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Proc. n.º 423/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça reclama para o Tribunal Constitucional nos termos do disposto no art.º 76º, n.º
4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do relator, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 8 de Janeiro de 2004, que não admitiu o recurso interposto pelo reclamante para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da mesma Lei do acórdão daquele STJ de 14 de Maio de 2003 que, dando provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, alterou parcialmente as penas em que o arguido A. fora condenado pelo tribunal colectivo da mesma comarca, e do acórdão de 12 de Novembro de 2003 que indeferiu a arguição de nulidade daquele acórdão.
2 – Após a prolação do acórdão de 14 de Maio, o Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça veio arguir a sua nulidade sob o fundamento de que, em síntese e na parte que ora interessa, nas alegações orais a que alude o n.º 3 do art.º 423º do Código de Processo Penal (CPP) produzidas nesse Supremo Tribunal, o requerente havia alegado, inovatoriamente, que o tribunal de 1ª instância tinha procedido, a coberto do n.º 1 do art.º 358º do CPP, a uma requalificação jurídica dos factos de que o arguido vinha acusado sem o ter previamente ouvido e dar-lhe oportunidade de defesa e que estas omissões consubstanciavam uma nulidade insanável do respectivo acórdão condenatório que deveria ser conhecida pelo tribunal de recurso e, ainda, que, caso o Supremo confirmasse a interpretação e aplicação do n.º 1 do art.º 358º do CPP que fora feita pelo tribunal colectivo, tal correspondia a sufragar um entendimento dessa norma “em grave violação dos princípios do acusatório, contraditório e demais elementares garantias de defesa do arguido, objecto de consagração no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa”.
3 – O despacho reclamado não admitiu o recurso interposto pelo reclamante com o fundamento, em síntese, de que «se nesse momento [a que alude o art.º 423º, n.º 3, do CPP] suscitou, pelo menos, em termos formais e explícitos, a inconstitucionalidade da norma por ele citada é facto que não podemos garantir», que «quod non est uin actis non est in mundo», que «mal iriam as coisas se agora bastasse alegar oralmente toda e qualquer inconstitucionalidade para assim se abrir a porta ao recurso para o Tribunal Constitucional que, cada vez mais vem funcionando como 4ª instância», que «a ser assim ficaria sem sentido a exigência, constante do n.º 2 do art.º 75º-A da Lei n.º 28/82, de indicação “da peça processual em que o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade”» e, finalmente, que, embora a questão de inconstitucionalidade da norma do art.º 358º, n.º 1 do CPP tivesse sido suscitada no referido requerimento de arguição de nulidade, tal “aconteceu já depois do julgamento”, sendo de notar até que “o acórdão que conheceu de tal arguição foi subscrito por juízes diversos, por dois deles terem entretanto cessado funções no tribunal”.
4 – O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional, depois de referir que o Tribunal “tem entendido de forma reiterada, que recai sobre o interessado que pretenda assegurar a via do recurso tipificado na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82 o ónus de providenciar pela documentação em acta ou auto de suscitação da questão de inconstitucionalidade”, que essa exigência se configura, de algum modo, como «corolário do carácter plenamente escrito do processo constitucional, revelando-se tal documentação em acta como essencial para sindicar se o modo e a forma como a questão foi então equacionada obedecem aos requisitos da “suscitação procedimentalmente adequada”», requereu que se suscitasse ao STJ a remessa de cópia da acta de julgamento do processo”.
5 – Tal pedido foi deferido, tendo sido junta aos autos cópia dessa acta. Aberta novamente vista nos autos ao Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, pronunciou-se nos termos seguintes:
«Face ao teor da acta de julgamento verifica-se que não se mostra documentada a suscitação da questão de constitucionalidade pelo representante do M.º P.º reclamante – o que de acordo com a jurisprudência reiterada deste Tribunal – conduz a que se não possa considerar suscitada, “em termos procedimentalmente adequados”, a questão de constitucionalidade a que vinha reportado o recurso, cujos pressupostos, em consequência, não se verificam».
B – Fundamentação
6 – O mérito da reclamação prende-se com a questão de saber se a questão de inconstitucionalidade que se pretende que seja apreciada pelo Tribunal Constitucional foi suscitada “em termos procedimentalmente adequados durante o processo”, dado entender-se que esta suscitação constitui pressuposto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC, e se ocorreu essa alegação. Na verdade, constitui requisito do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a que se refere a alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC que a questão de (in)constitucionalidade que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie tenha sido suscitada durante o processo de modo procedimentalmente adequado. A suscitação durante o processo tem sido entendida, de forma reiterada, pelo Tribunal, como sendo a efectuada em momento funcionalmente adequado, ou seja, em que o tribunal recorrido pudesse dela conhecer por não estar esgotado o seu poder jurisdicional. É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora da via de recurso. É por isso que se entende que não constituem já momentos processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter pronunciado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., pp.
663; n.º 374/00, publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de
2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de
2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito). Excepção a tal regra são apenas aquelas hipóteses ditas de excepcionais em que o recorrente é confrontado com a utilização insólita e imprevisível da norma por parte da decisão recorrida, ou seja aqueles casos em que seria desrazoável e inadequado exigir do interessado um prévio juízo de prognose relativo a tal aplicação em termos de se antecipar à prolação da decisão, suscitando antecipadamente assim a questão de inconstitucionalidade (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 489/94, publicado no Diário da República II Série, de 16 de Dezembro de 1994, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º, pp. 415; n.º
310/00, publicado no Diário da República II Série, 17 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp.853 e n.º 120/02, publicado no Diário da República II Série, de 15 de Maio de 2002, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52º, pp. 575).
Por outro lado, o Tribunal tem considerado, também reiteradamente, que recai sobre o interessado que pretenda assegurar a via do recurso tipificado na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC o ónus de providenciar pela documentação em acta ou auto de suscitação da questão de inconstitucionalidade que haja colocado em intervenção ou alegação oral (cfr., neste exacto sentido, os Acórdãos n.º 637/96, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Julho de 1996, Acórdãos do Tribunal Constitucional 34º vol., pp. 481 e BMJ, 457º, pp.
67, n.º 397/97, publicado no Diário da República II Série, de 17 de Julho de
1997, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37º vol., pp. 229 e BMJ, 467º, pp.
190 e n.º 536/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudência). Substituindo, numa tal circunstância de facto, essa acta ou auto a peça escrita em que os interessados processuais formulam ao tribunal os seus pedidos e alegam os respectivos fundamentos, incluindo de (in)constitucionalidade, é de exigir-lhes que verifiquem se essa acta ou auto reproduz a alegação oral que tenham feito, em termos de por ela se poder constatar se o modo e a forma como colocaram a questão preenchem os requisitos processuais do recurso que intentem eventualmente interpor. Tal exigência, no processo constitucional, é, de resto, como bem nota o Ministério Público junto deste Tribunal, postulada pelo seu carácter plenamente escrito, dado essa documentação ser essencial para o Tribunal Constitucional poder “sindicar se o modo e a forma como a questão de
(in)constitucionalidade foi equacionada obedecem ao referido requisito da suscitação procedimentalmente adequada”. É nesta concepção que radica a razão de ser do ónus imposto ao recorrente de, no requerimento de interposição de recurso, ter de indicar, segundo os próprios termos verbais do n.º 2 do art.º
75º-A, da LTC, a “peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade” (itálico acrescentado) e não apenas a fase processual em que tal terá acontecido.
7 - Ora, como bem refere o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, verifica-se que não se encontra documentada na acta de julgamento a suscitação da questão de inconstitucionalidade que o reclamante diz ter efectuado a quando do momento processual a que se refere o n.º 3 do art.º 423º do CPP – altura da realização das alegações orais na audiência de julgamento em recurso.
Sendo assim, e porque a suscitação documentalmente provada apenas ocorre no articulado da arguição de nulidade do acórdão decisório do recurso interposto para o STJ, não pode concluir-se ter sido suscitada em termos procedimentalmente adequados a questão de inconstitucionalidade a que se reporta o recurso.
Deste modo, há que concluir que não se verifica tal requisito do recurso tipificado na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, decide o Tribunal Constitucional indeferir a reclamação.
Sem custas por delas estar isento o reclamante.
Lisboa, 26 de Maio de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos