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Proc. n.º 489/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., melhor identificada nos autos, reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art.º 76º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do relator, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que não lhe admitiu o recurso interposto do acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Janeiro de 2003, para o Tribunal Constitucional.
2 – O reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC, alegando fazê-lo “porque do texto do acórdão desse Supremo Tribunal resultam fortes indícios da existência de inconstitucionalidade/ilegalidade da interpretação dada às normas constantes nos art.ºs 131º e 133º do CP e no art.º 127º do CPP, por violar o princípio da proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido constante no n.º
2 do art.º 32º da CRP”.
3 – O despacho reclamado abonou-se na consideração de que «não há no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça invocação normativa contra o princípio da
“proibição da inversão do ónus da prova”, nem aí se aplicou norma cuja inconstitucionalidade houvesse sido suscitada durante o processo».
4 – Como fundamentos da reclamação, a requerente alega, em síntese, que:
« Sucede que a recorrente sempre defendeu que 'basta para afastar a aplicabilidade do art. 131° do CP, como decorrência do princípio constitucional in dubium pro reo, a existência de indícios de verificação de uma das situações descritas no art. 133° do CP, como acontece no caso em apreço' (cfr. vg, conclusões e recurso para este S.T.J).
Rejeitar o recurso da ora reclamante com base na alegação de não existir no acórdão do S.T.J. invocação normativa contra o princípio da 'proibição da inversão do ónus da prova' não tem cabimento, pois as coisas são o que são e não aquilo que lhes chamamos. Quando o S.T.J., face à alegação da recorrente, defende que o princípio in dubium pro reu não tem aplicação ao nível da verificação dos elementos de um tipo legal de crime mais favorável (133° CP) do que o tipo pelo qual a recorrente foi condenada (131° CP), está, na óptica da recorrente a interpretar as normas constantes nos artºs 131°, 133° do CP e 127º do CPP em manifesta violação do princípio da 'proibição da inversão do ónus da prova'.
Tais questões foram suscitadas abundantemente em todas as motivações de recurso da recorrente.»
5 – O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
«A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que a reclamante não suscitou – nem durante o processo, nem sequer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de suporte àquele recurso – limitando-se a dissentir da matéria de facto tida por provada e da respectiva subsunção às normas penais materiais.»
B – Fundamentação
6 – Estabelecem os arts. 280º, n.º 1, al. b), da CRP e 70º, n.º1, al. b), da LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, constituem pressupostos específicos do recurso interposto ao abrigo destes preceitos que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie tenha constituído a ratio decidendi da decisão ou o fundamento normativo do seu próprio conteúdo, nisso se traduzindo a aplicação em concreto da norma, e que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada em tempo e por modo funcionalmente adequado para que o tribunal recorrido pudesse conhecer dela. A exigência daquele requisito encontra a sua razão de ser na própria natureza da função jurisdicional (aqui constitucional), dado que lhe cumpre apenas conhecer e decidir de controvérsias concretas e não de situações apenas académicas: se a norma cuja validade constitucional se questiona não serviu de fundamento à decisão, nunca a pronúncia sobre a sua eventual inconstitucionalidade poderia ter quaisquer reflexos jurídicos sobre a decisão, permanecendo-lhe estranha. Já relativamente ao ónus de suscitação, a questão tem que vem com o sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade das normas que a nossa Lei Fundamental adoptou, de controlo difuso por via do recurso. Como nota Cardoso da Costa (A jurisdição constitucional em Portugal, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss.), «quanto ao controlo concreto – ao controlo incidental da constitucionalidade (…), no decurso de um processo judicial, de uma norma nele aplicável – não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores (…), segundo o qual todos os tribunais podem e devem, não só verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo, como recusar a aplicação das que considerarem inconstitucionais
(…). Este allgemeinen richterlichen Prüfungs - und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente permanece fiel ao princípio, tradicional e característico do direito constitucional português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…). Quando, porém, se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é ainda necessário que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…). Compreende-se, na verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum (depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero expediente processual dilatório)». Torna-se, pois, necessário que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. A suscitação durante o processo tem sido entendida, de forma reiterada pelo Tribunal, como sendo a efectuada em momento funcionalmente adequado, ou seja, em que o tribunal recorrido pudesse dela conhecer por não estar esgotado o seu poder jurisdicional. É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora da via de recurso. É por isso que se entende que não constituem já momentos processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter pronunciado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., pp.
663; n.º 374/00, publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de
2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de
2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito). Excepção a tal regra são apenas aquelas hipóteses ditas de excepcionais em que o recorrente é confrontado com a utilização insólita e imprevisível, por parte da decisão, da norma, ou seja, naqueles casos em que seria desrazoável e inadequado exigir do interessado um prévio juízo de prognose relativo a tal aplicação em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando antecipadamente assim a questão de inconstitucionalidade (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 489/94, publicado no Diário da República II Série, de 16 de Dezembro de 1994, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º, pp. 415; n.º
310/00, publicado no Diário da República II Série, 17 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp.853 e n.º 120/02, publicado no Diário da República II Série, de 15 de Maio de 2002, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52º, pp. 575).
Mas o ónus de suscitação da constitucionalidade durante o processo tem ainda uma outra vertente. É que a questão de constitucionalidade da norma cuja apreciação se requer ao Tribunal Constitucional por via do recurso tem de ser colocada ao tribunal recorrido em termos de este saber que tem que apreciar e decidir essa concreta questão de constitucionalidade, o que implica, que a questão seja colocada ao tribunal recorrido em termos perceptíveis (cfr., Acórdão n.º 178/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., pp. 1118). A este respeito, escreveu-se no Acórdão n.º 560/94 (publicado no Diário da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995) que «a exigência de um cabal cumprimento do
ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão». Deste modo, a questão de constitucionalidade tem de ser colocada ao tribunal recorrido em termos de este saber que tem essa concreta questão de constitucionalidade para resolver. Donde resulta que o questionante tenha de colocar, em termos perceptíveis, qual a concreta questão de normatividade jurídica cuja validade constitucional controverte. E note-se que os termos em que essa questão é colocada se tornam verdadeiramente essenciais na perspectiva do recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional. É que se é certo que este pode conhecer da questão de inconstitucionalidade normativa, já não tem competência para conhecer da inconstitucionalidade da decisão judicial em si própria. A violação directa das normas e princípios constitucionais pela decisão judicial apenas pode ser conhecida no plano dos recursos previstos na respectiva ordem de tribunais.
7 – Ora, no caso sub judice, verifica-se que nem a recorrente alegou no recurso para o STJ qualquer questão de inconstitucionalidade relativa a determinada acepção normativa dos art.ºs 131º e 133º do CP e 127º do CPP, nem o acórdão recorrido fez expressa ou implícita aplicação de qualquer dimensão normativa desses preceitos com violação do princípio da proibição da inversão do
ónus da prova” e do art.º 32º, n.º 2 da CRP.
Senão vejamos. O único ponto das suas alegações para o STJ com alguma ligação com a matéria é o que decorre do seguinte trecho:
«Caso o Tribunal “ad quem” entenda não existir (ao nível probatório) uma certeza sobre a verificação dos elementos constitutivos do tipo legal de crime constante da norma do art.º 133º do CP, já não poderá deixar de considerar que se verificam os indícios de preenchimento desta incriminação e tais indícios deverão beneficiar da força conferida pelo princípio “in dubio pro reo”. Tal é suficiente para que ao caso em apreço se aplique o art.º 133º e não o art.º 131º do Código Penal, dado que a doutrina portuguesa aceita que o referido princípio quando aplicado a normas favoráveis faz com que as dúvidas sobre a sua verificação conduzam a que as respectivas cláusulas favoráveis produzam o seu efeito como se tivesse logrado produzir sobre elas prova completa».
E nas respectivas conclusões, pertinentemente a esta matéria, concluiu assim:
«2ª- Acontece, todavia, que da prova constante dos autos resulta claro, quer atendendo á personalidade da Recorrente, quer às circunstâncias que rodearam a prática dos factos, ter esta actuado dominada por compreensível emoção violenta e desespero provocados pela vítima, pelo que se mostram preenchidos os requisitos de aplicação ao caso da norma constante no art.º 133º do C. Penal;
3ª- Subsunção que sempre terá de se considerar pois basta, para afastar a aplicabilidade do art.º 131º do CP, como decorrência do princípio constitucional
“in dubio pro reo”, a existência de indícios de verificação de uma das situações descritas no art.º 133º do Código Penal, como acontece no caso em apreço”.
Como é por demais evidente, o que nestes passos do seu discurso alegatório a recorrente defende é a pertinência de uma certa subsunção jurídica dos factos concretos apurados: em vez do caso ser enquadrado no art.º 131º do CP, como fizera a decisão recorrida, deveria sê-lo antes no art.º 133º do mesmo código, em virtude de, segundo o seu ponto de vista, haver indícios de verificação de uma das situações descritas no art.º 133º e dever valer aqui o princípio constitucional do “in dubio pro reo”. O que a recorrente pretende é assim a aplicação de certo quadro jurídico que tem por ajustado, entre o qual se conta a aplicação directa do princípio in dubio pro reo, às particularidades do caso concreto. Não existe aqui qualquer suscitação de inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 131º e 133º do CPP e muito menos do art.º 127º do CPP, que nem sequer é invocado a qualquer título. Tanto basta para se considerar que a recorrente não cumpriu o ónus de adequada e atempada suscitação de inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 131º e 133º do CP.
Mas independentemente da falta de suscitação acontece ainda que o acórdão recorrido não fez qualquer interpretação/aplicação normativa dos art.ºs 131º e
133º do CP e do art.º 127º do CPP violadora do “princípio da proibição da inversão do ónus de prova”. Na verdade, o acórdão recorrido ao considerar que os factos apurados não preenchiam os elementos do tipo legal de crime do art.º
133º, mas que integravam antes os elementos do tipo definido pelo art.º 131º, ambos os preceitos do CP, não partiu de qualquer pressuposto da existência de indícios fácticos de verificação de qualquer das situações descritas no art.º
133º, ou sequer da existência de dúvida quanto à existência dos respectivos factos. O acórdão recorrido limitou-se a verificar quais eram os elementos jurídicos do tipo penal definido no art.º 133º do CP e a constatar que os factos concretamente apurados não preenchiam esse quadro normativo e que, ao invés, esses mesmos factos integravam o elenco dos elementos do tipo legal enunciado pelo art.º 131º. A discordância do recorrente, em rectas constas, diz apenas respeito ao modo como o tribunal subsumiu o quadro de facto ao direito ordinário, pretextando que determinadas circunstâncias factuais apuradas devem ser valoradas como integrantes das situações descritas no tipo legal do art.º
133º do CP (homicídio privilegiado) e que, mesmo a existir dúvida sobre a sua concreta existência, esta deverá ser resolvida no sentido de considerar preenchidos os respectivos elementos de tal tipo penal. Nesta perspectiva, o que o recorrente acaba por sindicar é a correcção jurídica da decisão judicial em si própria. Ao Tribunal Constitucional não cabe, porém, controlar o modo como os tribunais interpretam e aplicam o direito ordinário, ou até os termos em que eles apliquem directamente as disposições ou princípios constitucionais, mas apenas se aquela interpretação/aplicação ofende normas ou princípios constitucionais. Deste modo há que concluir que a decisão recorrida não fez aplicação como ratio decidendi das normas dos art.ºs 131º e 133º do CP e 127º do CPP em qualquer acepção que haja sido arguida de inconstitucional.
C – A decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação. Custas pela reclamante com taxa de justiça que se fixa em 15 UC.
Lisboa, 26 de Maio de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos