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Processo n.º 437/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. e mulher, B., apresentaram, em 12 de Março de 2004, reclamação do despacho de 3 de Março de 2004 do Desembargador-relator que não admitiu o recurso de constitucionalidade que pretenderam interpor, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, “por violação dos arts. 168.º, n.º 1, al. h), e art. 2.º ambos da Constituição da República Portuguesa, da norma do art. 107.º, n.º 1, al. b), do Regime do Arrendamento Urbano na redacção dada pelo D.L. n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, tal como foi interpretado e aplicado pelo Acórdão recorrido no sentido de que sendo ela de aplicação imediata ao presente caso não se verifica a circunstância, impeditiva do direito de denúncia, qualificada como excepção peremptória atípica porque actua eficazmente a partir do momento em que o direito de denúncia deva produzir efeitos.” O acórdão de que recorriam era o proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 3 de Fevereiro de 2004 que julgou procedente a apelação dos demandantes (senhorios) e revogou a sentença de 25 de Março de 2003, do Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, que absolvera os referidos demandados e ora reclamantes (arrendatários) do pedido de denúncia do contrato de arrendamento e de despejo do locado, por já terem decorrido mais de 20 anos sobre o início do contrato de arrendamento (1 de Setembro de 1978) e, consequentemente, a essa denúncia obstar o disposto no artigo 107.º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção do Decreto-Lei n.º
329-B/2000, de 22 de Dezembro. Fundou-se tal decisão de não admissão do recurso na falta de suscitação de qualquer inconstitucionalidade durante o processo, escrevendo-se, designadamente, que os ora reclamantes “só teriam legitimidade para recorrer se tivessem suscitado a questão da constitucionalidade de modo processualmente adequado perante este Tribunal, em termos de estar obrigado a dele conhecer
(cfr. art. 72.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15/11, na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26/2).” No requerimento de reclamação que dirigiram a este Tribunal dizem os reclamantes:
“Os ora reclamantes não contestam esse fundamento invocado no despacho reclamado, mas lembram que expressamente invocaram no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade que a arguição da questão da inconstitucionalidade só aí foi feita porque foram surpreendidos com a interpretação e aplicação feitas no acórdão recorrido das normas questionadas, ponto a que não foi dada nenhuma resposta no despacho reclamado.” Justificam este entendimento com o facto de o referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto ter qualificado a excepção impeditiva do direito de denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio, prevista no artigo 107.º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro), como excepção peremptória atípica ou inominada, no que, combinado com o diferente enquadramento feito na decisão da 1ª instância (que entendera a mesma norma legal como fixando um prazo de caducidade do direito de resolução do contrato de arrendamento), configuraria uma decisão-surpresa. Notificado o Ministério Público, pronunciou-se nos seguintes termos:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que a ‘ratio decidendi’ em que assentou o acórdão proferido pela Relação não foi qualquer interpretação normativa do art. 107.º do RAU, mas a estrita aplicação das regras atinentes ao
ónus de alegação e prova pelos litigantes, conjugadamente com a qualificação jurídica que se deu ao prazo que obstaculiza o exercício do direito de denúncia
– e sendo óbvio que tal qualificação não pode sequer perspectivar-se como decorrente de uma ‘decisão-surpresa’ por parte da Relação, face às dúvidas doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria e ao conteúdo da própria alegação dos recorrentes.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
2.Consultando as alegações para o Tribunal da Relação do Porto, verifica-se que os então recorrentes (demandantes) afirmaram que os ora reclamantes (então recorridos) não invocaram “a excepção de caducidade do direito que (...) se arrogaram” e que tal excepção não era “do conhecimento oficioso do Tribunal”. E acrescentaram:
“Se os recorridos tivessem alegado e invocado a excepção de caducidade do direito que os recorrentes se arrogam nos articulados, é óbvio que a decisão de mérito só podia ser a que foi proferida nos autos, porque teria de ser conhecida pelo Tribunal a referida excepção e então teria razão de ser a pronúncia sobre a declaração de inconstitucionalidade da norma, com força obrigatória geral [pelo Acórdão n.º 97/00, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., págs. 33-40], a qual originaria a repristinação da norma revogada, o que levaria
à improcedência da acção.” O Tribunal da Relação do Porto, depois de estabelecer que em matéria de
“pressupostos legais de efectivação da denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio é (...) aplicável a lei vigente ao tempo em que é operada a declaração de denúncia do contrato”, que no momento em que a acção de denúncia do contrato de arrendamento foi instaurada “já se encontrava em vigor a redacção dada ao n.º
1 do art. 107.º pelo DL n.º 329-B/2000, pelo que é aplicável”, e que, nessa altura, tinha “decorrido o período de 20 anos previsto na (...) Lei n.º 55/79”
(aplicável por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da redacção do mesmo normativo constante do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), reconheceu a pertinência da argumentação dos autores/senhorios, dizendo que:
“Apesar de esse período já ter decorrido aquando da sua citação, os réus nada alegaram nesse sentido na contestação que apresentaram, nem posteriormente.” E, depois de inventariar a abundante doutrina e jurisprudência que, à altura, já se pronunciara sobre a natureza desse prazo (parte no sentido de se tratar de um prazo de caducidade, ou que produzia efeitos semelhantes, outra parte no sentido de se tratar de uma excepção peremptória atípica ou inominada), concluiu o Tribunal da Relação que, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, a prova dos factos impeditivos do direito invocado pelo senhorio competia ao arrendatário e que, no caso, “os réus não satisfizeram esses ónus de alegação e de prova”, tendo sido por esta razão que concedeu provimento ao recurso. Facilmente se verifica, pois, que, como refere o Exm.º Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, a ratio decidendi do acórdão recorrido não coincide com a norma que os ora reclamantes identificaram no requerimento de interposição de recurso (“não se verifica a circunstância, impeditiva do direito de denúncia, qualificada como excepção peremptória atípica porque só actua eficazmente a partir do momento em que o direito de denúncia deva produzir efeitos”), residindo, antes, em regras relativas ao ónus de alegação e prova pelos demandados, conjugadamente com a qualificação jurídica do prazo. O que logo impediria que se tomasse conhecimento do recurso. E é igualmente evidente que, não tendo a questão de constitucionalidade, que os recorrentes pretenderam trazer a este Tribunal, sido suscitada durante o processo – isto é, perante o tribunal recorrido enquanto ele ainda tivesse poder jurisdicional para a apreciar – dela não pode conhecer o Tribunal Constitucional, por se não estar perante um daqueles casos em que tal ónus possa ser dispensado – cfr., vg., os Acórdãos n.ºs 62/85 e 479/89, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs.
143-154, e 28º vol. págs. 415-418; e veja-se ainda, por exemplo, o Acórdão n.º
333/92 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde, também a propósito da pretendida dispensa da suscitação de uma questão de constitucionalidade fundada em imprevisibilidade da qualificação adoptada na decisão recorrida em matéria de direito ao arrendamento, se escreveu: “houve oportunidade de a suscitar, pois não se pode dizer que a interpretação dos preceitos acolhidos na decisão recorrida foi insólita ou imprevisível a ponto de não ser razoável que o reclamante devesse prevê-la, o que afasta o argumento de surpresa por si invocado”.
É que, se, por um lado, a questão da distribuição do ónus de prova não podia constituir surpresa – os próprios reclamados a haviam suscitado, nos termos vistos, mesmo supondo manter-se a qualificação jurídica adoptada pelo tribunal de 1ª instância, que não contestaram –, por outro lado o diferente entendimento adoptado pelo Tribunal da Relação do Porto no sentido de se tratar de uma
“excepção peremptória atípica dependente de vontade do interessado” (sendo que desta última característica é que depende o regime de ónus probatório adoptado, e tal característica não foi impugnada, sequer no requerimento de interposição de recurso) também não poderia constituir surpresa: como referiu a decisão recorrida, endossavam-na “Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado,
4ª ed., pág. 695; Aragão Seia, ob. cit., pág. 634; Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 3ª ed., pág. 962; Januário Gomes, Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., pág. 319; e os seguintes acórdãos: do STJ de 30/4/96, na CJ-STJ, ano IV, tomo II, pág. 39 e de 23/5/2002, já citado; da RL de 19/11/92, na CJ ano XVII, tomo V, pág. 124 e de 3/12/92, CJ, XVII, V, pág. 134, de
11/2/93, CJ XVIII, I, pág. 139, de 12/5/94, no BMJ n.º 437, pág. 562, de
26/5/94, no BMJ n.º 437, pág. 563, de 7/12/94, na CJ, XIX, V, pág. 122, de
6/7/95, CJ, XX, IV, pág. 81, de 8/2/96, CJ, XXI, I, pág. 118 e de 5/6/96, no BMJ n.º 458, pág. 379; da RP de 14/3/94, CJ, XX, II, pág. 201, de 23/1/95 no BMJ n.º
443, pág. 442 e de 14/11/95 em 458, 379; da RP de 14/3/94, CJ, XIX, II, 201, de
23/1/95 no BMJ n.º 443, pág. 442 e de 14/11/95 em http://www.dgsi.pt/jtrp00014693; e da RC de 18/11/97, na CJ, XXII, V, pág.
15).2”. Impendia, portanto, sobre os ora reclamantes o ónus de adoptar uma estratégia processual adequada (cfr. Acórdão n.º 479/89, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs. 143-144) ao preenchimento dos requisitos do tipo de recurso de constitucionalidade que pretenderam interpor. Como o não fizeram, não pode agora concluir-se pela preterição, pela decisão declamada, do seu direito a ver uma certa questão de constitucionalidade reapreciada por este Tribunal (afinal o fundamento último deste tipo de reclamação, como se disse nos Acórdãos n.ºs 490/98, 24/99 e 46/02, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), e, consequentemente, não pode deferir-se a reclamação apresentada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, consequentemente, condenar os reclamantes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 16 de Junho de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos