurídica adequada, tendo em conta o momento histórico respectivo, pois são direitos e garantias menores em relação aos fundamentais. Não sendo, pois, as matérias reguladas naqueles diplomas legais da exclusiva competência da Assembleia da República, o Governo não carecia de autorização para legislar sobre elas. Em conclusão: os diplomas legais colocados em crise pela recorrente não sofrem de inconstitucionalidade orgânica. Não se mostra violado o disposto no art. 165º, nº 1, alínea b) da C.R.P.»
4 – Alegando neste Tribunal sobre o objecto do recurso, o recorrente concluiu do seguinte modo:
«II – Conclusões
I - O artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil confere ao promitente comprador , que obteve a tradição da coisa, um direito de retenção sobre o bem imóvel; II - O direito de crédito do promitente comprador, resultante do incumprimento pelo promitente vendedor, do respectivo contrato-promessa, prevalece sobre o crédito hipotecário, ainda que a hipoteca apresente registo anterior; III - Tal direito de retenção não é objecto de registo, logo, é um direito que não é publicitado; IV- No caso dos autos, vê-se a Recorrente confrontada com um direito real de garantia, não sujeito a registo, com o qual não contava; V - Esse direito de retenção sobrepõe-se à hipoteca constituída e registada em momento anterior, relegando-a para um segundo plano; VI - O legislador ao querer proteger e defender os interesses de uma das partes na relação jurídica emergente do contrato-promessa, não poderia ter criado normas que sacrificam, efectivamente, da forma injusta e ilegítima, os interesses patrimoniais de terceiros não intervenientes e completamente alheios, por causa que não lhes é imputável, ao contrato-promessa; VII- Proteger-se, por esta forma, um direito que não é publicitado é permitir que 'ónus ocultos' afectem a posição jurídica do sujeito que levou o seu acto a registo; VIII - Está, assim, posto em causa o próprio princípio da segurança do comércio jurídico imobiliário; IX - À certeza e segurança do direito repugnam os direitos reais de garantia
'ocultos', isto é, que não são levados a registo; X - Tem o registo predial por finalidade a segurança e protecção dos intervenientes no mercado imobiliário, evitando-se assim os 'ónus ocultos' que dificultem o exercício de direitos legitimamente constituídos e registados sobre imóveis; XI - Através da via registral evita-se que a segurança do comércio jurídico imobiliário possa vir a ser afectada. XII - A Recorrente, credora hipotecária, vê frustrada a confiança no comércio jurídico imobiliário; XIII - O regime jurídico do direito de retenção concedido ao promitente comprador por força das citadas normas, tudo isto ignora, dado que frusta a legítima confiança que o credor hipotecário deposita no Estado enquanto garante dos seus direitos fundamentais; XIV - Por força da sentença de graduação de créditos confirmada pelo Tribunal Recorrido vai ser pago o crédito do promitente comprador com preferência sobre o crédito da Recorrente; XV - É uma injustiça para o credor hipotecário sofrer a ofensa dos seus interesses e direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados anteriormente à constituição e invocação do direito de retenção; XVI - Na sentença dos presentes autos, graduando o crédito do promitente comprador com preferência sobre o crédito da Recorrente, verifica-se a existência da violação do princípio da confiança do comércio jurídico, princípio constitucional ínsito no artigo 2º da CRP; XVII - As normas dos artigos 442º, nº 2 e 755º, nº 1, alínea f), ambos do Código Civil, interpretadas e aplicadas no sentido de que o direito de retenção tem preferência sobre a hipoteca registada anteriormente, são materialmente inconstitucionais por violadoras dos princípios da proporcionalidade, da protecção, da confiança e segurança jurídicas no comércio jurídico imobiliário
ínsito no artigo 2º da CRP; XVIII - Os Decretos-Lei nº 236/80, de 18 de Julho e n.º 379/86, de 11 de Novembro, são inconstitucionais por regularem matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais da competência exclusiva da Assembleia da República; XIX - Para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria necessitava de autorização do ente legislativo competente; XX - Não foi concedida a devida autorização; XXI - Ao fazer inovações sobre essa matéria, sem que para tal estivesse autorizado, houve violação da esfera de competência de outro órgão; XXII - Verifica-se haver inconstitucionalidade orgânica;
XXIII - Sendo inconstitucionais tais diplomas, as normas que deles emanam não podem ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial.»
5 – Os recorridos não contra-alegaram.
B – Fundamentação
6 – As questões de inconstitucionalidade suscitadas nestes autos já foram objecto de larga apreciação por parte do Tribunal Constitucional, salvo no que tange à prevalência do crédito de beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real sobre coisa imóvel de que obteve a tradição sobre o crédito garantido por hipoteca registada em data anterior à tradição, questão esta que só no recente Acórdão n.º 356/04 foi abordada, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.
Assim no sentido da não inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.ºs
236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 e Novembro [diplomas que, alterando, respectivamente, os art.ºs 442º e 775º, n.º 1, ambos do Código Civil, aditaram o n.º 3 ao primeiro artigo, instituindo o direito de retenção a favor do promitente comprador de prédio ou fracção de que tenha obtido a sua tradição, e a alínea f) ao segundo, fazendo incluir o direito de retenção em tal situação entre os casos de direito de retenção mencionados no preceito], pronunciaram-se os Acórdãos n.º 374/03, publicado no Diário da República II Série, de 3 de Novembro de 2003, n.º 594/03 e 22/04, estes disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.
Essencialmente esses arestos estribaram-se na consideração de que
“apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias”, fazendo parte desta reserva “apenas as normas relativas
à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”, dimensão esta em que se inclui, indubitavelmente, o direito de cada um a não ser arbitrariamente privado da sua propriedade e, na hipótese de expropriação, a receber uma justa indemnização
(cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 329/99 e 374/03, publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 20 de Julho de 1999 e de 3 de Novembro de 2003) e que o direito de retenção, entendido enquanto direito real de garantia das obrigações – de direito sobre um direito - , não integra esse núcleo essencial do direito de propriedade.
Neste último acórdão concluiu-se, a propósito:
«Ora, quer a doutrina, quer a jurisprudência constitucional, que consideram extensível o regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais análogos têm tido o cuidado de salientar que essa extensão só se justifica quando estejam em causa “intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actividade legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias” (formulação do citado Acórdão n.º 373/91). Especificamente sobre o direito de propriedade, afirmou-se no Acórdão n.º 517/99
(Diário da República II Série, n.º 263, de 11 de Novembro de 1999, pág. 17 054; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º vol., pág. 89) que “apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias”, apenas fazendo parte dessa reserva “as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”, pelo que então se concluiu que já não se incluíam “nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa”.
[Sobre a necessidade (e as dificuldades) de distinção, no direito de propriedade, da parcela que merece a equiparação a “direito, liberdade e garantia” da parcela que consagra um mero “direito económico”, cfr. Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral Pinto Correia, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, págs. 540 a 561]. Recordada esta orientação, impõe-se a conclusão de que as intervenções legislativas questionadas nestes autos, limitadas à introdução de uma nova garantia do promitente-comprador beneficiário da tradição do prédio ou fracção, embora com eventual reflexo na posição de outros credores do promitente-vendedor, não podem ser consideradas como atingindo o núcleo essencial do direito de propriedade privada, na dimensão que o torna análogo aos direitos, liberdades e garantias, em termos tais que justifique a extensão do regime orgânico típico destes.
O direito de propriedade, no sentido amplo que abarca os direitos de crédito, está aqui em causa numa dimensão que não é indispensável à sua concepção como garantia de “espaço de autonomia pessoal” (Maria Lúcia Amaral, obra citada, pág.
542) ou “essencial à realização do Homem como pessoa” (Acórdão n.º 517/99), e a reserva orgânica do Parlamento quanto aos direitos fundamentais análogos é uma exigência decorrente “da sua maior proximidade valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana” (Vieira de Andrade, obra citada, pág. 194, nota 60) e da garantia da sua autonomia pessoal.».
Por seu lado, no sentido da não inconstitucionalidade material das normas dos art.ºs 442º, n.º 3 e 755º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Civil, pronunciaram-se os referidos acórdãos n.º 594/03 e n.º 22/04. Ajuizou-se aí que atribuição ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, do direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte não violava os princípios da proporcionalidade, da protecção da confiança e da segurança jurídicas implicados no princípio do Estado de direito democrático afirmado no art.º 2º da CRP.
E pela não inconstitucionalidade da atribuição legislativa ao direito de retenção, conferida pelas disposições conjugadas dos art.ºs 442º, n.º
3, 755º, n.º 1, alínea f), e 759º, n.º 2, todos do CC, do efeito jurídico de ser graduado com prevalência sobre o crédito hipotecário concluiu o referido Acórdão n.º 356/04. Após apelar para a existência de algum paralelismo com a situação examinada no Acórdão n.º 498/03, publicado no Diário da República II Série, de 3 de Janeiro de 2004, relativo à conformidade com a Lei Fundamental da norma da alínea b) do n.º 1 do art.º 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, na interpretação que confere aos créditos imobiliários emergentes de contrato individual de trabalho preferência sobre a hipoteca anteriormente constituída, revelada pela circunstância de “o direito de retenção, (por) estar associado à tradição da coisa, implica uma conexão com o imóvel ou fracção autónoma”, aquele Acórdão n.º 356/04 acentuou que não se poderia concluir pela violação do princípio da confiança jurídica numa situação, como a que emergia dos autos – e que igualmente ocorre na situação sub judice, como decorre do relatado - , em que o regime impugnado já se encontrava em vigor no momento em que a hipoteca fora constituída.
Por seu lado, passando a abordar a questão de constitucionalidade, em termos gerais, afirmou-se mais aí:
«Para além disto, é ainda de referir que a norma em apreciação no presente recurso opera meramente uma ponderação adequada do interesse das instituições de crédito detentoras de créditos hipotecários na protecção da confiança inerente ao registo predial e do interesse dos consumidores na protecção da confiança relativa à consolidação de negócios jurídicos, notando-se que os mesmos respeitam, em muitos casos, à aquisição de habitação própria permanente. Nesta perspectiva, também a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador do direito dos consumidores
à protecção dos seus específicos interesses económicos (associados, em inúmeros casos, à aquisição de habitação própria, pelo que é ainda convocável o artigo
65º da Constituição) e à reparação dos danos (artigo 60º da Constituição – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., p. 323).».
São estes juízos de não inconstitucionalidade e a fundamentação que os suporta que aqui se renovam.
C – Decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 442º, n.º 3 e 755º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Civil (necessariamente articulados com o disposto no artigo 759º, n.º 2, do mesmo diploma), negando consequentemente provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos