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Processo n.º 179/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e mulher B., recorrentes nos presentes autos, reclamam para a conferência, ao abrigo do disposto no art.º 78º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do relator que decidiu não tomar conhecimento do recurso.
2 – Os recorrentes fundamentam a sua reclamação na alegação do seguinte teor:
«1- O Excelentíssimo Senhor Juiz Relator decidiu não tomar conhecimento do recurso pelas razões constantes da página 19 à página 27 que a seguir se sintetizam:
2- PRIMEIRO ARGUMENTO: O acórdão da Relação decidiu não conhecer da questão da nulidade da segunda acusação particular porque o Sr. Juiz de instrução, por despacho que transitou em julgado considerou sanado o vício de que padecia a primeira acusação particular com a apresentação da segunda, trinta dias depois.
3- SEGUNDO ARGUMENTO: Esta questão foi objecto de recurso interlocutório interposto pelos ora reclamantes, que não cumpriram o disposto no Art. 412°, nº
5 do C.P.P., pelo que se conclui que eles deixaram de manter interesse no mesmo.
4- TERCEIRO ARGUMENTO: Se se viesse a concluir pela inconstitucionalidade da norma do Art. 285º do C.P.P., nunca esse juízo poderia acarretar a alteração do julgado no acórdão recorrido porque a sua “ratio decidendi” reside nas normas por aplicação das quais o dito acórdão tirou tal conclusão.
5- QUARTO ARGUMENTO: Desaparece assim o pressuposto do recurso de constitucionalidade: a possibilidade do julgamento de constitucionalidade se poder repercutir na alteração do julgado.
6- QUINTO ARGUMENTO: Nos termos do disposto nos nºs 2 a 4 do Art. 70º da L.T.C. constitui pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que a decisão de que se recorre tenha constituído a última palavra sobre o litígio na ordem judicial em causa. Assim, o recurso de constitucionalidade foi interposto em momento inadequado: ele só podia ser interposto após a prolação do acórdão que indeferiu a arguição de nulidades.
7- Quanto ao PRIMEIRO ARGUMENTO, apenas se dirá que os prazos, em processo penal, são peremptórios.
8- A junção aos autos da segunda acusação particular foi - ilegalmente - admitida cerca de TRINTA dias após o esgotamento do prazo de 10 dias previsto no nº 1 do Art. 285° do C.P.P..
9- Essa acusação particular, com a qual o assistente pretendia renovar a primeira, que era nula, não pode existir no processo penal.
10- Por conseguinte, ela não pode produzir qualquer efeito.
11- Destarte, são inexistentes todos os actos que dependem dessa SEGUNDA acusação particular.
12- O despacho do Sr. Juiz de instrução depende da SEGUNDA acusação particular - que é inexistente.
13- Assim sendo, como é, também esse despacho é inexistente.
14- Em consequência, o despacho do Sr. Juiz de instrução não pode transitar em julgado.
15- Porque não pode existir neste processo penal.
16- Relativamente ao SEGUNDO ARGUMENTO, é de mencionar que esse recurso não tinha sido subscrito por advogado, como é de lei.
17- Inicialmente, ele tinha sido subscrito pelos arguidos aqui recorrentes.
18- Todavia, o defensor dos arguidos veio posteriormente ratificar esse recurso interlocutório.
19- Ora, o recurso só podia ser ratificado pelo defensor dentro do prazo de interposição de recurso;
20- Como a ratificação, pelo defensor, foi intempestiva, esse recurso não podia ser admitido.
21- E mesmo que o Tribunal o tivesse admitido em primeira instância, ele sempre estaria condenado a ser rejeitado na Relação em consequência da ratificação intempestiva.
22- Verificou-se, neste caso, um erro do defensor, que não podia ratificar esse recurso, uma vez que estava esgotado o prazo para tal.
23- De resto, em consequência desse erro, os arguidos revogaram a procuração forense ao defensor.
24- Como se vê, esse recurso intempestivo sempre teria que ser desentranhado e devolvido aos arguidos.
25- Cientes de tudo isso, bem andaram os arguidos quando, nas conclusões do recurso para a Relação, não mantiveram interesse nesse recurso interlocutório.
26- Por que razão haviam os arguidos de manter interesse num recurso que não podia sequer ser admitido?
27- No que concerne ao TERCEIRO ARGUMENTO, importa referir que a interpretação do Art. 285°, nº 1 do C.P.P., feita pelo Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Braga foi a seguinte :
“O assistente, notificado de que a acusação particular, por ele deduzida, é nula, pode renová-la, mesmo após o esgotamento do prazo de10 dias estabelecido no nº 1 do Art. 285° do C.P.P.”.
28- Como esta interpretação é inconstitucional, não tem qualquer relevância o julgado no acórdão da Relação.
29- O próprio acórdão da Relação nem pode existir neste processo penal.
30- Com efeito, também esse acórdão depende da ilegal admissão da junção aos autos da SEGUNDA acusação particular.
31- Por conseguinte, tal como sucede com todos os actos praticados neste processo, o acórdão da Relação de Guimarães é inexistente.
32- E aquilo que não existe nos autos não carece de ser alterado.
33- No modesto entendimento dos reclamantes, apenas a fase de inquérito tem existência jurídica.
34- Todo o processado na fase jurisdicional é inexistente.
35- Pelo que nada deve ser alterado.
36- Tudo deve ser - apenas - declarado inexistente.
37- Nestes autos falta apenas proferir essa declaração de inexistência: o resto constitui perda de tempo e conjecturas supérfluas.
38- Quanto ao QUARTO ARGUMENTO, convém referir que o pressuposto do recurso de constitucionalidade não desaparece pelo facto de o julgamento de constitucionalidade não se poder repercutir na alteração do decidido no acórdão da Relação.
39- A decisão de inconstitucionalidade reporta-se não ao julgado no acórdão da Relação, mas sim ao decidido pelo Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Braga.
40- Portanto, mantém todo o interesse a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a ilegalidade da admissão da SEGUNDA acusação particular.
41- E, de forma indirecta, a declaração de que essa admissão é inconstitucional vai repercutir-se no acórdão da Relação, que assim deixa de poder produzir qualquer efeito.
42- Importa, assim, que o Tribunal Constitucional declare que este processo, na sua fase jurisdicional, é inexistente.
43- Só assim os arguidos reclamantes deixarão de ver a sua paz jurídica perturbada por uma condenação que não existe.
44- Mas que continuará a produzir consequências nefastas e estigmatizantes enquanto o Tribunal não declarar inexistente todo o processo.
45- Essa é a utilidade que os arguidos reclamantes esperam da pronúncia do Tribunal Constitucional.
46- Quanto ao QUINTO ARGUMENTO, o humilde entendimento dos arguidos reclamantes
é de que não se pode recorrer do acórdão da Relação.
47- A arguição de nulidades, apresentada pelos arguidos, não é um recurso ordinário, nem a ele pode ser equiparado, como o seriam, por exemplo, as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores ou as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência a que alude o nº 3 do Art. 70° da L.T.C..
48- Destarte, e com o devido respeito, os arguidos apenas podiam interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
49- Não é exigível aos arguidos que, uma vez confirmada a ilegal condenação pelo Tribunal da Relação de Guimarães, eles nada façam, e aceitem essa injusta e ilegal condenação, só porque dela não se poderia recorrer.
50- Pelo contrário, é salutar em democracia que os cidadãos exerçam os seus direitos.
51- E dúvidas não pode haver de que os arguidos reclamantes têm o direito de fazer desaparecer da ordem jurídica uma condenação ilegal que tem a sua raiz num processo inexistente.
52- A Relação de Guimarães não lobrigou que o processo não tem existência jurídica e proferiu acórdão condenatório.
53- Logo, os arguidos concluíram que o Tribunal Constitucional é também competente para declarar a inexistência jurídica do processo e da injusta condenação.
54- A inexistência do processo não pode ser sanada e é de conhecimento oficioso.
55- No caso presente, não está em causa uma mera nulidade.
56- O vício de que padece a decisão do Ministério Público é mais grave uma vez que a SEGUNDA acusação particular não podia ser junta aos autos.
57- O vício é, concretamente, a INADMISSIBILIDADE, o que provoca a inexistência dos actos processuais subsequentes.
58- Assim, no modesto entendimento dos arguidos, esse vício pode e deve ser declarado, agora em recurso, pelo Tribunal Constitucional.
59- A inadmissibilidade da SEGUNDA acusação particular nunca poderá considerar-se sanada por força das disposições conjugadas dos Arts. 107°, nº 2;
122°, nº 2 e 285°, nº 1, todos do C.P.P..
60- As decisões que consideraram tratar-se, 'in casu', de uma 'nulidade' não formaram um juízo rigoroso.
61- Nula é apenas a primeira acusação particular deduzida em tempo pelo assistente.
62- Já a SEGUNDA acusação particular é extemporânea.
63- E por conseguinte, ela é inadmissível, e não pode ter por efeito a renovação da primeira acusação particular.
64- Daí que, por força das disposições conjugadas do Art. 286º do Código Civil, do Art. 134°, nº 2 do Código do Procedimento Administrativo, dos Arts. 201°;
202° e 203° do Código de Processo Civil e do Art. 410º, nº 3 conjugado com os nºs 1 e 2 do Art. 107°, ambos do C.P.P., tenha que ser declarada a inexistência do próprio processo.
65- A inadmissibilidade da SEGUNDA acusação particular pode ser declarada por qualquer Tribunal e o seu conhecimento é oficioso.
66- Em favor deste entendimento milita o sistema jurídico português considerado no seu conjunto e, sobretudo, os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais.
67- Designadamente o disposto no Art. 18° da C.R.P..
68- E também o disposto no Art. 16º da C.R.P., que considera integrados na ordem jurídica portuguesa a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
69- Acresce que, por força do disposto no Art. 6° do Tratado da União Europeia, que prevalece sobre a lei portuguesa, os direitos fundamentais dos reclamantes não podem ser postos em causa por um processo inexistente.
70- Os princípios gerais do direito comunitário não permitem que o aparelho judicial de um Estado-Membro mantenha uma condenação quando todo o processo é inexistente.
71- Como ficou dito, aquilo que está em causa neste recurso de constitucionalidade é a existência jurídica do próprio processo.
72- E lembra-se aqui o sucedido no ano de 2001: terminado o inquérito, o assistente foi notificado para deduzir acusação particular.
73- Esta acusação particular deu entrada no Tribunal em 06/02/2001.
74- O Senhor Procurador examinou esta acusação particular e constatou que o assistente tinha renunciado a alegar o elemento subjectivo.
75- Em 05/03/2001, o Senhor Procurador notificou o assistente de que não acompanhava a acusação particular porque ela era nula.
76- Informado pelo Senhor Procurador do vício que tornava nula a acusação particular, o assistente tentou renová-la.
77- No dia 14/03/2001, o assistente requereu a junção aos autos de uma SEGUNDA acusação particular que, em relação à primeira, continha mais um artigo, no qual ele alegou o dolo.
78- O Senhor Procurador poderá admitir a junção aos autos dessa SEGUNDA acusação particular?
79- Não pode.
80- O Tribunal Constitucional já declarou, no douto Ac. nº 27/2001, proc. nº
189/00, no qual estava em causa um requerimento para abertura de instrução, que a renovação do acto nulo deve ser feita dentro do prazo peremptório previsto para esse efeito. (sublinhado nosso)
81- Por argumento de identidade de razão, o mesmo sucede com a renovação da acusação particular nula.
82- O que verdadeiramente está em causa, neste recurso de constitucionalidade, não é o julgado numa sentença ou num acórdão, mas sim a existência do próprio processo.».
3 – O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
à reclamação nos seguintes termos:
«1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - N a verdade - e quanto à primeira questão suscitada - é evidente, face ao teor e fundamentos do acórdão recorrido - que a ratio decidendi assentou preclusão da questão da convalidação da primeira acusação deduzida, em consequência de apreciação jurisdicional transitada em julgado, bem como da omissão de cumprimento pelo recorrente do disposto no artigo 412°, n° 5, do Código de Processo Penal, prejudicando o conhecimento do recurso interlocutório interposto.
3 - Sendo manifesto que - sobre tais vicissitudes processuais - não cabe naturalmente tomar aqui posição, já que o objecto do recurso de constitucionalidade interposto as não inclui.
4 - O mesmo ocorre quanto à segunda questão de constitucionalidade, reportada à norma do n° 4 do artigo 412° do Código de Processo Penal - sendo inútil a respectiva apreciação num caso em que a Relação acabou por se pronunciar sobre a concludência e suficiência da fundamentação da matéria de facto, constante da decisão recorrida.
5 - Não se pode, por outro lado, afirmar que a Relação tenha aplicado a dimensão normativa especificada pelo recorrente, segundo a qual as referências aos suportes técnicos da gravação constavam, em termos bastantes, da transcrição, apenas sendo omissas na motivação e conclusões.
6 - Na verdade, o que se afirma no acórdão recorrido é que o recorrente não delimitou, de modo adequado e inteligível, o elenco de questões de facto que pretendia ver apreciadas, 'não tendo por isso qualquer sentido que seja agora o tribunal a apreciar toda a prova que seja produzida em audiência'.
7 - E sendo ainda evidente que a questão que eventualmente faria sentido colocar, numa situação como a dos autos, seria diversa - surgindo reportada à não prolação de um convite ao aperfeiçoamento das deficiências da motivação apresentada - questão diferente da elencada pelo recorrente no seu requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional».
4 – Por seu lado o recorrido C. respondeu dizendo o seguinte:
«A reclamação a que se responde é meramente uma tentativa de não deixar transitar em julgado uma decisão que já foi objecto de 5 decisões de Tribunais Superiores, Entre os quais este próprio Tribunal que, sobre este assunto, já tomou três decisões sempre coincidentes.
Assim, não restam quaisquer dúvidas, que a única intenção dos recorrentes é entorpecer a acção da justiça, evitando o trânsito em julgado da decisão que lhes é desfavorável.
Os reclamantes continuam a deduzir pretensões cuja falta de fundamento não ignoram, implicando um uso manifestamente reprovável dos meios processuais, o que configura litigância de má-fé, pois reclamam para a conferência, mas acabam por requerer a inconstitucionalidade de uma norma, facto que já foi apreciado por um Acórdão anterior.
Constitui litigância de má-fé o uso reprovável de um meio processual com o propósito evidente de protelar a execução da sentença condenatória.
Decorre com clareza que os reclamantes tem vindo a fazer do meio processual da arguição de nulidades, reclamações para a conferência, e todos os expedientes inimagináveis, um uso manifestamente reprovável, com intuitos claramente dilatórios, pelo que se lhes deve ser aplicado de pleno o disposto no artigo
456° do Código de Processo Civil quanto a litigância de má-fé.
As constantes manobras dos reclamantes obrigam a responder a requerimentos perfeitamente supérfluos, gratuitos e meramente dilatórios, mas que utilizam uma linguagem jurídica rebuscada, apesar de depois de estudo revelarem não ter um mínimo de fundamento, o que irá agravar os custos do respondente com os honorários do seu mandatário.
Esse prejuízos correspondem, sem qualquer margem para dúvida aos custos com os honorários do mandatário que, por modéstia, atendendo aos usos da comarca e à complexidade dos requerimentos e reclamações dos reclamantes se fixam em 2.500
€, nos termos do disposto no artº 457° do Código de Processo Civil
Termos em que mantendo a decisão recorrida e condenando os reclamantes na indemnização de 2.500 €, a título de honorários do signatário».
5 – Tendo o recorrido suscitado a questão de litigância de má fé dos reclamantes, o relator ordenou a sua notificação para lhe responder.
E fazendo-o os recorrentes vieram afirmar, em resumo, que quem litiga de má fé é o assistente e que o processo não tem existência jurídica em virtude da acusação pela qual vieram a ser condenados ter sido deduzida por este após a preclusão do prazo de 10 dias previsto no art.º 285º, n.º 1, do CPP.
B – Fundamentação
6 – Os recorrentes pretendem a apreciação de duas questões de inconstitucionalidade – uma relativa à norma do art.º 285º do CPP quando interpretado “no sentido de considerar sanável a violação do prazo de 10 dias conferido ao assistente para deduzir acusação”, por violação dos princípios constitucionais do Estado de direito democrático e do direito de defesa dos arguidos; outra relativa ao art.º 412º, n.º 4, do CPP, quando interpretado “no sentido de que a referência aos suportes técnicos não pode ser feita mediatamente, na transcrição, para a qual se remete na motivação do recurso, que contém todas as intervenções orais numeradas”, por violação dos princípios do direito de defesa dos arguidos e do direito ao recurso estatuídos no n.º 1 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.
Ora sobre aquela primeira questão de inconstitucionalidade (relativa ao art.º 285º do CPP) disse-se na decisão ora impugnada o seguinte:
«[...] A inconstitucionalidade da norma do art.º 285º do CPP foi suscitada pelos recorrentes no seguinte quadro processual: o assistente deduziu acusação particular pelo crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, n.º 1, do Código Penal, mas sem que tivesse descrito os factos susceptíveis de integrar o elemento subjectivo do dolo. Por essa razão, o Ministério Público declarou no processo que não acompanhava a acusação particular em virtude da mesma ser nula. Tendo sido apresentada pelo assistente, um mês depois, uma segunda acusação particular, já integrada desse elemento subjectivo da culpa (dolo) da infracção imputada aos arguidos, o mesmo Ministério Público informou os arguidos de que acompanhava essa acusação. Resulta do excerto do acórdão da Relação acima transcrito que os recorrentes suscitaram perante esse tribunal a questão da nulidade da segunda acusação, bem como a violação por parte do Ministério Público do princípio da legalidade. Todavia, o acórdão decidiu não conhecer dela a vários títulos: por um lado, porque essa questão fora objecto de recurso interlocutório interposto pelos arguidos (fls. 494 a 498) e a sua apreciação ficara prejudicada, justamente por os recorrentes não terem dado cumprimento ao disposto no art.º 412º, n.º 5, do CPP (não terem especificado nas conclusões, relativamente aos recursos retidos, em cuja categoria se incluía esse, quais os que mantinham interesse); por outro, porque “essa questão foi atempadamente apreciada e decidida através do despacho de fls. 301 (proferido pelo juiz de instrução e no qual se entendeu que “com a apresentação da segunda acusação ficou sanado o vício de que padecia a 1ª acusação e por essa razão considerou válida e eficaz a segunda acusação, à luz do art.º 122º do CPP, tendo o processo seguido os seus regulares termos), sendo certo que tal despacho transitou em julgado”, tendo “isso mesmo sido (já foi) reafirmado pela Senhora Juiz, aquando do despacho de pronúncia, conforme se vê de fls. 481 e 482”. Deste modo conclui o acórdão aqui sindicado que “não faz sentido, nem tem fundamento legal, que os recorrentes venham de novo insistir na invocada nulidade da segunda acusação”.
[...] No seu recurso para o Tribunal Constitucional, os arguidos não põem em causa, no plano de constitucionalidade, as normas por aplicação das quais o acórdão recorrido tirou tal conclusão. Sendo assim, mesmo que, no recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, se viesse eventualmente a concluir pela inconstitucionalidade da referida norma do art.º 285º do CPP, nunca esse juízo poderia acarretar a alteração do julgado efectuado no acórdão recorrido, por a sua ratio decidendi residir nessas outras normas.».
A alegação dos reclamantes gizada em termos de resposta aos quatro argumentos em que dizem apoiar-se a decisão ora reclamada em nada abala a bondade dos fundamentos em que esta se baseia. Os reclamantes continuam a argumentar em torno das questões cujo conhecimento a Relação considerou prejudicado pela ocorrência de factos ou efeitos processuais posteriores, a saber o trânsito em julgado do despacho que considerou sanada a nulidade da segunda acusação deduzida pelo assistente e o não cumprimento do disposto no n.º
5 do art.º 412º do CPP, sem afrontar a constitucionalidade das normas por aplicação das quais o acórdão da Relação se considerou dispensado de conhecer dessas questões. Por outras palavras pode dizer-se que os reclamantes não atacam a constitucionalidade das normas que constituíram a ratio decidendi da solução do não conhecimento, dirigindo o seu ataque, no recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, contra normas que não foram o fundamento normativo de tal decisão de não conhecimento, mas que dizem respeito à questão de que o tribunal a quo se considerou dispensado de conhecer. É, pois, manifestamente improcedente a argumentação dos reclamantes.
Vejamos agora o mérito da reclamação quanto à segunda questão de inconstitucionalidade.
Ora sobre esse objecto do recurso discreteou a decisão reclamada pelo seguinte modo:
«[...] E o mesmo se diga quanto à norma do art.º 412º, n.º 4 do CPP. No recurso para o Tribunal da Relação os recorrentes imputaram à decisão recorrida (1ª instância) a nulidade do art.º 374º, n.º 2 do CPP, apodando-a de não ter procedido ao exame crítico das provas (por documentos e por testemunhas) e à explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal, pelo que as afirmações de factos feitas na sentença apenas podiam valer como simples afirmações do juiz, não correspondendo ao afirmado pelos arguidos e a uma correcta apreciação dos depoimentos das testemunhas. O acórdão recorrido começou, porém, por indagar, na sequência de alegação do Ministério Público, se a impugnação, por banda dos recorrentes, do julgamento da matéria de facto havia sido efectuada de acordo com o disposto no art.º 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP. E debruçando-se sobre este n.º
4, o acórdão recorrido entendeu que “incumbe (pois) aos recorrentes sempre que impugnem a matéria de facto, o ónus de concretizar os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sempre que as provas tenham sido gravadas a concretização destas terá de ser feita por referência aos suportes técnicos, havendo então lugar à transcrição” e que “daí que devessem os recorrentes terem apontado em concreto as razões ou depoimentos com base nos quais pretendiam impugnar a matéria de facto dada como provada pelo tribunal, devendo transcrever as passagens da gravação em que baseiam a sua discordância quanto ao que ficou decidido, não tendo por isso qualquer sentido que seja agora o tribunal a apreciar toda a prova que foi produzida em audiência”. E na sequência desta linha de argumentação, o acórdão conclui que “(...) o recurso deve ser rejeitado por manifestamente improcedente (art.º 420º, n.º 1 CPP)”.
Todavia, o acórdão se ficou por aqui. Não obstante estar afastado, segundo o entendimento seguido do art.º 412º, n.º 4 do CPP, o dever de julgamento da matéria de facto, o tribunal recorrido passou a conhecer dele, nos termos constantes do excerto acima transcrito, apreciando as provas em que se fundou o julgamento efectuado pela decisão recorrida, o processo lógico e racional que esteve subjacente à convicção do tribunal formada relativamente aos factos que fixou e a correcção dos critérios usados nesse julgamento, concluindo pela inexistência da alegada nulidade.
Sendo assim verifica-se que a decisão do tribunal de inexistência da alegada violação do disposto no art.º 374º, n.º 2 do CPP se baseou em um fundamento autónomo.
Ora, os recorrentes não controverteram, no plano da constitucionalidade, esse outro fundamento de decisão da matéria de facto. Deste modo, uma eventual procedência do recurso de constitucionalidade relativamente àquela norma não determinaria uma alteração do julgamento da matéria de facto, como constitui pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.».
Ora a alegação dos reclamantes também não consegue infirmar a correcção jurídica desta fundamentação da decisão reclamada.
Mas a mais do aí invocado pode referir-se ainda, como bem nota o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional, que “não se pode afirmar que a Relação tenha aplicado a dimensão normativa especificada pelo(s) recorrente(s), segundo a qual as referências aos suportes técnicos da gravação constavam, em termos bastantes, da transcrição, apenas sendo omissas na motivação e conclusões”. Na verdade, o que se afirma no acórdão recorrido é que os recorrentes não delimitaram, de modo adequado e inteligível, o elenco de questões de facto que pretendiam ver apreciadas, “não tendo por isso qualquer sentido que seja agora o tribunal a apreciar toda a prova que seja produzida em audiência”. Ora, perante uma dimensão normativa do art.º 412º, n.º 4, do CPP, definida e aplicada nestes termos, a questão de inconstitucionalidade que teria sentido colocar-se era não a que foi elencada pelos recorrentes no seu requerimento de interposição de recurso de (in)constitucionalidade mas sim uma outra diversa que se reportasse à não prolação de um convite ao aperfeiçoamento das deficiências da motivação apresentada.
Relativamente à contestação deduzida pelos reclamantes contra o que dizem constituir o “quinto argumento” da decisão reclamada, apenas há que notar que essa fundamentação se mostra afirmada de modo completamente autónomo da restante antes aduzida, em termos de a solução de não conhecimento do recurso resultar justificada independentemente do aí argumentado.
Na verdade, diz-se aí:
«[...] Mas independentemente destas razões existe ainda uma terceira no sentido do não conhecimento do recurso de constitucionalidade, relativamente às duas normas questionadas. Como se deixou relatado, os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação, sem que essa decisão - nesse mesmo grau de jurisdição, e sem que importe tomar posição sobre se tal grau de jurisdição seria o último admitido para o conhecimento do recurso ou se ainda seria possível o recurso para o STJ (como os recorrentes sustentaram, dado terem reclamado do despacho de não admissão do relator, na Relação, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça) - se apresentasse como sendo a decisão definitiva da Relação. Na verdade, os recorrentes, ao mesmo tempo que interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, arguiram a nulidade do acórdão, pondo em causa nessa arguição a decisão aqui recorrida relativamente às duas normas cuja inconstitucionalidade pretendem ver aqui apreciada. Quer dizer a decisão aqui recorrida não tem a natureza de decisão definitiva do tribunal donde se recorreu. Não estavam os recorrentes obrigados a arguir a nulidade da decisão recorrida para poderem interpor o recurso de constitucionalidade, pois sem essa arguição a decisão se tinha por definitiva, mas, uma vez que a arguiram, a decisão passou a ter a natureza de não definitiva, sendo a pronúncia definitiva efectuada apenas pela decisão que apreciou as nulidades. Numa tal situação, a decisão arguida de nula apenas poderá ser recorrida constitucionalmente conjunta ou integradamente com a que decida a questão das nulidades. Constitui, pois, pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que a decisão de que se recorre tenha constituído a última palavra sobre o litígio na ordem judicial em causa. Trata-se de um pressuposto que encontra fundamento na natureza da própria função jurisdicional, aqui de ordem constitucional. Anote-se a este propósito que o disposto nos n.ºs 2 a 4 do art.º 70º da LTC não constitui mais do que uma emanação positivada de tal princípio (cfr., a respeito de casos semelhantes, traduzidos em recurso para tribunal superior, mas em que a interposição desse recurso - como no caso acontece - também não faz perder o direito de recorrer constitucionalmente da decisão recorrida para aquele tribunal, os Acórdãos n.º 411/00, n.º 253/00 e n.º 222/04, todos disponíveis em www.tribunal constitucional.pt/jurisprudência).
É certo que, conforme se relata no ponto 6, os recorrentes vieram, depois de julgada a arguição de nulidades, requerer que fosse tomada posição sobre o requerimento de interposição de recurso, tendo até indicado então a dimensão normativa que pretendiam questionar constitucionalmente. Mas com tal requerimento o que os recorrentes fizeram foi manter o anteriormente apresentado em momento inadequado, como se demonstrou, e não interpor recurso do acórdão antes recorrido, mas agora integrado com o acórdão que indeferiu o pedido da sua nulidade (não importando aqui saber se uma tal possível interposição seria ainda tempestiva em função do momento da decisão definitiva que veio a ser proferida na reclamação apresentada nos termos do n.º 1 do art.º 405º do CPP sobre o despacho do relator do Tribunal da Relação que não admitiu o recurso para o STJ do acórdão que decidiu as nulidades), apenas o aperfeiçoando em aspectos que cabem na previsão do n.º 5 do art.º 75º-A, da LTC.».
Sendo assim, sempre o resultado do não conhecimento do recurso se imporá, mesmo para quem entenda não ser de seguir um tal critério de decisão, pelo que a reclamação é de inferir.
7 – Suscita o assistente a questão da má fé processual dos recorrentes quanto ao exercício do direito de reclamação para a conferência, previsto no n.º 3 do art.º 78º-A, da LTC, afirmando, em síntese, que “a única intenção dos recorrentes é entorpecer a acção da justiça, evitando o trânsito em julgado da decisão que lhes é desfavorável” porque “continuam a deduzir pretensões cuja falta de fundamento não ignoram, implicando um uso manifestamente reprovável dos meios processuais”. Os recorrentes responderam que quem estava de má fé seria o assistente porque “este processo [...] nunca transitará em julgado porque ele não tem existência jurídica”. Está assim colocada a questão de saber se o concreto uso do meio processual aqui em causa – a reclamação para a conferência – é susceptível de integrar a hipótese normativa delineada na alínea d) do n.º 2 do art.º 456º do Código de Processo Civil, aplicável ao processo constitucional por mor do disposto no art.º 69º da LTC. E afoitamente se afirma que não. Na verdade, não se questionando, nem havendo razões para questionar, que os recorrentes tenham feito um uso reprovável do meio processual de interposição do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade; sendo a decisão de não conhecimento desse recurso subscrita apenas por um juiz (o relator); sendo a fundamentação dessa decisão bastante extensa e implicando a determinação e aplicação de variados critérios jurídicos de decisão relativos aos pressupostos do recurso de constitucionalidade, não é de inferir que os recorrentes tenham feito um uso reprovável do meio processual da reclamação para a conferência, visando sujeitar à apreciação de um colégio alargado a solução decretada pelo relator.
Por isso é de indeferir o pedido do assistente.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) indeferir a reclamação deduzida pelos recorrentes da decisão sumária proferida pelo relator; b) julgar improcedente o pedido de condenação dos recorrentes como litigantes de má fé, efectuado pelo assistente; c) condenar os reclamantes em custas, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 15 de Julho de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos