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Processo n.º 564/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso em que é recorrente A., foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - Nos autos de autorização judicial para redução de capital social requerida por A. foi proferida, em 26/11/02, pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo, sentença autorizativa, que concluiu nos seguintes termos:
“Custas pela requerente.
Registe e notifique.
Valor da acção para efeitos de custas – o valor da redução
(100.000.000,00) – Artº 7º al. h) do C.C.J..”
Não houve recurso desta decisão.
Notificado, porém, da conta de custas, a recorrente dela reclamou, sustentando, em síntese que a conta “viola o direito comunitário, nomeadamente a Directiva do Conselho 69/335/CEE (de 17 de Julho de 1969), relativa aos impostos directos sobre as reuniões de capitais”, mais concretamente, os artigos 4º, 10º e 12º da referida Directiva.
Sobre esta reclamação foi proferido, em 12/02/03, o seguinte despacho (na parte que interessa):
“A reclamação efectuada ao abrigo do disposto no artº 59º e 60º do CCJ pressupõe uma reclamação.
No caso em apreço, e como bem refere o Sr. Contador, a questão levantada é uma questão de direito.
A reclamação apresentada não se prende, objectivamente, com o modo como a conta foi elaborada. Esta está correctamente elaborada.
A questão reside em ter sido considerado para efeitos do cálculo das custas o disposto no artº 7º al. h) do CCJ.
Ora, essa consideração não compete ao contador, nem foi aquele que determinou a sua aplicação em termos de elaboração da conta.
A mesma resulta da sentença proferida a fls. 40 e 46 na qual se determinou que o valor da acção para efeitos de custas era calculado nos termos do que dispõe o referido artº 7º al. h) do CCJ.
A pretensão da requerente não se compadece com uma reclamação da conta – a qual, reafirmamos está correctamente elaborada – mas antes, devia Ter sido objecto de recurso da sentença na parte respeitante às custas, como refere o Digno Magistrado do M.P..
Tendo a requerente deixado salientar tal decisão, e não sendo caso de reforma da conta, outra solução não temos que a de indeferir o requerido.
Sem custas.
Notifique.”
A recorrente impugnou este despacho para o Tribunal da Relação de Guimarães, requerendo, ainda, caso se entendesse obrigatório, o reenvio prejudicial nos termos do artigo 234º do Tratado de Roma, para o que propôs a formulação de duas questões; no seu acórdão de 18/06/03, o Tribunal da Relação de Guimarães negou provimento ao recurso.
Nele se escreveu, também na parte que interessa:
“Implicando o processo o pagamento de custas, tem de se efectuar neles a respectiva conta final, de acordo com o julgado em última instância
(arts. 50º e 53º CCJ).
Nela se acatarão as regras sobre a dinâmica e elaboração do acto de contagem, podendo ser ordenada a sua reforma se não estiver de harmonia com as disposições legais aplicáveis (arts. 53º e 60º CCJ).
Mas tal meio incidental é inidóneo para reagir contra a decisão que a mandou efectuar e respectiva medida. Porque se esgotou o respectivo poder jurisdicional, não pode atender ao pedido de reforma da conta, se ela se encontra efectuada nos termos da decisão, salvo violação da regra do caso julgado; na verdade, a ter havido erro, não é da conta, mas da própria decisão, já imodificável (cfr. arts. 666 e 669º CPC).
O vencido na decisão sobre a questão incidental da reclamação pode dela recorrer, de acordo com a regra da alçada; mas não pode propor-se já a alteração daqueloutra decisão que a ordenou, se ela se mostra cumpridora das regras técnicas próprias.
c)
Ora, tanto quanto dos autos se vê, a sentença final estabeleceu adequadamente a sucumbente, para efeito de custas, e fixou, como a recorrente sugerira, o valor correcto para a respectiva contagem.
Tendo-se a agravante conformado com tal decisão basilar, já não lhe
é lícito obter a sua modificação, em pura sede de reclamação da conta, a não ser que ela demonstrasse vícios de efectivação – o que, a título prévio, prejudica o conhecimento do demais trazido ao recurso.” (sublinhado nosso).
A este trecho do aresto segue-se um outro em que se começa por dizer:
“Ainda assim, analisemos a restante parte do discurso argumentativo na senda da impugnação.”
E é neste trecho que o acórdão entende que:
- A invocação da Directiva se mostra desajustada uma vez que ela não se aplica aos custos da Justiça;
- Mesmo que assim não fosse, sempre se teria que reenviar a questão a título prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, em ordem a ajuizar sobre a interpretação do direito comunitário emergente do Tratado de Roma.
- Esse procedimento seria, no caso “dispensável”, “pelo menos face ao valor da soma em jogo (cfr. J. Ferreira Alves, Lições de Direito Comunitário, II/36 e artº 24º nº 1 LOTJ, na redacção do DL nº 323/2001, de 17 de Dezembro) sendo que aquelas normas de direito interno não poderiam ser objecto de reenvio, pois que este só incide sobre a interpretação e apreciação da validade de dispositivos de direito comunitário”.
O acórdão conclui com a decisão de “julgar não provido o agravo e confirmar a decisão sub judicio”.
A recorrente pediu, então, a aclaração do acórdão, o que foi indeferido por acórdão de 8/10/03.
Ainda inconformada, a recorrente arguiu a nulidade do acórdão de
18/06/03; a título subsidiário requereu a reforma do mesmo acórdão e interpôs recurso para o STJ.
Quanto à nulidade, alegou a recorrente que se omitira a prática de um acto que a lei prescreve – o reenvio prejudicial nos termos do artigo 234º do Tratado de Roma – o que inquinaria os acórdãos de 18/6/2003 e de 8/10/2003; a julgar-se não verificada a nulidade, por se entender que o reenvio não era obrigatório, ter-se-ia feito aplicação daquela norma com um sentido inconstitucional, violando-se os artigos 32º nº 9, 216º nº 1 e 217º nº 3 da Constituição.
No que respeita ao pedido de reforma, alegou a recorrente lapso manifesto na qualificação da situação sub judice, na determinação das normas aplicáveis ou na interpretação e aplicação da norma do artigo 234º do Tratado de Roma; se assim se não entendesse, estaria a aplicar-se a mesma norma com o sentido inconstitucional supra referido.
Por despacho do relator, de 19/11/2003, foram desatendidas todas as pretensões da recorrente, nos seguintes termos:
Quanto à nulidade do acórdão de 18/6/2003, por ser extemporânea a arguição do vício; quanto ao acórdão de 8/10/2003 por a suposta necessidade de reenvio processual nunca ter sido suscitado em primeira instância ou nas conclusões do recurso.
Quanto ao pedido de reforma, porque “padece do seguinte mal: nunca será de atender o incidente de reforma de um acórdão já de si aclaratório, como jurisprudencialmente é líquido.”
Deste despacho a recorrente reclamou para a conferência, dizendo, em síntese, que:
- Não é extemporânea a arguição de nulidade do acórdão de 18/6/2003, por o prazo só ter começado a contar depois da notificação do acórdão de
8/10/2003 que indeferiu o pedido de aclaração.
- Requereu o reenvio prejudicial no recurso para a Relação
- Requereu a reforma do acórdão de 18/6/2003 e não do acórdão aclaratório de 8/10/2003.
Por acórdão de 10/3/2004, a Relação de Guimarães desatendeu o incidente, dizendo apenas:
“A decisão em causa não é merecedora dos vícios que a impetrante lhe aponta.
Por economia de meios, torna-se dispensável repisar o teor argumentativo aí exposto.
Em conformidade, acordamos, em nome do Povo, em desatender o incidente de aclaração.
Custas pelo sucumbente.”
É, então, interposto recurso pela recorrente, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alíneas b) e i) da LTC, com o pedido de apreciação da inconstitucionalidade do artigo 234º § 3º do Tratado de Roma, “na interpretação que lhe foi dada no douto acórdão de 18/06/2003 e decisões posteriores, isto é, com o sentido de que o valor da soma em jogo no processo, ou a natureza de direito interno de determinadas normas, constituiriam excepção à obrigatoriedade de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE)”; tal interpretação violaria a competência exclusiva do TJCE em matéria de interpretação das normas do direito comunitário e, por via disso, ofenderia o princípio constitucional do juiz legal (ou natural) consagrado nos artºs 32º, nº 9, 216º nº 1 e 217º nº 3 da Constituição, bem como a garantia constitucional do acesso aos tribunais e à decisão judicial, consagrada no artº 2º nº 1 da Constituição, porquanto se teria negado à recorrente o direito a que a questão de interpretação de direito comunitário por ela suscitada fosse decidida pelo TJCE.
Nos termos do mesmo requerimento, a questão de constitucionalidade só foi suscitada no requerimento de arguição de nulidade processual e de reforma do acórdão de 18/6/2003 e na reclamação para a conferência por não poder ser antecipada a possibilidade de aplicação da norma do artigo 234º § 3º do Tratado de Roma, com o sentido descrito.
O recurso foi admitido no tribunal “a quo” nos seguintes termos:
“Não se vê que a recorrente haja suscitado qualquer violação de regras constitucionais nas conclusões do recurso de fls. 6v. e 7 [recurso para a Relação que deu lugar ao Acórdão de 18/6/2003].
Todavia, sendo que o Tribunal Constitucional melhor julgará, recebe-se, por cautela, o requerimento de fls. 91; subirá nestes autos, imediatamente, com efeito devolutivo.”
Remetidos os autos a este Tribunal, cumpre decidir.
2 – Constitui pressuposto inarredável dos recursos previsto no artigo 70º nº 1 alíneas b) e i) da LTC que a norma (ou uma sua interpretação) cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional tenha sido aplicada, como ratio decidendi.
A primeira interrogação que o requerimento de interposição de recurso suscita é a de saber qual a decisão judicial que vem impugnada pela recorrente, o que se deve à falta de precisão, neste ponto, do referido requerimento.
A verdade, porém, é que, sendo o acórdão de 18/10/03 proferido sobre um pedido de aclaração e o de 10/3/04 sobre arguição de nulidade e de pedido de reforma (confirmando o despacho de 19/11/03), onde os indeferimentos não radicam em qualquer aplicação, expressa ou implícita, da norma do artigo 234º § 3º do Tratado de Roma, entende-se – até numa perspectiva mais favorável à recorrente – que o acórdão recorrido é aqui o que foi prolatado em 18/06/03.
Com efeito, só neste se alude ao “reenvio prejudicial” (embora referindo o artigo 177º do Tratado de Roma) e é nele que acabam por radicar os sucessivos pedidos de aclaração e de reforma e a arguição de nulidades formulados pela recorrente.
A verdade, porém, é que a recorrente a partir desse acórdão envereda por uma via de claro apelo à norma comunitária para dele fazer “arrancar”, se assim se pode dizer, uma eventual inconstitucionalidade e, por este meio, alcançar um recurso de constitucionalidade.
Esqueceu, contudo, o contexto em que surgiu referenciado o “reenvio prejudicial” (acórdão de 18/6/03), tudo passando a funcionar como se a norma comunitária fosse a ratio decidendi do aresto.
Mas não foi, como facilmente se demonstra.
Na verdade, a decisão de 1ª instância, de 12/2/03, que nunca foi alterada, mas sempre confirmada na Relação, deixou bem evidenciada a razão do indeferimento da reclamação da conta de custas apresentada pela recorrente.
Essa razão era só uma: a inidoneidade do meio utilizado pela recorrente, uma vez que não estava em causa qualquer erro de cálculo da conta, conta essa que fora elaborada em perfeita execução do que se decidira na sentença de 26/11/02, no sentido de, para efeito de custas, o valor da acção ser o valor da redução do capital, por força do artigo 7º, alínea h) do CCJ; e dessa sentença, na parte que a recorrente considerava desfavorável (aquele valor, para efeito de custas), não houve qualquer recurso, o que lhe deu força de caso julgado.
Bem tentou a recorrente, nas alegações de recurso da decisão sobre a reclamação da conta, demonstrar que o meio utilizado era idóneo, pois só com a liquidação das custas surgira a infracção ao direito comunitário.
Mas a verdade é que a tese defendida não logrou qualquer aceitação no acórdão de 18/6/03 (insindicável por este Tribunal no estrito plano do direito infraconstitucional) que, sem margem para quaisquer dúvidas, confirmou a decisão de 1ª instância, como bem se revela no trecho do aresto que acima sublinhámos.
O que não pode deixar de significar que todas as considerações que a seguir se fazem no mesmo aresto sobre o reenvio prejudicial não são mais do que obter dicta, sem traduzir assim qualquer ratio decidendi. Note-se, aliás, o modo expressivo como essas considerações são antecedidas: “Ainda assim, analisemos...”.
Em suma, pois, independentemente de outras questões que se poderiam também suscitar sobre a admissibilidade do presente recurso, esta – a da não aplicação da interpretação normativa em causa como fundamento do decidido – obsta, só por si, ao conhecimento do objecto do recurso.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 Ucs.'
Notificada desta decisão, dela vem a recorrente reclamar para a conferência, alegando em síntese que o que se entendeu ser, no acórdão recorrido, um mero obiter dictum, constituiu um fundamento da decisão; e daí que esse acórdão tenha aplicado, como ratio decidendi, a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, mostrando-se preenchidos os pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade.
Na sua resposta, o Ministério Público sustenta que a reclamação deve ser indeferida.
Cumpre decidir.
2 - Nada diz a reclamante, com suficiente consistência, para infirmar o que se decidiu.
Importa, apenas, salientar o seguinte:
Só compete ao Tribunal Constitucional apreciar a interpretação e aplicação das normas de direito infraconstitucional feitas nas decisões recorridas na perspectiva da sua conformidade ou desconformidade à Constituição.
O julgamento que se fez resultou unicamente da interpretação da decisão recorrida, tendo-se concluído que o verdadeiro fundamento dessa decisão fora a inidoneidade do meio processual utilizado - reclamação da conta quando o que estava em causa era a condenação em custas.
É assim irrelevante tudo o que a recorrente diz no sentido de a sua pretensão se ter apenas justificado depois da notificação para pagamento da conta de custas. Tal consubstancia uma questão de direito infraconstitucional que não vem controvertida, no presente recurso, em termos de constitucionalidade normativa.
Não se negou a evidência de o acórdão recorrido se ter pronunciado sobre a questão de eventual infracção às regras de direito comunitário, pelo que não é argumento contra o decidido fazer relevar e transcrever uma tal pronúncia.
E, contra o que a reclamante diz - basta atentar nos termos, transcritos na decisão sumária, do acórdão de 18/06/03 - não foi o entendimento de que se não verificava aquela infracção que determinou a decisão da inidoneidade do meio processual utilizado.
Assim, sem necessidade de outras considerações, nada há a censurar à decisão reclamada.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida