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Proc. n.º 651/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
A – O relatório
1 - A. recorre para o Tribunal Constitucional da decisão, proferida, em processo de reclamação regulado no artigo 405.º do Código de Processo Penal
(CPP), pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que considerou irrecorrível, por força do disposto no art.º 400º, n.º 1, alínea e), do CPP, para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) o acórdão do Tribunal da Relação, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade desta norma na acepção de não permitir esse recurso em caso de arguição de nulidades do acórdão, por violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2 - O recorrente interpôs recurso para o STJ do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a sentença de 1ª instância que o condenou na pena de 60 dias de multa a 500$00 diários, em alternativa, 40 dias de prisão subsidiária, perdoados nos termos do disposto no art.º 8º, n.º 1, alínea c), e n.º 3, da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, e, no pagamento da quantia de 130 446$00 à TMN, quantia essa acrescida dos juros legais devidos desde
20/12/1993.
3 - Como fundamento desse recurso, o ora recorrente alegou, em resumo, que o acórdão da Relação era nulo nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPP, respectivamente, por falta de fundamentação e violação do disposto nos artigos 97º, n.º 4, do CPP e 20º e 205º da CRP, e por não se pronunciar sobre as questões colocadas, designadamente sobre a alteração da matéria de facto dada como provada.
4 - O recurso não lhe foi admitido por despacho do relator na Relação, por não ser admissível à face do disposto no art.º 400º, n.º 1, alínea e), do CPP.
5 - Tendo reclamado nos termos do art.º 405º do CPP para o Presidente do STJ, sob o fundamento de que, estando em causa a nulidade do acórdão, o recurso era sempre admissível sob pena de violação do art.º 20º da CRP, foi essa reclamação indeferida com base no entendimento de que “a existir o alegado vício processual devia ter sido arguido na Relação (art.º 379º, n.º 2, do CPP, atento o disposto no art.º 668º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.º 4º daquele diploma)” e de que “a lei não desprotege assim o ora reclamante quando o acórdão padece de alguma nulidade, sendo a decisão irrecorrível, uma vez que se lhe possibilita a sua arguição perante o próprio tribunal que proferiu o acórdão, pelo que não se pode considerar que a norma constante do art.º 400º, n.º 1, alínea e), do CPP, quando interpretada no sentido da não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que é arguida a nulidade do acórdão, viola o art.º 20º da CRP”.
6 - Nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional o recorrente refuta o juízo de não inconstitucionalidade da decisão recorrida, estribando-se na seguinte argumentação:
«I DOS FACTOS
O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão de primeira instância com as seguintes conclusões:
A) O tribunal a quo ao não se pronunciar sobre as questões colocadas, nomeadamente a alteração da matéria de facto dada como provada deixou de pronunciar-se sobre a questão que estava obrigado a apreciar e como tal é nulo por violação do disposto no artigo 379º/1c) do CPP por remissão do artigo
425º/4 do mesmo diploma.
B) O tribunal a quo ao proferir a seguinte decisão “Analisada esta prova no seu conjunto, a decisão de primeira instância não merece censura.” viola o disposto nos artigos 97º/4 CPP, 20º e 205º da CRP, por falta de fundamentação, e como tal é nula nos termos do disposto no artigo 379º/1a) do CPP por remissão do artigo 425°/4 do mesmo diploma e em conjugação com o artigo
374° CPP.
C) Ao decidir como fez o tribunal a quo violou o prescrito nos artigos 425°/4, 379° e 97º/4 CPP e é inconstitucional a interpretação por si feita, que aqui expressamente se invoca, por contradição com o previsto nos artigos 20º e 205° da CRP.
Por despacho da veneranda relatora não foi admitido o recurso interposto pelo arguido com o fundamento nos termos do disposto no artigo 400º/1/e CPP.
Desse despacho o arguido reclamou para o Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação com a seguinte fundamentação «a existir o alegado vício processual, devia ter sido arguido na Relação (artigo 379º/2 CPP, atento o disposto no art. 668º/3 do CPC, ex vi do art. 4º daquele diploma).»
I. DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO
Nos termos do artigo 4° CPP «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.»
Na verdade dispõe o citado artigo que «Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja,. aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16°, nº 3»
Porém dispõe-se no artigo 425°/4 CPP «É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379° e artigo 380°, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento.»
Por sua vez o artigo 379° diz que «É nula a sentença (..) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar»
Finalmente dispõe o artigo 379°/2 CPP que «As nulidades da sentença (leia-se acórdão) devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo
414°/4»
Atenta o exposto resulta evidente que o disposto no artigo 400°/1/e CPP não pode ser interpretado no sentido que lhe foi dado pela venerando conselheiro, sob pena de fazer-se letra morta do preceituado nos citados artigos, bem como de não permitir a sindicância das nulidades do acórdão da Relação proferido, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos.
Em conclusão deve o referido artigo ser interpretado com o seguinte sentido, sob pena de violação do disposto no artigo 20º CRP:
Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16°, n° 3, com excepção da arguição de nulidades do acórdão nos termos do previsto nos artigos
379° e 425°/4 CPP.
Nestes termos e nos melhores de direito do douto suprimento requer a V. Exª digne admitir julgar o presente recurso procedente.»
7 - Por seu lado, o Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional contra-alegou, sustentando o não provimento do recurso com base nas razões que condensou nas seguintes conclusões:
«1 ° - A norma constante do artigo 400°, n° 1, alínea e), do Código de Processo Penal, ao restringir o acesso ao Supremo, em função da gravidade das penas aplicadas ao arguido - e num caso em que foi já exercitado o segundo grau de jurisdição quanto à decisão condenatória - não afronta o direito ao recurso, previsto no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
2° - Estando plenamente assegurada a possibilidade de o arguido reclamar, perante o Tribunal que proferiu a decisão, as nulidades pretensamente cometidas, está garantido o acesso ao direito e aos tribunais, consubstanciado na invocabilidade de quaisquer vícios do acórdão proferido.
3° - Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
Cumpre agora decidir.
B - A fundamentação
8 - A norma do CPP cuja inconstitucionalidade o recorrente defende tem a seguinte redacção:
«Artigo 400.º
1. Não é admissível recurso: a)... b)... c)... d) e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no art.º 16.º, n.º 3;
[...]».
A questão da conformidade à Lei Fundamental da disposição constante da alínea e) do n.º 1 do art.º 400º do CPP, que limita o recurso penal a dois graus de jurisdição, já foi objecto, pelo menos, de tratamento nos Acórdãos n.º
49/03 (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Abril de 2003) e
377/03 (inédito), do Tribunal Constitucional. Mas a matéria de limitação do recurso penal aos mesmos graus de jurisdição foi também já apreciada nos Acórdãos n.º 189/01 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50º vol., pp. 285), n.º 369/01 (inédito) e n.º 435/01 (inédito), a propósito das disposições constantes das alíneas c) e f), do mesmo número e artigo, e sempre no sentido da sua constitucionalidade. Fazendo uma síntese da doutrina defendida nestes últimos arestos, assim discreteou aquele Acórdão n.º 377/03:
«O direito de recurso conta-se entre “todas as garantias de defesa” conferidas pelo art.º 32.º, n.º 1, da CRP. Todavia, no domínio do processo penal, esse direito ao recurso basta-se com a existência de um duplo grau de jurisdição. Do art.º 20.º, n.º 1, da CRP não resulta que os interessados tenham de ter assegurados todos os graus de recurso abstractamente configuráveis ou um direito irrestrito ao recurso. Numa hipótese, como a da alínea e) do n.º 1 do art.º
400.º do CPP, em que se mostra assegurado um duplo grau de jurisdição não poderá dizer-se que não esteja assegurado em termos constitucionalmente justificados o direito de acesso aos tribunais. A limitação dos graus de recurso, na situação a que se reporta a alínea e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP, justifica-se por estarem em causa crimes que são punidos com penas leves ou de média gravidade e pela necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade, por razões de capacidade de resposta do sistema judiciário e de economia processual».
É esta jurisprudência que aqui se renova.
É certo que o recorrente questiona aqui uma específica dimensão normativa do art.º 400º, n.º 1, alínea e), do CPP, traduzida na irrecorribilidade de acórdão condenatório da Relação, ainda que o fundamento desse recurso se traduza na respectiva nulidade.
Lembre-se, porém, que a garantia de um duplo grau de jurisdição apenas tem sido defendida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional relativamente a decisões penais condenatórias e a decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (cf. Acórdão n.º 265/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., pp. 751 e ss.), mas não já relativamente a determinadas normas processuais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (v.g., quer de despachos interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos n.º 259/88, n.º 118/90 e n.º 353/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., pp. 735; 15º vol., pp. 397, e 19º vol., pp. 563, e Acórdão n.º 30/01, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Março de
2001 - também. in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49º vol., pp. 171 - relativo à irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular quando o Ministério Público acompanhe essa acusação particular).
Ora, nesta linha de pensamento não se vislumbram suficientes razões que justifiquem a alteração da posição tomada quanto à matéria só porque o fundamento do recurso é constituído por nulidades do acórdão. A consagração de um duplo grau de jurisdição em matéria penal decorre essencialmente da exigibilidade constitucional de se conferir um grau elevado de asseguramento, de concretização e de realização aos direitos e garantias fundamentais da liberdade e segurança dos cidadãos (sendo igualmente invocável relativamente a outros direitos e garantias fundamentais), dado que estes são directamente atingidos pelas decisões condenatórias e outras decisões judiciais que limitem ou restrinjam a liberdade. A existência de um segundo grau de reexame jurisdicional das medidas de privação, limitação ou restrição desses direitos fundamentais corresponde assim ao patamar que a Constituição tem como minimamente tolerável para que se possam haver por arredados os perigos de uma ofensa inconsistente de tais direitos.
Dentro desta perspectiva escreveu-se no Acórdão n.º 49/03, a propósito da inadmissibilidade do recurso para o STJ nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 400º do CPP, em caso de decisão condenatória da Relação que sucedeu a decisão absolutória da 1ª instância:
«[...] A norma impugnada pela recorrente – contida na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal – exclui, nos casos nela previstos, a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos em recurso pela relação. Importa ter presente, todavia, que tais acórdãos resultam justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Por outras palavras, o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso. Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação. Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar. Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará. A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.».
O Tribunal Constitucional sempre entendeu a garantia do duplo grau de jurisdição enquanto respeitando ao direito ao recurso relativo a decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Paradigmático de uma tal leitura da Constituição é o discurso expendido no Acórdão n.º 265/94 (Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994), mas cujo sentido informa igualmente a fundamentação, entre outros, dos Acórdãos n.º 610/96, n.º 468/97, n.º 216/99 e nº 113/00 (todos disponíveis em
www.tribunal constitucional.pt/jurisprudencia, estando ainda o primeiro e o terceiro publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 1996 e 6 de Agosto de 1999):
«A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se nesse sentido o Acórdão n.º 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º volume, pág. 235), a verdade é que, como se escreveu no Acórdão n.º 31/87 do mesmo Tribunal, “se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido”. E, mais à frente, lê-se no mesmo aresto:
“Ora, a salvaguarda desse direito de defesa impõe seguramente que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória, como se determina, aliás, de forma expressa no n.º 5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho:
«Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei»; como imporá, também, que a lei preveja o recurso dos actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Mas já não impõe que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz” (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., págs. 467-468; no mesmo sentido, veja-se o Acórdão n.º 178/88, in Acórdãos, vol. 12º, págs. 569 e seguintes).».
A garantia de um duplo grau de jurisdição traduz-se, deste modo, na possibilidade de a situação de eventual ofensa ao direito de liberdade e segurança poder ser reexaminada, concernentemente a todos os fundamentos que poderão determinar a decisão da causa, por um tribunal diferente hierarquicamente superior. Dito de uma forma simplista, a garantia de um duplo grau de jurisdição tem que ver essencialmente com a definição da situação jurídico-criminal do arguido em matéria que contenda com a privação, limitação ou restrição dos seus direitos e garantias fundamentais da liberdade e segurança (como é, por exemplo, o caso das decisões condenatórias ou aplicação de medidas de coacção), e não, directamente, com o cumprimento das regras procedimentais ou processuais a que o legislador subordine as decisões judiciais em tal matéria. Sendo assim, não decorre forçosamente da garantia constitucional de um duplo grau de jurisdição que haja de ser sempre admissível o recurso para o tribunal superior nos casos em que o tribunal de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre questões que influam na decisão da causa (ressalvando-se o recurso de constitucionalidade para o órgão jurisdicional específico não enquadrado na hierarquia dos tribunais) ou nos de, ao proferir a decisão, incorrer na violação de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da nulidade. Nada impõe que se leve a autonomização da questão da nulidade da decisão em relação à questão de fundo tão longe que seja constitucionalmente exigível a existência de um 2º grau de jurisdição especificamente para esta questão, considerando o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal por via de recurso, a possibilidade de arguir as nulidades perante o órgão que proferiu a decisão, quando aquele recurso não existir, e, como no presente caso, a existência de duas decisões concordantes em sentido condenatório (o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse recurso, mesmo nas hipóteses em que o fundamento deste resida na arguição de nulidades processuais, assim ampliando o âmbito material do direito de recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Nesta perspectiva, poder-se-á dizer que, em caso de recurso relativo a decisão condenatória, seja com fundamento em nulidades processuais, seja com fundamento em erros de julgamento atinentes ao fundo da causa, o seu objecto apelante de um terceiro grau de jurisdição será sempre o acórdão condenatório em si próprio. É certo que, quando o fundamento do recurso se consubstancie em uma causa de nulidade do acórdão condenatório, não poderá afirmar-se ter sido exercida a garantia do duplo grau de jurisdição por uma forma definitiva. Mas uma tal situação apenas demanda, numa perspectiva de garantia constitucional do acesso aos tribunais que o recorrente convoca (art.º 20º da CRP), que esse mesmo grau de jurisdição se possa (deva) pronunciar de modo formalmente válido sobre o objecto do recurso. Nesta perspectiva ganha todo o sentido a possibilidade de o tribunal recorrido poder suprir as nulidades e de o tribunal ad quem apenas conhecer delas quando, sendo admissível o recurso, aquele o não tenha feito ou não as haja atendido (art.º 379º, n.º 2, e 414º, n.º 4, do CPP; cf., no domínio do processo civil, o art.º 668º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Deste modo, a apreciação de nulidades de acórdão condenatório não postula a necessidade de existência de mais um grau de recurso. A reclamação perante o órgão jurisdicional que exerce o segundo grau de jurisdição configura-se, assim, como um instrumento jurídico adequado de garantir o acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a obter uma decisão formalmente válida, que é a dimensão que o recorrente aqui questiona. Aliás, admitindo-se a constitucionalidade das normas que prevêem a existência apenas de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do julgamento efectuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo segundo grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que advêm essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais, quando está aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas nulidades para o
órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição. E para a conclusão que se assume não vale invocar como pretensos lugares paralelos as hipóteses em que a lei processual admite que o fundamento de nulidade possa constituir o único fundamento do recurso, como será seguramente o caso contemplado no n.º 2 do art.º 310º do CPP (despacho que indefere a arguição de nulidade traduzida em a decisão instrutória pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento da acusação), e poderá também acontecer em recursos interpostos de decisão proferida em 1ª instância, conforme decorre do art.º 379º do CPP. Em qualquer dessas situações a opção legislativa nada tem que ver com o reconhecimento, no caso, de uma garantia de um duplo grau de jurisdição relativamente ao fundamento de recurso traduzido na alegação de nulidades. Na primeira situação, o que se verifica é apenas a admissibilidade de um duplo grau de jurisdição relativamente a um despacho cujo conteúdo não deixa de coenvolver uma restrição ou limitação aos direitos fundamentais do arguido, traduzido na pronúncia por factos que constituem uma alteração substancial em relação aos imputados na acusação, para além de uma ofensa ao direito de defesa. Na segunda hipótese, a alegação da nulidade como fundamento eventualmente único do recurso
é feita dentro da admissibilidade geral do segundo grau de jurisdição sobre a causa.
C – A decisão
9 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 20 UC.
Lisboa, 2 de Junho de 2004
Benjamim Rodrigues Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (com declaração de voto) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Não posso deixar de manifestar dúvidas relativamente à solução do presente Acórdão quanto ao problema de constitucionalidade suscitado. É, na realidade, questionável que a solução que a lógica do sistema de recursos do Código de Processo Penal propõe para uma situação de arguição de nulidade de decisão irrecorrível, sendo esta já uma decisão de recurso, seja plenamente satisfatória da garantia do direito ao recurso. Com efeito, sendo a nulidade invocada uma nulidade da sentença proferida na instância de recurso, que, a ter-se verificado, poria em causa a subsistência da decisão de consequências fundamentais para os direitos do arguido, não se admitir qualquer possibilidade de análise por um tribunal superior ou, pelo menos de composição mais alargada, possibilitando-se apenas a reclamação para o mesmo tribunal, enfraquece, significativamente, o direito ao recurso. As razões que em última análise justificam o direito ao recurso, tais como a própria exigência fundamentadora das decisões e a garantia de uma análise imparcial não são satisfeitas com o sistema que resulta do Código de Processo Penal. A analogia desta questão com a subjacente ao artigo 310º do Código de Processo Penal parece-me evidente. Aí, porém, o legislador admitiu o recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de pronúncia com fundamento em pronúncia do arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente na abertura da instrução (artigo 309º, nº 1). Ora, tal como nessa situação se entendeu que teria de existir um controlo específico, em recurso, sobre o desvirtuamento da natureza do despacho de pronúncia, pelos efeitos irremediáveis para o processo produzidos, também a existência de nulidade que consista na ausência de fundamentação da sentença ou na sua contradição notória, na decisão de recurso, produz efeitos irremediáveis, mas, neste caso, na própria decisão do processo. O argumento de que, globalmente, foi assegurado o duplo grau de jurisdição quanto ao julgamento da causa não é totalmente convincente, já que sendo a decisão do recurso efectivamente nula tal garantia está profundamente afectada. Maria Fernanda Palma